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O Brasil ilegal

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Artigos de opinião

Joaquim Falcão*

Conta-se que, na década de setenta, um professor de direito fazia pesquisas sobre o direito de propriedade nas favelas do Rio de Janeiro. A certa altura, entrevistando um morador, perguntou-lhe: “Mas o senhor não acha ilegal construir sua casa no terreno de outra pessoa?”. O favelado, com a tranqüilidade da desesperança, teria lhe respondido: “Doutor, ilegal aqui não é meu barraco. Ilegal sou eu!”.

Não é difícil entender essa afirmação. Ele provavelmente não tinha carteira assinada, não pagava impostos, não recebera educação fundamental como manda a Constituição, a energia elétrica de seu barraco era roubada, e por aí caminhava sua existência. Como morador, trabalhador, consumidor ou contribuinte, ele era ilegal. O barraco sintetizava a ampla e perversa ilegalidade que o constituía como pessoa. Hoje, passados trinta anos, a situação mudou. A ilegalidade do brasileiro aumentou, não sendo mais privilégio do favelado ou do trabalhador. É estigma de todos, classe média e elite também. Somos um país de ilegais.

Abram os jornais. Em São Paulo, a Folha noticia recentemente que 80% dos estabelecimentos de ensino superior não cumprem a Lei de Diretrizes e Bases da educação. No Rio de Janeiro, a manchete do Globo dizia existirem mais de dois milhões de automóveis trafegando sem cumprir as normas do Código Nacional de Trânsito. Para não falar no óbvio: mais de 50% dos brasileiros estão no mercado informal de trabalho, sem carteira, sem impostos, sem previdência, sem Custo Brasil. Não se cumpre a legislação do trabalho. Nas grandes cidades, estima-se que mais de 30% da população more em loteamentos irregulares e em áreas invadidas.

Mas não acaba aí. Hoje tramitam na Justiça milhões de processos. Quanto mais a sentença demora, mais os réus são “fantasmas vivos”, plenos de potencial ilegalidade. O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, aponta situação dramática: no Brasil atual, ninguém ou quase ninguém consegue fechar uma empresa, terminar uma sociedade, dar baixa nos registros ou deixar de existir legalmente, tamanhas são as exigências burocráticas. A ilegalidade da pessoa jurídica sobrevive e arrasta com ela empresários, sócios, fisco e credores. Para estes, o futuro já começou e é ilegal.

A conseqüência mais grave é que essa sólida cultura da ilegalidade acaba por comandar a vida nacional. Não somos nada além do que o Estado e a lei exigem que sejamos. Somos desconstruídos como cidadãos e reconstruídos como reféns do Estado, ou melhor, dos governos, seja federal, estadual ou municipal. Vivemos acuados diante do poder de policia do funcionário, muito mais do que diante do poder da policia. Paradoxalmente, a lei – feita em nome do bem comum – instaurou o mal de todos.

O guarda de trânsito não nos percebe como cidadãos a ajudar, colaborar e apoiar. Ele nos olha como adversários, motoristas ou proprietários de veículos infratores. Em apenas alguns minutos de inspeção, encontrará varias exigências legais não cumpridas. O empresário não é o cidadão que produz – é apenas a personificação anônima da notificação certa, da multa inevitável pela prefeitura ou pelo governo estadual ou federal. Milhares e insuscetíveis de cumprimento são as exigências legais que se impõem – ou que se pretende impor.

A submissão do cidadão ilegal diante da autoridade legal é o terreno fértil do autoritarismo. O regime político autoritário pode ter acabado, mas a relação administrativa autoritária, não. O brasileiro, rico ou pobre, homem ou mulher, é refém permanente e transitório da autoridade de plantão. Com raras exceções, o burocrata não nos orienta ou auxilia, mas nos condena na demora, no lavar das mãos e na exigência desnecessária. Nesse contexto, como é possível reagir?

São dois os caminhos. O primeiro, de curto prazo, é o caminho da sobrevivência. Sob o Brasil legal e formal, viceja cada dia mais forte um Brasil ilegal e informal. Nesta convivência de contrários, despreza-se a lei e corrompe-se a autoridade. Este caminho não faz de nós uma nação produtiva, solidária e democrática, mas, ao contrário, divide-nos em dois Brasis, desconfiantes e desconfiados, mutuamente destrutivos.

O segundo, de longo prazo, é bem mais difícil: é o caminho da construção de instituições democráticas viáveis, que passa pela reinvenção e experimentação de novas relações entre Estado e sociedade. Para tanto, é preciso abandonar o radical olhar liberal que vê a ilegalidade como resultante apenas do ato de vontade do cidadão.

A ilegalidade que importa hoje no Brasil não é a individual, mas sim a coletiva, que se mede aos milhões. Ela não resulta da ação do cidadão, mas da relação autofágica entre a ambição do Estado em ser independente e controlar a sociedade civil e a desorganização e alienação escapista de todos, sobretudo do jovem. Legal ou ilegal não é o cidadão, mas a relação entre ele e o governo do dia, a autoridade publica.

A solução não é multar, processar ou registrar nas listas negras todos os brasileiros, um a um, ou ainda cada um ganhar sozinho na Justiça aquilo que é direito de todos. A solução terá de ser de massa. Houve uma época em que o Brasil adotou um programa de desburocratização; agora, é hora de adotarmos um programa de libertação da cidadania, de nos desfazermos de registros injustos e de leis ineficazes, de “deslegalizar” o autoritarismo cotidiano. Com as lideranças políticas e sociais juntas, é hora de tentar fazer de todo o brasileiro um legal e livre proprietário de si próprio.

* Joaquim Falcão é professor de Direito Constitucional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretor da Escola de Direito do Rio de Janeiro, da Fundação Getúlio Vargas (FGV).





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