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Identidade ameaçada

Autor original: Mariana Loiola

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Identidade ameaçada


Elas têm o direito de propriedade definitiva de suas terras garantido pela Constituição brasileira. Na prática, porém, esse e outros direitos têm sido violados de forma contínua no país. Em Alcântara, no Maranhão, as comunidades remanescentes de quilombos lutam pela garantia de seus direitos – entre eles, o direito à moradia adequada.

Para implantar o Centro de Lançamentos de Alcântara (CLA) no município, na década de 80, as Forças Armadas expropriaram as terras de mais de 300 famílias pertencentes a cerca de 30 comunidades quilombolas. Essas famílias foram deslocadas e reassentadas nas chamadas agrovilas, onde não encontram condições mínimas de sobrevivência, vivendo, assim, um processo de grave desintegração socioeconômica e cultural. Uma das conseqüências dessa situação é um massivo êxodo rural e um inchaço na área urbana de Alcântara, além do aumento de casos de gravidez precoce, prostituição de jovens e disseminação do uso de drogas, problemas que não havia antes da instalação da base militar.

O Centro de Justiça Global lidera, juntamente com o Social Watch e o Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos (Chore), um manifesto que cobra do governo federal uma resposta mais precisa e rápida sobre os deslocamentos das comunidades em Alcântara. Segundo a diretora jurídica da entidade, Andressa Caldas, a implantação do CLA foi feita "em total desacordo às normas ambientais". Ela ressalta que o Estado brasileiro está em dívida com essas comunidades tradicionais.

Rets - O manifesto liderado pelo Centro de Justiça Global juntamente com o Social Watch e o Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos (Cohre) trata do quadro de violações em que se encontram as comunidades remanescentes de quilombos localizadas em Alcântara. Você pode detalhar algumas dessas violações?

Andressa Caldas - As comunidades quilombolas de Alcântara vêm sofrendo desde os primeiros deslocamentos, na década de 80, um processo de grave desintegração socioeconômica e cultural. Dentre os vários direitos que vêm sendo violados, podemos destacar a violação ao direito de propriedade às terras tradicionalmente ocupadas, que inclusive está previsto na nossa Constituição de 1988. Além disso, há violações do direito à identidade cultural, do direito à moradia adequada, do direito de circulação, do direito à proteção da família, e dos direitos ao trabalho, à alimentação e à educação. Sem falar na discriminação racial que historicamente as comunidades negras tradicionais vêm sofrendo no Brasil.

Além do desapossamento de suas terras coletivas e ancestrais, fato que por si só já configura grave violação, as comunidades vêm sofrendo ingerências no tocante a aspectos econômicos, familiares, culturais e religiosos de suas vidas, donde se destacam: o impedimento da prática da pesca, a impossibilidade de expansão familiar e a interdição do acesso aos cemitérios onde estão enterrados os parentes de alguns moradores das comunidades.

Não bastasse isso, a implantação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) foi feita em total desacordo às normas ambientais, pois o Relatório de Impacto Ambiental omite questões essenciais, como a unidade sociocultural das comunidades afetadas pela instalação do CLA, os aspectos etnográficos daquele território, a inviabilidade econômica dos reassentamentos. Tudo isso vem sendo questionado pelo Ministério Público Federal em ação civil pública. Outra ação civil pública também foi proposta no ano passado para que se proceda à titulação das áreas e o não remanejamento de outras comunidades.

Essa situação foi agravada recentemente. Até o ano passado, havia a iminência da assinatura de um Acordo de Salvaguardas Tecnológicas que cederia a Base de Alcântara para os Estados Unidos, para fins comerciais. Esse Acordo não foi assinado, mas foi substituído por outro de semelhante teor com a Ucrânia. Além deste tipo de acordo desviar a finalidade pública que gerou a desapropriação da área em que se encontra a base espacial de Alcântara, ele pode acarretar novos deslocamentos de famílias.

Todas essas violações foram denunciadas pela Justiça Global, em conjunto com entidades maranhenses, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), onde se encontra tramitando uma petição contra o Estado brasileiro, desde agosto de 2001.

Rets - As agrovilas, para onde as comunidades foram deslocadas, se mostraram totalmente inadequadas às necessidades de sobrevivência destas populações. Por quê?

Andressa Caldas - A história da inadequação das agrovilas começa em 1986, quando um decreto presidencial do então presidente José Sarney dispôs sobre o disciplinamento da área afetada pelo Centro de Lançamento de Alcântara, e diminuiu apenas para aquelas agrovilas o módulo mínimo. De acordo com o Estatuto da Terra, o módulo rural mínimo para implantação de propriedades rurais familiares é de 30 hectares. O decreto presidencial de Sarney, no entanto, reduziu o módulo mínimo, apenas e exclusivamente para o projeto em Alcântara, para a dimensão de 15 hectares. Ou seja: além de toda a violência sofrida pelas comunidades deslocadas, estas ficaram confinadas em áreas, cujo tamanho é metade do mínimo previsto em lei.

Não bastasse isso, as sete agrovilas para onde foram deslocadas mais de 300 famílias - procedentes de mais de 30 comunidades tradicionais diferentes – não apresentam condições mínimas para a prática da agricultura. A terra é de péssima qualidade, ficam localizadas muito distantes do local de pesca e coleta. Além disso, o acesso aos recursos naturais é limitado pelo Centro de Lançamento de Alcântara. Foi imposto um modelo de assentamento rural fechado e individualizado (por família) para uma comunidade que tradicionalmente conjugava, às suas lavouras de subsistência, formas de apropriação comum dos recursos naturais. Não há assistência técnica agrícola. O município é ausente no fornecimento de políticas públicas de saúde e educação. Mesmo para construir novas casas no limitado terreno de que dispõem, os moradores das agrovilas dependem de autorização do Centro de Lançamento de Alcântara.

Rets - O manifesto relaciona o deslocamento das comunidades com o surgimento de problemas sociais, como gravidez precoce, prostituição de jovens e disseminação do uso de drogas. Como se dá essa relação?

Andressa Caldas - Além da própria desintegração que foi provocada pelo deslocamento das comunidades para agrovilas, estas áreas são limitadas, não permitindo a subsistência dos filhos dos moradores que constituam novos núcleos familiares. Isso tem levado à expulsão de jovens para a zona urbana de Alcântara e São Luís. Hoje, a maior preocupação dos moradores das agrovilas é que seus filhos encontram-se sem terra, sem casa e sem trabalho.

A precariedade das condições nas "agrovilas", a ameaça de novos deslocamentos compulsórios e o tendente esgotamento dos recursos naturais têm levado a um massivo êxodo rural, com a conseqüente formação de favelas, palafitas e ocupações na sede do município – zona urbana de Alcântara. Uma pesquisa realizada em 2002 sobre o entorno de Alcântara demonstra um inchaço na área urbana e a desestruturação da sociedade de Alcântara.

E com isso também vêm os problemas decorrentes da ausência de uma perspectiva de melhoria. A desestruturação cultural e familiar tem levado a altos índices de gravidez precoce e prostituição, bem como o envolvimento de jovens com o consumo de drogas, situação que não se verificava antes da instalação da Base.

Rets - Em suas visitas à região, que outras reclamações você ouviu das famílias?

Andressa Caldas - Havia uma expectativa muito alta das próprias comunidades e de entidades que defendem as comunidades de Alcântara de que o governo Lula modificaria a política desrespeitosa que vem sendo empregada com relação às comunidades quilombolas de Alcântara. No entanto, passado um ano e meio do atual governo federal, as comunidades se deparam com o continuísmo, com a ausência de transparência sobre as informações do Centro de Lançamento, com a precariedade das políticas públicas de saúde e educação.

Nas agrovilas, há um ressentimento quanto às promessas não cumpridas pelo pessoal da Base. A afirmação de que foram enganados, prejudicados, de que se mudaram contra a sua vontade.

As comunidades que estariam ameaçadas de serem deslocadas estão decididas a não saírem, porque conhecem a realidade de quem hoje está nas agrovilas e não querem fazer parte da repetição desta história. Nas palavras de uma moradora, "não nos interessa casa de tijolo, se não temos o que comer; não nos interessa luz elétrica e geladeira, se não temos o que colocar nela".

Rets - Em junho, durante a visita a Alcântara do relator especial da ONU para a Moradia Adequada, Miloon Kothari, foi lançada a Campanha pela Regularização dos Territórios de Quilombos. A regularização dos territórios poderia ajudar na situação das comunidades de Alcântara? Que outras medidas poderiam resolver esse problema?

Andressa Caldas - A regularização dos territórios quilombolas é uma exigência constitucional. A Constituição Federal brasileira de 1988 determinou que "aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos".

Em nossa petição enviada para a OEA, demonstramos a inoperância e a morosidade do Estado brasileiro em titular as áreas de remanescentes de quilombos, que hoje estaria a cargo da Fundação Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura. Neste documento, indicamos que, num universo de 1000 comunidades, até o segundo semestre de 2001, apenas 18 áreas haviam sido tituladas. Destas 18, apenas três conseguiram ter reconhecido e registrar em cartório o título emitido pela Fundação Palmares.

A continuar este ritmo, e partindo-se dos números oficiais de comunidades, seriam necessários aproximadamente mais 511 anos para se concluir o processo de titulação de todas as comunidades remanescentes de quilombos no Brasil. Isto é um completo absurdo. A Fundação Palmares não possui estrutura suficiente e adequada de recursos humanos e materiais. Não conta com um quadro técnico próprio dotado de historiadores e antropólogos, ficando na dependência da realização de convênios com universidades e instituições de pesquisas.

É urgente que o governo Lula decida por cumprir imediatamente o que determina a Constituição e emita estes títulos definitivos.

Além disso, é preciso que as comunidades quilombolas sejam também beneficiadas com políticas específicas de desenvolvimento sustentável, de assessoria técnica agrícola, de educação e saúde, que sejam adequadas e respeitosas à identidade cultural destas comunidades.

Rets - Qual a importância cultural e socioeconômica dos quilombos e da sua preservação?

Andressa Caldas - A própria Constituição brasileira reconhece a constituição das comunidades remanescentes de quilombos, estabelecendo também a estas comunidades tradicionais o direito de propriedade definitiva de suas terras.

O legislador constituinte garantiu a propriedade da terra às comunidades rurais remanescentes de quilombos, por entender que há uma relação intrínseca e cultural entre estas comunidades e o território que tradicionalmente ocupam. Essa relação configura um elemento diferenciador e caracterizador destas minorias étnicas.

A Constituição Federal de 1988 conferiu direitos especiais para as comunidades remanescentes de quilombos, valorizando a importância desta identidade étnica de predominância negra, localizadas em sua maioria no contexto rural, para o patrimônio histórico e cultural brasileiro.

Preservar e garantir os direitos das comunidades quilombolas, além de uma questão de respeito aos direitos humanos, é uma obrigação para com a história e a cultura do nosso país. É inegável que o Estado brasileiro tem uma dívida com essa parcela da população.

Mariana Loiola

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