Autor original: Mariana Abreu
Seção original: Os mais interessantes e ativos projetos do Terceiro Setor
Aulas de canto, dança, teatro: atividades rotineiras de uma jovem de 102 anos de idade. Quem vê a vitalidade invejável exibida hoje por Alice não imagina que há três anos ela andava em cadeira de rodas e precisava de ajuda até mesmo para se alimentar. A energia atual é uma grande conquista, cujos méritos ela divide com a Casa de Santa Ana, centro de convivência diurno para idosos que começou a frequentar aos 99 anos, na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. "Por melhor que seja o asilo, o idoso vai perdendo a identidade, a auto-estima. Ele deixa de ser quem cuidava da casa, deixa de ser o avô, para ser mais um idoso. Eu queria um lugar onde eles pudessem exercer a autonomia e independência, onde passassem algumas horas e voltassem para casa, para a família", justifica ela. De geração para geração A casa acabou atraindo também os jovens da Cidade de Deus, e o passo seguinte foi juntar os dois grupos em atividades comuns. Mas unir gerações tão distantes não foi tarefa das mais fáceis: "São linguagens e necessidades muito diferentes", diz Lourdes. Segundo ela, a participação do grupo Afro Reggae foi fundamental para despertar o interesse de crianças e adolescentes. A parceria, que era para durar seis meses, deu tão certo que a oficina de percussão já existe há quatro anos. Quem também ajudou bastante foi Tatiane Canindé, neta de Nancy Lomeu. Hoje com 15 anos, a menina foi praticamente criada na casa: "Minha avó não tinha com quem me deixar, então todo dia, depois da creche, me levava para lá", conta ela. Tanta intimidade com o lugar lhe rendeu o posto de coordenadora do coral e a responsabilidade de levar os jovens para a Casa. No início os convites eram recusados: "Meus amigos diziam que velho era muito chato. Mas teve uma vez que eu falei que ia ter uma festa com comida, aí veio todo mundo e eles gostaram." A estratégia funcionou e hoje são os amigos que chamam Tatiane. "Se o coral começa às seis, às quatro e meia já tem gente aqui na minha porta", conta a menina, orgulhosa. Casa de Geralda Há três anos, a Casa de Santa Ana aumentou e ganhou uma segunda sede, a Casa de Geralda, onde funciona o primeiro centro de promoção de saúde do idoso em comunidade de baixa renda do país. O centro, construído no terreno doado em testamento por Geralda Pereira, antiga freqüentadora da Casa de Santa Ana, oferece apoio nutricional, fisioterapia, serviço social, atendimento psicológico e ambulatorial e encaminhamento para hospitais e postos de saúde. Já na Casa de Santa Ana, idosos e adolescentes têm aulas de alfabetização, canto, percussão, teatro, dança, cursos e passeios. É lá que funciona o centro de convivência, que rende amizades e - por que não? - muita paquera para o pessoal da terceira idade. As paredes da casa já testemunharam o início de muitos namoros e até casamento. O único problema, segundo Maria de Lourdes, é que há muito mais mulheres que homens. "Homem, aqui, é artigo de luxo. Os poucos que vêm são superpaparicados e paquerados. As mulheres ficam todas alvoraçadas", conta ela, se divertindo. Não é o fim Nos seus quase 13 anos de atividade, a Casa de Santa Ana ganhou reconhecimento nacional e internacional. Durante a semana, por exemplo, o pessoal se preparava para uma apresentação junto com o coral de ex-alunos da Universidade de Yale, dos EUA. As visitas recebidas também são freqüentes e Maria de Lourdes já até perdeu a conta de quantas faculdades e profissionais das mais variadas áreas estiveram por lá. Mas talvez o mais importante de tudo isso seja que dona Ildete, que aos 82 anos escapou de ter a perna amputada, hoje, aos 93, canta feliz - e de pé - a letra inteira de "Carinhoso". Que dona Alice está se preparando para comemorar seu 103º aniversário. Que Nancy ganhou dos colegas da Casa de Santa Ana o Troféu Mulher Maravilha. Ou ainda que Adriano, de 15 anos, voltou a falar com a avó desde que começou a freqüentar a casa. Hoje essas pessoas sabem que "a velhice não é o fim e que enquanto houver vida têm de lutar e ser felizes", como ensina dona Nancy.
O caso de dona Alice é o que melhor expressa o sucesso do trabalho inovador da Casa de Santa Ana. Mas há muitos outros. Entre idosos, adolescentes, suas famílias e funcionários (mão-de-obra absorvida da comunidade), a casa beneficia diretamente cerca de 350 pessoas. O feito leva a assinatura da assistente social Maria de Lourdes Braz, que conseguiu, em um único projeto, minimizar dois dos maiores problemas da comunidade: a falta de perspectiva para os idosos e de oportunidades para os jovens.
Em 1990, recém-formada, Maria de Lourdes tinha duas certezas: queria trabalhar com a terceira idade e tinha que ser com a população de baixa renda. "Se já é difícil envelhecer no Brasil, imagina para quem não tem dinheiro", explica. A assistente social imaginava algo diferente do que conheceu nos asilos em que estagiou na época de faculdade.
Um ano depois, em 1991, com o apoio da paróquia local, reabriu a Casa de Santa Ana - fechada em 1989 por falta de recursos - e deu início ao que seria um projeto pioneiro. O trabalho recomeçou com o atendimento a 17 idosos, oferecendo atividades culturais, ambulatório e palestras de prevenção. Junto com a voluntária Nancy Lomeu, Maria de Lourdes fazia de tudo um pouco: era assistente social, auxiliar de enfermagem, cozinheira. Aos poucos, os recursos foram aumentando e mais gente foi chegando. Hoje são atendidos diariamente quase 150 idosos.
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