Autor original: Fausto Rêgo
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Ex-presidente da Eletrobrás até abril passado, o professor Luiz Pinguelli Rosa fez recentemente um alerta: o Brasil corre o risco de sofrer um novo apagão já em 2006 – como já ocorreu em 1999 – se a oferta de energia não for ampliada. No último dia 4, a ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, em reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, assinou embaixo e reclamou que a demora dos processos de licenciamento ambiental estão retardando a construção de usinas já licitadas que garantiriam a oferta necessária.
Substituído do comando da estatal para acomodar as alianças políticas – mas também por conta de atritos internos provocados pelas amarras impostas pelas diretrizes da política econômica -, Pinguelli voltou ao ambiente universitário. Retornou à coordenação da Coppe – Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, centro de excelência da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde recebeu a reportagem da Rets para uma conversa sobre o modelo energético brasileiro. Sem falsa modéstia, ele diz que faz falta ao governo, cujo principal erro, afirma, é acreditar que o setor privado – principalmente estrangeiro – é quem deve investir em geração de energia no país.
Para o professor Pinguelli, a questão ambiental é fundamental e não pode ser considerada um entrave à ampliação da oferta de energia. Ele defende que o critério socioambiental seja sempre levado em conta, até mesmo para as energias alternativas, cujos problemas também faz questão de apontar. "Todas as tecnologias têm um lado perverso", garante. Pinguelli não é contra as fontes alternativas – pelo contrário. Mas faz questão de dizer que não gosta de vender ilusão.
Sobre o governo para o qual elaborou o programa na área de energia, o professor aponta acertos – principalmente no terreno das relações internacionais - e equívocos – muito em função da política econômica. "É necessário que o Brasil tenha uma política interna tão corajosa quanto a sua política externa", analisa. "E a política interna do Brasil treme de medo do mercado".
Rets - O senhor deixou o governo, retornou à vida acadêmica e já disse que não há mágoas. Mas sentiu-se de alguma forma frustrado?
Luiz Pinguelli Rosa – Não é bem assim que eu coloco. Qualquer mudança na vida da gente tem sempre um lado psicológico, de expectativas, mas isso não conta. É que nem dor-de-dente: tem remédio, tem dentista, isso é um assunto muito secundário. E de fato o cargo de confiança é pra ser exercido em um período de tempo. Eu não fiz concurso pra ser presidente da Eletrobrás, e você só pode aceitar um cargo desses com a perspectiva de retorno. Eu estava dando aula aqui na universidade, nunca tive essa ilusão. Agora, eu tenho preocupação com o setor elétrico. Não preciso do governo pra nada, mas o governo precisa de mim. Eu faço falta naquilo que pretendi fazer na Eletrobrás e que espero que o atual presidente continue.
Rets - O senhor afirma que o Brasil corre o risco de um novo apagão já em 2006, caso não haja ampliação da oferta de energia. A ministra Dilma Rousseff confirmou, depois, essa mesma ameaça na reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e responsabilizou a lentidão do processo de licenciamento ambiental. É essa a grande dificuldade? O que é preciso mudar?
Luiz Pinguelli Rosa – Eu concordo com a Dilma quanto à perspectiva de risco de falta de energia, principalmente se o crescimento se der como todos queremos, e há sinais de que isso possa acontecer. Essa preocupação é real se você tiver projeção de crescimento e demanda, um cenário otimista de crescimento no país e de distribuição de renda. Se aumentar o salário-mínimo, a tendência é haver um aumento do consumo de energia popular, além das empresas etc. Agora, eu discordo de colocar a culpa exclusivamente em cima da questão ambiental. A questão ambiental realmente retarda obras, mas isso tem que ser incluído. Não é possível eliminar a negociação ambiental, ela faz parte da vida, tal como faz parte ter mais chuva ou menos chuva. O governo está com uma avaliação um pouco errada, não sei se acostumado ao ritmo muito lento do crescimento econômico, com a sobra de energia que se deu, e, principalmente, a grande razão: a aposta de que é o setor privado - em particular, o estrangeiro – que tem que investir em energia elétrica no Brasil. Esse é o enorme erro do governo, mais importante que a questão ambiental. Discordo, portanto, nesse ponto, da Dilma.
Rets - A ministra esteve na Conferência de Bonn sobre Energias Renováveis [realizada em maio, na Alemanha] e deu muita ênfase ao modelo energético baseado em grandes hidrelétricas, que é condenado por grande parte dos ambientalistas. O senhor acredita que esse modelo é compatível com o desenvolvimento sustentável?
Luiz Pinguelli Rosa – Desenvolvimento sustentável tem vários significados, não é uma coisa rigorosamente definida. É, sim, compatível, no sentido de que é um fluxo de energia, não um estoque. Se você usa o gás natural, está pegando um estoque de energia que não vai se reproduzir mais, como o petróleo e o carvão mineral. Quando você usa a cana-de-açúcar, que é plantada, ou a eletricidade, que é fruto das chuvas, então é sustentável. Agora, não é bem essa a pergunta, mas sim se ela é conveniente, se é socialmente correta. Aí nós temos de examinar caso a caso. Eu sou contra abandonar radicalmente as hidrelétricas que o Brasil ainda pode construir. Os atuais projetos de Belo Monte e Rio Madeira são, em princípio, bastante aceitáveis. Mas há problemas em qualquer projeto.
Quando eu faço uma termelétrica, tenho, por cada megawatt/hora gerado, uma probabilidade de morte de alguém por doenças causadas pela poluição atmosférica. Nós já fizemos esse cálculo aqui na Coppe. Usando os dados estatísticos, dada uma usina termelétrica qualquer, podemos calcular quantas pessoas vão morrer por ano durante seu funcionamento, por respirar o ar poluído. As doenças podem ser até triviais, mas em algumas pessoas complicam-se devido a outras doenças, como diabetes, pessoas muito idosas, nenéns muito pequenos, pessoas que já estão se recuperando de alguma doença maior... elas podem morrer. Esse ponto é sempre omitido, porque isso vem de uma visão muito do hemisfério norte, que olha a Amazônia como uma espécie de reserva da humanidade.
Então eu concordo e discordo. Que o Brasil deve usar hidrelétrica, acho que deve. Não devem ser os americanos e europeus que vêm aqui dizer o que a gente vai ou não vai fazer – até porque eles levam o dinheiro da gente todo daqui e não sobra muito pra outras coisas. Segundo: eu não concordo que se deva fazer qualquer hidrelétrica. O critério social e ambiental deve ser levado em conta, inclusive impedindo – dentro de um mecanismo de decisão aberto e transparente – que se façam algumas hidrelétricas. O que eu discordo é do "a priori, não". Tenho uma ótima relação com o Movimento dos Atingidos por Barragens, discordo muitas vezes deles, mas acho que as reclamações que eles fazem são basicamente corretas – lá na Eletrobrás nos entendemos bastante bem.
Rets - Em relação a outras energias renováveis, como biomassa, energia eólica...
Luiz Pinguelli Rosa – São caríssimas!
Rets - O Proinfa [Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica] contempla tudo isso...
Luiz Pinguelli Rosa – É caríssimo! É a Eletrobrás que paga tudo. Ele tem um custo muito maior do que o custo médio de energia no Brasil. O que eu concordo é que deve haver um esforço muito grande de barateamento, nós não podemos suportar um preço muito elevado na energia. O dinheiro é escasso. Se você põe muito dinheiro numa coisa, deixa de pôr em outra, ainda mais com essa atual política de contenção de gasto público. Por causa disso não se faz hospital e está morrendo gente. O senhor Joaquim Levy [secretário do Tesouro Nacional] mata, no Brasil, algumas pessoas por ano, por conta dos hospitais que não funcionam porque ele corta o dinheiro. Então não podemos ser perdulários e achar que tudo que a gente imagina vai ser feito, porque o recurso é escasso. O que não quer dizer que um esforço imenso não possa ser feito para baratear energias alternativas e para viabilizar várias delas. E não são necessariamente tão caras. Deve haver um confronto, sempre numa avaliação técnica e econômica, dessas diversas fontes de energia. Eu não sou a priori a favor, nem a priori contra nenhuma. Porque mesmo as alternativas, quando você vai ver, no frigir dos ovos, têm impactos ambientais.
Se você encher o Brasil de coletores solares, não tenha dúvida de que vai ter problemas de microclimas. Onde há edifícios altos, a eficiência dos coletores não é muito grande, porque o metro quadrado por habitante é pequeno, as pessoas se empilham em edifícios altos e não há como ter energia solar que dê conta disso. Se você vai colocar ainda em outras áreas, começa a ter problemas de microclima, sem falar nos materiais, pois você tem de fazer e transportar o coletor. Há, portanto, que considerar, em qualquer forma de energia alternativa, impactos que estão escondidos, na medida em que elas são muito pouco usadas. Quando se tornam muito usadas, esse impacto aparece com clareza.
A energia nuclear, na época em que foi muito defendida, era vista como energia limpa, porque gasta pouquíssima quantidade de material. Você gasta aí por ano, em Angra 1, umas 20 toneladas de urânio. Isso é pouco. Se tivesse uma usina termelétrica ali, ia gastar muitos milhares de toneladas de óleo ou gás natural. Mas a gente sabe dos problemas da radioatividade, do lixo radioativo e do acidente nuclear, que foram ficando mais claros depois que os reatores já existiam. Ninguém pensou muito nisso antes.
Então todas as tecnologias têm um lado perverso. A hidro-eletricidade tem? Claro que tem, e deve ser discutida perfeitamente. Devem ser proibidas algumas usinas, desde que sejam devidamente estudadas e cheguemos a essa conclusão com argumentos objetivos. Você pode dizer não, mas é preciso confrontar todas, porque há muita ilusão sendo vendida e cada um puxa a brasa para a sua sardinha.
Rets - O governo informou recentemente que a partir do próximo ano as contas de energia elétrica devem começar a ter uma redução, mas não diz de que forma isso vai ser possível. O consumidor pode esperar alguma coisa nesse sentido?
Luiz Pinguelli Rosa – Tomara que haja isso, porque há dois movimentos diferentes. O governo manteve todos os contratos muito onerosos ao consumidor que foram feitos pelas grandes companhias controladas por grupos estrangeiros que vieram para o Brasil. Existe uma energia muito cara que está sendo colocada na conta do consumidor. Pior: que tomou o lugar de energia barata que Furnas gera. Algumas empresas têm usinas desligadas e sendo remuneradas, e o governo manteve isso. Então a energia aumenta. Agora, tem uma energia barata dessas grandes estatais, como Furnas, que estão sendo empurradas a vendê-la muito barato. Nós repetimos um pouco a fórmula dos governos militares, em que o Estado vendia barato a energia elétrica para as multinacionais ganharem muito dinheiro no Brasil vendendo caro os produtos que elas faziam. O que está havendo hoje no Brasil é que, para entrar a geração cara privada, está sendo empurrado o preço da energia do grupo estatal Eletrobrás para baixo. Esse vai ser o primeiro movimento que vai se dar no ano que vem. Eu não sei quem vai ganhar: se o caro ou o barato.
Rets - O senhor falou há pouco na energia nuclear e o acordo Brasil-Alemanha que viabilizou a usina de Angra dos Reis está quase completando 30 anos. A Alemanha já declarou que não pretende financiar Angra 3 e o senhor propunha que fosse feita uma parceria com a iniciativa privada...
Luiz Pinguelli Rosa – Não foi bem isso, não.
Rets - Então me corrija, por favor.
Luiz Pinguelli Rosa – A Siemens Nuclear não é mais alemã. Os alemães venderam para os franceses, então é natural que os alemães não financiem mais uma coisa que não é do interesse comercial deles. Não é tanto por bondade, não, é também frieza. Quem financiaria seriam os franceses. Agora, eu não acho possível que a Eletrobrás colocasse os recursos que ela tem para uma obra a ser completada. Eu achava que o assunto tinha de ser colocado dessa forma. Se a iniciativa privada quer, ela deve investir. Como viabilizar isso, sim, porque, como a nuclear é monopólio da União, eu achava que teria de se encontrar uma fórmula para que houvesse a compra da energia do reator por algum tipo de empresa interessada na sua construção. Se isso acontecer, de qualquer modo, não escaparia da decisão política, da análise ambiental. A decisão de fazer ou não Angra 3 é uma decisão política, de governo, e com base nos estudos que não foram nunca completados. Agora, se devia fazer... eu digo: não a Eletrobrás, porque aqui no Brasil privatizam o filé mignon e o Estado fica com o osso.
Nesse momento, a assessora de Comunicação da Coppe, Dominique Ribeiro, interrompe para enfatizar que o professor Pinguelli não refuta as energias de fontes alternativas, lembrando que ele foi responsável pela implantação, na própria Coppe, do Instituto Virtual Internacional de Mudanças Globais, onde foram iniciados no país, com mais ênfase, os testes para produção do biodiesel.
Luiz Pinguelli Rosa – Eu só não gosto é de vender ilusão. Cada uma tem seus problemas. A energia alternativa tem um espaço imenso de crescimento, mas seria injusto dizer: "vamos parar tudo e ser só energia alternativa". Não é possível. Quem disser isso está mentindo. Agora, é possível na Alemanha? Sim. Na Espanha também. Lá eles vivem um mundo diferente, tem energia sobrando. Você sabe o que eles fazem? Se faltar energia, eles compram a nuclear da França. A radioatividade fica com os franceses, a energia fica com eles. Veja como tem hipocrisia nesse mundo... os heróis têm pés de barro.
Rets - O Fórum Brasileiro de Organizações Não-Governamentais apresentou à ministra, ainda durante a Conferência de Bonn, a idéia de propor ao governo alemão que compre de volta os equipamentos de Angra 3, já que o Brasil continua pagando pela manutenção. A condição para isso seria que o Brasil aplicasse esses recursos em projetos de novas energias renováveis. O que o senhor acha dessa iniciativa?
Luiz Pinguelli Rosa – Não é manutenção, não. O Brasil comprou da Alemanha 800 milhões de dólares de equipamentos que estão armazenados. Se eles pagarem esses 800 milhões de dólares de volta e levarem os equipamentos, acho um grande negócio, fecharia hoje. E se é para fazer coisas de energia alternativa, ótimo.
Rets - O presidente Lula chegou ao poder cercado de uma grande expectativa dos movimentos sociais, até pelo fato de o Partido dos Trabalhadores ter origem nesses movimentos. E parte da sociedade vem revelando uma certa frustração com o desempenho do governo até aqui. Qual a sua avaliação?
Luiz Pinguelli Rosa – Eu acho que o governo tem aspectos bons. Ele conseguiu driblar a expectativa que se criou de uma crise no campo econômico e financeiro, controlar a moeda e a inflação e apaziguar o chamado mercado. Eu digo que o "zigue" foi ótimo. O que está faltando é o "zague". Supondo que o beque está na frente, você desvia da sua direção e volta pra chutar a gol. Nós conseguimos desviar, mas saímos de perto do gol, e aí é um problema. De qualquer modo, o governo acaba de ter êxito em questões ligadas à Organização Mundial do Comércio sobre os subsídios agrícolas. A própria política internacional brasileira fez um gol de dignidade ao se colocar contra a intervenção norte-americana no Iraque, e nem por isso o presidente Lula deixou de ser recebido e respeitado pelo próprio presidente Bush. Colocou-se com muita dignidade na questão da Venezuela, buscando uma solução que evitasse um confronto maior do que o que já estava havendo. O caso do Mercosul, sem dúvida nenhuma, a Alca, a relação com a Comunidade Européia... o Brasil tem feito um bom jogo diplomático, ampliou sua base de exportação... e não é só isso, nós poderíamos encontrar vários êxitos no governo. Agora, o arrocho salarial mantido, o salário mínimo, a questão dos funcionários públicos, da própria política macroeconômica conduzida por uma equipe ideologicamente totalmente defasada... porque o neoliberalismo é uma coisa velha, no mínimo do século 19, até do século 18. Se desse certo, todos os países ricos seriam seguidores, e não são. Não é necessário o Brasil se isolar, mas é necessário que tenha uma política interna tão corajosa quanto a sua política externa. E a política interna do Brasil treme de medo do mercado. Acho que já fez o "zigue", está faltando o "zague".
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