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Mantendo as raízes

Autor original: Marcelo Medeiros

Seção original: Os mais interessantes e ativos projetos do Terceiro Setor

Kitshia, dódesaka, šoá. Respectivamente, farinha, açúcar e lagarto. Décadas atrás, as primeiras palavras, originárias do tupi, eram bem conhecidas pelos índios pankararus, mas hoje ninguém as fala. Original do interior de Pernambuco, esse povo teve o mesmo destino de milhares de moradores do semi-árido: muitos rumaram para São Paulo em busca de uma vida melhor, deixando para trás a seca. Confrontados com a falta de oportunidades, vivem na pobreza, mas ainda tentam preservar o que resta de sua cultura por intermédio do trabalho de uma ONG recém-criada.

A Ação Cultural Indígena Pankararu surgiu oficialmente em março deste ano, mas funciona desde o fim de 2003 na favela de Real Parque, no Morumbi, zona sul paulistana. A comunidade possui cerca de quatro mil moradores, a maior parte vivendo no conjunto habitacional Cingapura. Lá moram aproximadamente 700 índios pankararu. O objetivo da entidade é desenvolver trabalhos que não deixem rituais típicos se perderem. “Precisamos nos organizar e correr atrás de nossos desejos. Nunca tivemos apoio de políticos ou da Funai [Fundação Nacional do Índio]”, reclama Dimas do Nascimento, líder comunitário e primeiro presidente da Ação Pankararu.

Por enquanto, nada foi feito devido à falta de apoio, mas projetos não faltam. Entre eles está a filmagem de um documentário que conte a história da migração e da adaptção dos índios à nova terra. A ONG também gostaria de mostrar os vínculos ainda existentes com os parentes nordestinos. Já há contatos sendo feitos com o Núcleo de Antropologia Visual da Universidade de São Paulo para tentar viabilizar a idéia. Outra idéia é produzir artesanato e vendê-lo em feiras. Isso seria feito com o envio de alguns jovens para a aldeia original, em Pernambuco. Lá eles aprenderiam as técnicas de produção e voltariam como monitores do projeto, que atenderia 20 pessoas. A ONG estima em R$ 17 mil o custo de levar adiante a atividade.

Há também vontade de organizar oficinas que ensinem os descendentes dos pankararus a utilizarem ervas medicinais no dia a dia e a confeccionar as vestimentas usadas nos rituais, bem como gravar um CD com as músicas entoadas nesses momentos. Os projetos foram escritos com ajuda do Senac-SP e da Faculdade Radial, que abriram suas salas para cursos voltados para elaboração de propostas. “O custo de todas os projetos são baixos, mas ainda não obtivemos nenhum patrocínio”, lamenta Nascimento.

História
A história dos pankararu se confunde com a de muitos nordestinos que fugiram da miséria em busca de uma vida melhor. A migração começou nos anos 50, quando grandes secas tornaram praticamente impossível a produção agrícola no sertão. De acordo com Dimas Nascimento, o primeiro índio da etnia a ir para a capital paulista o fez sozinho e chegou a trabalhar na construção do estádio do Morumbi. Conseguiu juntar dinheiro e voltou para a aldeia chamando mais gente.

O fluxo de pessoas se manteve constante desde então. “Mas aumentou bastante nos últimos seis ou oito anos”, analisa o líder comunitário, que chegou a São Paulo com 18 anos. Dezessete anos depois, não se arrepende da mudança, mas recorda com tristeza das dificuldades. “O grande problema foi sobreviver num ambiente completamente diferente do meu. Lá trabalhava na roça, aqui fui para a construção. E sofri muito com o preconceito por ser índio e nordestino”. No começo da migração, muitos foram prestar serviços na construção civil, mas hoje não há uma profissão na qual a maioria se encaixe. Há gente trabalhando como porteiro, segurança, no comércio. As mulheres, em sua maioria, são empregadas domésticas.

“Apesar de pobres, são pouquíssimos os que têm interesse em voltar para Pernambuco”, ressalta o antropólogo Renato Athias, professor de antropologia da Universidade Federal de Pernambuco e estudioso dessa etnia. “Em São Paulo, apesar de tudo, estão melhor do que no interior. Lá há pouca terra”, explica. Segundo o pesquisador, os pankarus, como também são chamados, ocupam uma área de 14.300 hectares às margens do São Francisco nos municípios de Tacaratu, Jatobá e Petrolândia. No entanto, parte do território possui muitas rochas, o que torna a agricultura inviável. “As melhores terras estão com posseiros”, alerta Athias.Ao todo são cinco mil pessoas, cujo trabalho se concentra na lavoura de subsistência. Na aldeia, assim como na capital paulista, ninguém fala mais a língua original da tribo.

A quantidade de pankararus morando em São Paulo é indefinida. A Funai diz não ter informações precisas, mas calcula que sejam por volta de mil. O Memorial do Imigrante, do governo de São Paulo, aposta em uma quantia semelhante -950. Nascimento acredita em um pouco mais: 1500. Metade estaria na favela de Real Parque, localizada à beira do rio Pinheiros, perto do bairro do Morumbi. “Quando vieram, ocuparam um terreno distante da parte urbana do município, onde hoje está a Real Parque. Com o crescimento da cidade, foram integrados ainda mais à nova realidade”, afirma o colaborador da ONG e também antropólogo Sérgio Pecci. Ele lembra que atualmente é difícil dizer quem é pankararu pois houve muita miscigenação com brancos, negros e outras etnias.

Por isso Renato Athias acha mais adequado identificá-los pelos rituais. “Dança, religião e artesanato estão interligados”, lembra. Eles possuem manifestações culturais como as danças do “Toré” e as celebrações do “Menino do Rancho”. Ambas envolvem espíritos protetores chamados de “encantados”, reverenciados em festas tradicionais. Sua manifestação é percebida na organização política e nas práticas de cura. A comunicação com as entidades é feita por meio dos “praiás”, homens que, vestidos com um tecido de fibra de palmeira da cabeça aos pés, incorporam os espíritos.

Dimas Nascimento diz ser difícil manter esses traços em São Paulo, principalmente entre os mais jovens, que acabam se interessando por outras culturas. Daí a necessidade de integrá-los ao trabalho da ONG. Athias, entretanto, vê a interação como algo normal. “Onde a identidade pankararu não será perdida, mas reelaborada”, prevê. Ainda assim, a Ação Cultural pretende conseguir um terreno com a prefeitura para realizar os rituais. Já estão reivindicando com outra associação indígena, a Associação SOS Pankararu, mais antiga, fundada em 1994, o direito à terra junto à prefeitura. “Eles têm direito à cidadania como brasileiros e como indígenas. Precisam aprender coisas novas e manter suas raízes”, resume Pecci.

Marcelo Medeiros

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