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Cultura da ilegalidade

Autor original: Mariana Loiola

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets





Cultura da ilegalidade


"Somos um país de ilegais". Essa é a opinião de Joaquim Falcão, advogado e professor de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Escola de Direito do Rio de Janeiro, da Fundação Getúlio Vargas. Sem conseguir exercer direitos garantidos pela Constituição - educação, saúde, moradia, trabalho etc. - uma parte cada vez maior da população brasileira vive na ilegalidade e na informalidade, argumenta o advogado. Em artigo publicado recentemente na Rets, Falcão mostra como as pessoas são, em muitos casos, "empurradas" para a ilegalidade pela burocracia e pelo próprio poder público, o que produz uma sólida cultura que acaba por comandar a vida nacional. "Somos desconstruídos como cidadãos e reconstruídos como reféns do Estado, ou melhor, dos governos, seja federal, estadual ou municipal", diz.

A constatação de Falcão foi feita, inicialmente, a partir de uma pesquisa sobre invasões urbanas em Recife, realizadas por flagelados da seca. "Essas pessoas invadiam terrenos para morar na cidade e os proprietários desses terrenos reclamavam o exercício do direito de propriedade", conta. Este caso, em que a legislação defende os direitos do proprietário mas não o de moradia, segundo Falcão, demonstra uma inadequação entre a lei e a realidade brasileira. "Assim como existe a exclusão social e a exclusão digital, existe também a exclusão legal", avalia.

À margem para sobreviver

Com a Constituição Federal de 1988, criou-se uma possibilidade de se construir um Estado mais favorável à cidadania e inclusivo, segundo Cunca Bocayuva, diretor da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase). Para conscientizar a população sobre os seus direitos e incentivá-la a reclamar o respeito ao que está na Constituição, a Fase realiza a campanha "O Brasil tem fome de direitos", lançada este ano. A campanha destaca a necessidade de aplicação do artigo 6, que prevê a garantia dos direitos sociais: "a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados". No entanto, Bocayuva reconhece a ausência de condições que facilitem a aplicação das leis. "Grande parte da população está à margem da lei não por opção, mas como condição de sobrevivência", acredita.

"Hoje, existem mais de 5 milhões de imóveis fechados e abandonados. Sem ter acesso à moradia adequada, a população de baixa renda busca cada vez mais as periferias e locais inadequados para morar. Mais de 2 milhões de domicílios estão em áreas favelizadas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)", ressalta Nelson Saule Júnior, relator brasileiro para o Direito Humano à Moradia Adequada, da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (DhESC), presidente do Instituto Pólis – Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais e membro da Coordenação do Fórum Nacional de Reforma Urbana.

Saule explica que a legislação e o planejamento das cidades dificultaram o acesso da população de baixa renda à moradia digna em áreas urbanizadas, em decorrência do custo da terra e dos empreendimentos imobiliários. "A política habitacional para essa população foi feita em lugares distantes dos centros urbanos e dos serviços públicos básicos", diz. Daí surgiram as ocupações espontâneas que não interessavam ao mercado imobiliário, como as favelas e os loteamentos irregulares, que passaram a ser considerados irregulares por não atenderem a legislação em sua infra-estrutura, além de oferecer riscos para os moradores e para o meio ambiente. Para mudar esse quadro, Saule defende a regularização dessas áreas, a criação de alternativas de moradia digna para a população e a efetivação da aplicação do Estatuto da Cidade, aprovado em 2001.

Os preços altos das tarifas cobradas pelos serviços públicos também são responsáveis por levar a população a cometer atos contra a lei, como as ligações clandestinas ("gatos" ou gambiarras). Atualmente, a telefonia é o alvo de duas campanhas promovidas pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec): uma contra os reajustes das tarifas abusivas nesse setor e outra pela suspensão da cobrança mensal de assinatura dos telefones fixos, considerada ilegal pela entidade. "Estamos questionando na justiça a legalidade dessas taxas, que não correspondem à realidade brasileira", diz Marcos Diegues, advogado do Idec. A polêmica levantada pelo Idec mostra o quanto é importante a garantia de serviços públicos de qualidade a toda a população, na opinião do advogado. "É preciso tratar os serviços essenciais como de fato são", ressalta.

Compromisso com a aplicação das leis

Diversas formas de ilegalidade são conseqüência da falta de compromisso com a implementação dos direitos no Brasil, que começa na própria elaboração das leis, de acordo com Jayme Benvenuto Lima Jr, coordenador do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop). "No Brasil, existe uma cultura de elaboração de leis que o país não tem condições de cumprir. É uma política retórica. Não estão preocupados com o cumprimento das leis", critica. A solução, para Benvenuto, é estabelecer metas para as questões sociais e não leis genéricas. "Mais do que apresentar propostas, os projetos de leis precisam ter metas", completa.

Benvenuto ressalta que o artigo 6 da Constituição atribui ao Estado a obrigação de cumprir uma série de direitos sociais, mas que não existem condições para garanti-los a todos os cidadãos. "Melhor seria se as leis fossem desenhadas para grupos historicamente vulneráveis e, dentro desses grupos, grupos ainda mais vulneráveis, como as mulheres negras, por exemplo", propõe. Uma das linhas de atuação do Gajop, segundo Benvenuto, tem como objetivo justamente a inclusão social de grupos mais vulneráveis. "Participamos de conselhos, fóruns, Plataforma DhESC etc., visando um alcance maior de direitos sociais e a inclusão social desses grupos", afirma.

Excesso de burocracia

Aliada à desigualdade socioeconômica, a burocracia reforça o processo de desencadeamento da ilegalidade e do mercado informal no Brasil, segundo Joaquim Falcão. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revela que os trabalhadores sem carteira assinada e por conta própria representaram 46,6 % da população ocupada em 2002, acima dos 43,8 por cento observados em 1992.

Sonegação de impostos, desrespeito aos direitos trabalhistas e a normas ambientais pelas empresas algumas vezes também são conseqüências da burocracia. "Com o conjunto de exigências desnecessárias e difíceis para abrir e para fechar uma pequena empresa, por exemplo, muitos preferem não se legalizar. Por causa do excesso de burocratização, a maioria está fora da lei. Assim, diante dos fiscais e das autoridades, você não é um cidadão, é um ilegal em potencial", diz.

Por criar mais uma burocracia para as instituições sem fins lucrativos, o projeto de lei que propõe o Cadastro Nacional de ONGs (CNO), em tramitação no Congresso, é vista por Falcão como a "crônica de uma ilegalidade anunciada". "Há muitas associações pequenas no interior país sem recursos, conhecimento e pessoal especializado para cumprir as exigências do cadastro", alerta.

A solução para conter a cultura da ilegalidade no Brasil, de acordo com Falcão, é fazer leis que contemplem a diversidade brasileira e responsabilizar o Estado quando houver excesso de burocratização. O papel da sociedade civil é sintetizado pelo advogado em uma palavra: mobilização.

Mariana Loiola

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