Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original: Artigos de opinião
Carmen Diana Deere e Magdalena León*
Uma das maneiras pela qual as mulheres foram excluídas como beneficiadas diretas nas reformas agrárias da maioria dos países da América Latina no passado foi por não serem chefes de família. As práticas legais e culturais favoreciam a designação dos homens como chefes, motivo pelo qual eles foram os beneficiados da posse da terra nas reformas. Essa prática foi reforçada porque a agricultura era considerada uma ocupação masculina e pela existência de uma ideologia familista que assumia que ao beneficiar o chefe da família, todos os seus membros também se beneficiariam. O peso dos mecanismos de exclusão legais, estruturais, culturais e institucionais foi tanto que até mesmo mulheres chefes de família foram também sub-representadas entre os beneficiados.
Um dos principais avanços quanto aos direitos da propriedade da mulher rural na América Latina nos anos noventa tem sido a adjudicação e titulação da terra conjunta a casais. Esta representa um avanço para a igualdade de gênero ao estabelecer explicitamente que a propriedade pertence a ambos, e que, portanto, o casal tem que estar de acordo nas decisões sobre o seu uso e disposição, seja quanto a sua venda, aluguel ou hipoteca. Também protege as mulheres de serem desapropriadas como resultado de abandono, separação ou divórcio e, no caso de enviuvar, de serem deserdadas. Além disso, a titulação a casais aumenta o poder de barganha das mulheres e fortalece a sua participação na tomada de decisões no lar e na unidade produtiva.
Outra política pública que vem favorecendo a posse da terra pelas mulheres é a prioridade que alguns programas de reforma agrária têm dado a mulheres chefes de família. Isso pode ser considerado um mecanismo pró-ativo de inclusão, pois busca superar a discriminação sofrida por elas no passado, provendo ainda proteção especial aos lares rurais mais vulneráveis.
Entre 1988 e 1995 cinco países da América Latina incluíram em sua nova legislação agrária normas a favor da adjudicação e titulação conjunta a casais. Na Colômbia, Costa Rica e Nicarágua é um requisito, independentemente de seu estado civil. No Brasil e em Honduras é apenas uma opção que um casal pode pedir. Colômbia e Nicarágua, em seus programas de distribuição de terras, também dão prioridade às mulheres chefes de família.
Desde a Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher em Pequim, em 1995, o Peru adotou a titulação conjunta a casais como requisito em seu programa de titulação de terras, mas somente para casais legais; atualmente, continuam sendo realizados esforços para beneficiar os integrantes de uniões consensuais, tornando-os co-proprietários. A República Dominicana também estabeleceu como um requisito em seu programa de titulação de terras a titulação conjunta, tanto para casais legais, quanto para uniões consensuais. A Guatemala adotou a mesma regulamentação em sua legislação de 1999 ao criar um banco de terras. Também o Equador agora exige em seus programas de titulação, a titulação conjunta de terra a casais legais e facilita a co-propriedade às uniões consensuais. Em El Salvador a titulação conjunta a casais é proposta nas três versões do novo código agrário ainda em discussão.
Nos países onde vêm sendo adotados e implementados mecanismos de inclusão da mulher, a porcentagem de mulheres beneficiadas tem aumentado notavelmente em comparação com os resultados das reformas agrárias do passado. Na Colômbia, por exemplo, durante todo o período de vigência da reforma agrária, de 1961 a 1991, as mulheres só representaram 11% dos beneficiados. Quando começou-se a aplicar a adjudicação e titulação conjunta a casais, em caráter obrigatório, junto com a prioridade a mulheres chefes de família como beneficiadas, essa porcentagem subiu para 45% (1995-98).
No caso da reforma agrária sandinista, na Nicarágua, onde a lei procurou garantir a participação das mulheres, a porcentagem de beneficiadas foi de apenas 10% entre 1979-89. Após a adoção de mecanismos de inclusão explícitos, tal como a titulação conjunta e a prioridade a mulheres chefes de família, essa porcentagem subiu para 29% (1993-98). Comparativamente, no Brasil, onde a adjudicação de terra conjunta a casais é só uma opção, segundo o Primero Censo da Reforma Agrária, as mulheres representam apenas 12,6% dos beneficiados diretos.
Na maioria dos países da América Latina as reformas agrárias Bbaseadas na expropriação ou compra da terra pelo Estado para sua redistribuiçãoB já foram concluídas. Esses governos concentram sua atividade no setor rural em projetos de titulação da terra para estabelecer a garantia da posse e fomentar um mercado de terras mais eficiente. Tais programas somente podem beneficiar os camponeses que já possuem terras. Na América Latina quase todas as mulheres proprietárias de terra a adquiriram por herança, não através de programas de reforma agrária ou comprando-a no mercado. De qualquer forma, os países que adotaram medidas obrigatórias de inclusão da mulher nos títulos sobre a terra como um apoio à igualdade de gênero, estão beneficiando um número maior de mulheres do que os países que assumem que os projetos de titulação são neutros quanto ao gênero.
O programa chileno de titulação de terra para pequenos proprietários deu prioridade às mulheres chefes de família, favorecendo-as, por exemplo, em disputas familiares sobre a propriedade da terra. Os dados revelam que as mulheres representaram 43% dos beneficiados entre 1993-96. Um programa de desenvolvimento rural no Equador, o PRONADER, deu prioridade à titulação conjunta a casais, independentemente do seu estado civil. Nesse programa, as mulheres representaram 49% dos beneficiados entre 1992-96. Essa elevada participação das mulheres como beneficiadas não teria sido possível em nenhum dos casos mencionados sem a existência de padrões de herança favoráveis às mulheres. Entretanto, a adoção de mecanismos de inclusão obrigatórios nesses programas permitiu a superação do sexismo institucional e a oposição dos familiares homens. Isso é evidente ao se comparar o resultado desses programas com os de Honduras e México, países que ainda não têm mecanismos de inclusão obrigatórios. Em Honduras, as mulheres representam somente 25% (1995-97) e, no México, 21% (1993-97) dos beneficiados nos programas de titulação.
Infelizmente, muitos países ainda não coletam dados sobre seus beneficiados por sexo (inclusive o Brasil), o que impede uma avaliação global dos diversos mecanismos para fortalecer os direitos da mulher à terra. De qualquer forma, os dados disponíveis reafirmam a conclusão que os códigos agrários (ou constituições, no caso do Brasil) que asseguram os direitos formais da mulher à terra são uma condição necessária, mas não suficiente para garantir às mulheres a propriedade da terra. Para fortalecer o direito da mulher à terra é indispensável a existência de mecanismos de inclusão que sejam requisitos legais. Além disso, é necessário que as mulheres rurais estejam conscientes de seus direitos e os exijam, bem como a existência de organizações de mulheres rurais fortes para respaldá-las.
A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados.
Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer