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Perversão silenciosa

Autor original: Mariana Loiola

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Capa do cartaz do curta metragem: A Escuta do Silêncio


O filme que retrata pela primeira vez o universo perverso do incesto visto pelos olhos da criança tem produzido um grande impacto em profissionais de diversas instituições que lidam com ese tema no país. "A escuta do silêncio", curta-metragem produzido pela Clínica Psicanalítica da Violência, sintetiza uma pesquisa realizada com mais de 850 crianças em tratamento na clínica, que funciona há oito anos no Rio de Janeiro.

"Que esse filme sirva de alerta a toda sociedade (...) e que o silêncio não mais permita que crianças e adolescentes continuem sendo mero objeto sexual": este é um exemplo dos comentários emocionados que chegam à clínica, feitos por profissionais que assistiram ao filme.

O curta integra o material multimídia "Psicanálise e violência", produzido com o apoio da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, da World Childhood Foundation do Brasil (WCF), da Ashoka Empreendedores Sociais e da Medicus Mundi da Itália. O material foi elaborado para ser utilizado em capacitações, sensibilizações nas universidades, instituições governamentais e não-governamentais. A clínica pretende, assim, mobilizar e formar especialistas para intervir nos casos de violência sexual, seja na forma de denúncia, de diagnóstico e tratamento médico, de acompanhamento jurídico-social ou de tratamento psicológico e psicanalítico.

A psicanalista Graça Pizá, diretora da clínica e fellow da Ashoka, conversa sobre a dificuldade de diagnosticar e tratar crianças vítimas de violência sexual no ambiente familiar e sobre a importância de mobilizar profissionais de diversas áreas para lidar com um assunto considerado ainda um "tabu universal". Graça fala também sobre a formação de uma rede de atendimento psicossocial a crianças e adolescentes expostos à violência sexual.

Rets - O abuso sexual cometido dentro de casa é o tipo mais sério de violência sexual contra crianças e adolescentes, mas recebe pouca atenção das autoridades, segundo o presidente da Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia), Lauro Monteiro. Você concorda com essa opinião?

Graça Pizá - A violência sexual dentro de casa se chama incesto. E, como sabemos, é um tabu universal, muitas vezes negado pela sociedade. Até a mídia parece ter medo de publicar essa palavra. É um segredo de família, uma perversão silenciosa. É cruel o cenário de um lugar onde encontramos uma criança isolada, com medo, vergonha e silêncio imposto. Esse segredo de família absorve todas as forças com intensa angústia. Ali vemos uma criança ser transformada em objeto-fetiche. É um silêncio-armadilha em que os lugares parentais estão trocados. O pai não está no lugar simbólico de pai (porque ele não deseja ocupar este lugar, nega, recusa), a mãe não suporta a maternidade e a criança odeia estar ali como criança, porque para ela é signo de inexistência (sua palavra não vale nada para ninguém, tudo que ela diz é considerado fantasia).

Sendo assim, as autoridades não têm como chegar aí. Fica difícil fazer políticas públicas para combater esse problema. O que nós podemos fazer é denunciar, permitir que a criança fale da violência que está sofrendo e compreenda o que está acontecendo, para ajudá-la a sair dessa situação.

Rets - Quais são as maiores dificuldades encontradas no diagnóstico e no tratamento dos casos de incesto?

Graça Pizá - A maior dificuldade é a própria perversão familiar e, por extensão, social e institucional, que destituem a palavra da criança, deixando-a ser transformada em objeto de gozo perverso. A criança que está marcada pelo signo do incesto não fala facilmente. Mas ela apresenta sinais e sintomas. Por isso é importante sensibilizar os especialistas, para que eles tenham uma escuta diferenciada e entendam a linguagem não-verbal da criança. Na análise, a criança encontra uma chance de compreender que aquilo não é amor, que aqueles pais não se comportam como pais e que a invasão e a destruição afetiva em forma de violência sexual é um crime hediondo. As chances de elaboração desse trauma ocorrem caso a caso.

Rets - A clínica deu início a uma rede especializada no atendimento psicossocial a crianças e adolescentes expostos à violência sexual. Como tem sido o funcionamento dessa rede?

Graça Pizá - A Rede Revirança foi criada em 2003. No início, 150 profissionais das áreas da saúde, educação e justiça, participaram de cursos realizados pela clínica. Hoje, todos fazem parte da rede. Desses, 45 especialistas (advogados, conselheiros tutelares, assistentes sociais, psicólogos, psicanalistas, professores e diretores de escolas) foram escolhidos para fazerem mais um ano de capacitação, para se tornarem referências nas instituições onde trabalham. O curso, que vai até dezembro, vai aprofundar conceitos relacionados ao incesto e ajudar a identificar as defesas dessas crianças. Estamos avançando também com uma capacitação a longa distância com o projeto "Psicanálise e violência".

Rets - O material multimídia "Psicanálise e violência" visa sensibilizar especialistas de instituições de todo o país. Você pode me falar um pouquinho do seu conteúdo?

Graça Pizá - O conteúdo deste material é a síntese de um trabalho de pesquisa clínica e social de 28 anos de intensa atividade psicanalítica tratando crianças expostas à violência e à crueldade humana. É composto pelo livro "A violência silenciosa do incesto" - editado com o importante apoio da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e que reúne estudos de diversas áreas sobre esse tema -, pelo curta-metragem "A escuta do silêncio: o incesto através do olhar da criança em análise" e por um CD interativo sobre o tema.

Rets - O filme "A escuta do silêncio" tem provocado uma grande repercussão entre instituições de diversas regiões do país. Como ele foi produzido?

Graça Pizá - "A escuta do silêncio" surge de um trabalho publicado em 1982 com esse nome. O roteiro foi escrito por mim, a partir da experiência clínica e dos prontuários de mais de 853 casos de violência sexual atendidos. Foi produzido com o apoio da organização Medicus Mundi, da Itália, e com o incrível trabalho de todos os personagens-atores mirins (filhos de amigos nossos) e músicos que doaram seu trabalho para este projeto. Em especial os músicos Michel e Bernardo Bessler (da Orquestra Sinfônica Brasileira) e Marie Christine Springuel, que criaram a suíte "A escuta do silêncio", trabalho belíssimo que dá vida às imagens e aos textos.

A audiência do filme deve estar em torno de 4 mil pessoas, em vários estados e países - Canadá, Índia, Itália, Guianas, Argentina, Paraguai, EUA, Suécia etc. O presidente Lula também assistiu e enviou uma linda carta para nós. O filme já faz parte do acervo da Diretoria de Documentação Histórica do Palácio do Planalto desde junho deste ano.

Mais informações sobre o material multimídia "Psicanálise e violência", a Rede Revirança e o trabalho da Clínica Psicanalítica da Violência podem ser obtidas pelo correio eletrônico cliviol@uol.com.br.

Mariana Loiola

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