Autor original: Fausto Rêgo
Seção original:
![]() | ![]() |
No último dia 26, organizações e movimentos sociais que trabalham com doenças sexualmente transmissíveis e Aids realizaram, em diversos estados, manifestações para denunciar problemas que vêm afetando seriamente a assistência aos portadores de HIV. Sob o lema "Onde está o melhor programa de Aids do mundo?", os manifestantes protestaram contra a falta de medicamentos, leitos hospitalares, preservativos e exames de carga viral – fundamentais para que se acompanhe a evolução da infecção.
As queixas principais se voltam contra o descaso do poder público, particularmente nos estados e municípios – que têm se mostrado incapazes de cumprir o que determina a lei, prejudicando a execução de um programa internacionalmente reconhecido e elogiado. Embora há quatro anos tenha sido aprovada a Emenda Constitucional nº 29, que estabelece percentuais mínimos a serem aplicados no Sistema Único de Saúde (SUS), pela União e pelos governos estaduais e municipais, isso, em geral, não vem ocorrendo. Por isso a nova luta passou a ser pela aprovação do Projeto de Lei 01/2003, que regulamenta a emenda.
Gabriela Leite, presidente da organização não-governamental Da Vida, membro da Secretaria do Fórum de ONG/Aids do Estado do Rio de Janeiro e da coordenação nacional da Rede Brasileira de Profissionais do Sexo, reclama que estados e municípios precisam assumir responsabilidades em um processo de descentralização do Programa Nacional de DST e Aids. Ela reconhece que isso vem sendo tentado, mas observa que ainda existem problemas. "Aqui no estado do Rio foi feita uma concorrência para projetos de organizações não-governamentais, já dentro desse programa de descentralização, só que os recursos não vieram. A verba foi liberada em Brasília, mas ainda não chegou, e isso já faz uns dois meses".
Nesta entrevista, concedida durante a manifestação, Gabriela Leite expõe as principais queixas da sociedade civil, que ao longo da semana vai decidir os próximos passos de uma agenda de mobilização. Em pauta, a elaboração de uma pesquisa nacional para apresentar a situação da assistência aos portadores do vírus HIV em cada estado.
No dia seguinte à mobilização, o Ministério da Saúde divulgou nota oficial assinada pelo diretor do Programa Nacional de DST e Aids, Pedro Chequer. A nota [que pode ser lida na íntegra no link ao lado] reconhece a atuação da sociedade civil como "instância de controle social, apontando oportunamente os problemas e colaborando com o governo na busca de estratégias e soluções que visem à garantia dos direitos constitucionais do cidadão". Chequer informa as medidas do Ministério da Saúde para atender às reivindicações dos manifestantes. Entre elas, a decisão de assumir, durante os próximos quatro meses, o abastecimento integral de medicamentos para doenças oportunistas nos estados que enfrentam dificuldades. "Ao final dos quatro meses, se o estado não tomar a decisão político/administrativa de implementar o acordo há muito pactuado", diz o comunicado, "o abastecimento continuará a ser garantido pelo Ministério da Saúde. No entanto, os recursos gastos com esta finalidade serão deduzidos dos repasses financeiros que o Ministério da Saúde credita mensalmente a título de incentivo a estas instâncias".
Rets – O Programa Nacional de DST e Aids sempre foi tomado como um modelo, uma referência internacional. Quer dizer, então, que não é bem assim?
Gabriela Leite – Até é um modelo. Estive recentemente em Bancoc, na Tailândia, para a 15ª Conferência Internacional de Aids, e o programa brasileiro ainda é considerado exemplar e revolucionário. Mas se tornou, perante todo o sistema de saúde, uma coisa isolada. O erro foi não descentralizar as ações. Muitos estados não têm nada. Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, faltam leitos e medicamentos e é uma situação que se repete em todo o Brasil. A manifestação que estamos fazendo tem uma abrangência nacional, mas com cada estado falando da sua situação específica. Aqui no Rio falta exame de carga viral, faltam medicamentos, mas o governo do estado cria farmácias populares que vendem remédios a um real e o governo federal apóia. Ora, o acesso a medicamentos é uma questão de saúde pública e direito de todos, ninguém precisa pagar um real.
Enfim, o programa brasileiro pode ser o melhor do mundo na filosofia, mas precisa corrigir esses problemas.
Rets – Já que você mencionou o evento de Bancoc, como foi a participação brasileira na conferência e como você analisa a gestão do Programa Nacional de DST e Aids atualmente?
Gabriela Leite – O programa está num momento de mudança [Pedro Chequer assumiu a direção, em substituição a Alexandre Grangeiro] e estão tentando rearticular uma série de questões, principalmente esse problema da descentralização. Durante todos esses anos, só para você ter uma idéia, o governo federal comprou preservativos e distribuiu para os estados. Estávamos vivendo, esse tempo todo, com preservativos vindos de Brasília. Mas agora todos os estados são obrigados a fornecer. Acontece que, por causa da Operação Vampiro [operação da Polícia Federal para desmantelar esquema de fraudes em concorrências públicas na área da saúde], as licitações foram suspensas. Isso quer dizer que logo vai começar a faltar preservativo. Mas os estados não foram atingidos pela Operação Vampiro, portanto eles podem fornecer.
Quanto à conferência, realizamos várias mesas com a participação de populações específicas que são vítimas da Aids, como prostitutas e homossexuais, e isso foi mais um exemplo brasileiro para o mundo. Mas há um problema sério acontecendo e que foi discutido por lá: os Estados Unidos estão tentando disseminar na África e na Ásia uma metodologia chamada ABC [sigla para "abstinência, fidelidade e, em último caso, preservativo"], que coloca o preservativo como última hipótese e defende um tipo de comportamento que volta àquela valha idéia de grupos de risco. Eles pregam a abstinência e a não relação com prostitutas e homossexuais. E acabam tendo um certo sucesso na difusão desse modelo, afinal há muito dinheiro envolvido e eles injetam muitos recursos nesses países, que começam a aceitar esse tipo de coisa. Aliás, é uma política que a Usaid (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento) adota há bastante tempo. E só agora a gente percebe como eles conseguiram introduzir suas políticas nos nossos países.
Rets – A maior parte das críticas que as organizações envolvidas nessa mobilização estão fazendo ao programa tem fundamento na falta de recursos. A Emenda Constitucional nº 29 não resolveu o problema. Por que vocês acreditam que o PL 01/2003, que regulamenta a emenda, pode resolver?
Gabriela Leite – Porque toda lei só funciona se você conhecer, acompanhar e lutar por ela. Nós estamos lutando por isso, como sempre estivemos. Estamos monitorando, enviando carta às autoridades. E é preciso acompanhar de perto. O projeto do SUS (Sistema Único de Saúde), por exemplo, é maravilhoso, mas não funciona. E a gente precisa lutar para que o programa de saúde funcione, temos de pressionar. Acho – e esta é uma opinião exclusivamente minha – que se a classe média passasse a freqüentar haveria uma possibilidade de mudança maior, mas ela está indiferente. No princípio, quando a epidemia de Aids começou, foram as pessoas de classe média que começaram a ser atingidas e se mobilizaram.
Rets – O Programa Nacional de DST e Aids sempre se caracterizou por um diálogo e uma parceria com a sociedade civil. Isso mudou?
Gabriela Leite – Isso continua, não mudou. Continuamos juntos na área de prevenção, assistência e nas casas de apoio, mas é complicado. Aqui no estado do Rio foi feita uma concorrência para projetos de organizações não-governamentais, já dentro desse programa de descentralização, mas os recursos não vieram. A verba foi liberada em Brasília, mas ainda não chegou, e isso já faz uns dois meses.
Rets – A manifestação nacional vai ser acompanhada de outras ações?
Gabriela Leite – Vamos ter uma reunião durante a semana para elaborar a agenda dos próximos passos. Estaremos juntos no Congresso Brasileiro de Aids, em Recife [de 29 de agosto a 1º de setembro] e vamos trabalhar nisso. Devemos produzir também uma pesquisa para mostrar detalhadamente como está a situação em cada estado.
Rets – Há uma previsão de quando essa pesquisa estará pronta?
Gabriela Leite – Talvez em dois meses. E nossa intenção, nosso desafio, é trazer outros grupos para essa luta, que é comum a todos: tuberculosos, pessoas com hepatite... queremos todos juntos.
Rets – Aproveitando a frase que vocês estão usando como lema na manifestação: onde, afinal, está o melhor programa de Aids do mundo?
Gabriela Leite – O melhor programa é aquele que trabalhe junto com a sociedade civil e em que cada vez mais ela se fortaleça. Continuo achando que o programa brasileiro ainda é o melhor, mas é preciso corrigir os seus problemas.
Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer