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Situação de rua – e de risco

Autor original: Mariana Loiola

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets





Situação de rua – e de risco
Latuff

Ódio, intolerância, fanatismo – várias hipóteses têm sido levantadas para explicar a motivação para a barbárie ocorrida na última semana nas ruas da capital paulista. O crime chama novamente as atenções da sociedade e dos políticos para a vulnerabilidade das pessoas em situação de rua. Desta vez, quinze pessoas foram agredidas a pauladas enquanto dormiam na rua; seis morreram e nove estão internadas em estado grave. Trata-se do maior ato de violência praticado contra pessoas que vivem nas ruas, em São Paulo, e o maior no país, desde a chacina da Candelária, no Rio de Janeiro, em 1993, no qual oito crianças e adolescentes morreram fuzilados.

Além de extermínios como esses, as pessoas que vivem nas ruas estão diariamente expostas a situações resultantes da falta de condições que lhes garantam dignidade e a integridade, a começar pela falta de acesso a serviços fundamentais para a sua inclusão social.

Infelizmente, apesar de chocarem a população em geral e de terem grande repercussão na mídia e, muitas vezes, no exterior, esses episódios não são sucedidos por ações que evitem outros semelhantes, como observa o coordenador nacional do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), Ademar de Oliveira Marques.

"É obvio que, em época de campanha eleitoral, os candidatos usem essa barbárie para falar da ausência de políticas públicas estruturantes que garantam condições dignas de vida, como está escrito na Constituição. Há anos o MNMMR denuncia essa situação. Desde a chacina da Candelária, qual foi a política implementada para essa população? Só existem ações paliativas, assistencialistas, que não resolvem o problema. O Fundo de Combate à Pobreza, por exemplo, não atende à população mais desfavorecida, que é a população de rua. Essa questão não pode ser assumida só no discurso, mas sim na destinação de recursos", alerta Ademar.

Aliada à ausência de uma política de segurança efetiva, a falta de condições para higiene básica e alimentação contribui ainda mais para a vulnerabilidade dessa população. "Como o Programa Fome Zero atende à população que está comendo nas latas de lixo?", questiona.

Atualmente, o MNMMR planeja a realização de um senso para contabilizar quantas crianças e adolescentes estão em situação de rua, e trabalha na construção de uma política para a população em situação de rua, com base em experiências exitosas que tiveram a participação do movimento. "Estamos buscando apoio para essas propostas", diz o coordenador do MNMMR.

A responsabilidade é do conjunto das três esferas do governo (municipal, estadual e federal) e da sociedade civil, segundo Ademar. "Muitos têm a idéia de ‘limpar as ruas desse mal’ em vez de cobrar ações do poder público".

Políticas públicas e articulação

A necessidade de políticas públicas é unanimidade entre as entidades que trabalham com os sem-teto. "A dimensão do problema vai além da assistência social. Falta um trabalho integrado nas áreas de educação, saúde, habitação, trabalho etc. Nossa organização consegue atender o aspecto de geração de renda. Mas, se não houver articulação entre Estado e sociedade civil, essa questão não será resolvida. Nenhuma instituição sozinha será capaz de solucionar esse problema. É preciso haver uma articulação para a elaboração e monitoramento de políticas públicas", ressalta Luciano Rocco, presidente da Organização Civil de Ação Social, que edita a revista Ocas, alternativa de renda para os sem-teto.

A revista Ocas, que completou dois anos em julho, garante hoje a renda de 50 pessoas, no Rio e em São Paulo, com a venda da revista ao preço de R$2. "Esses vendedores são quase como educadores da população, pois mostram que nem todos que estão na rua estão na criminalidade, como muitos costumam pensar. Faz parte da nossa missão desconstruir esse estigma", diz Luciano.

A mudança de vida dos vendedores e vendedoras da Ocas é observada dia após dia. Segundo Luciano, vinte deles já pagam por moradia - alugam um quarto de pensão, por exemplo. "A média de renda dos vendedores obtida com a venda da revista é de R$ 400 por mês. Alguns chegam a ter uma remuneração de até R$700 por mês", afirma. Tratamento dentário e tratamento contra dependência química também fazem parte da nova vida de algumas dessas pessoas. Muitas retomaram o contato com a família.

"A própria vida na rua já é muito difícil", ressalta o padre Júlio Lancellotti, dirigente da Comissão Pastoral de Rua da Igreja da Arquidiocese de São Paulo, que acompanha as investigações dos recentes assassinatos em São Paulo. "A solidão, a perda da família, a falta de afeto e de companhia são um grande sofrimento para essas pessoas", diz.

Há quase 30 anos, a Pastoral acolhe esse público e luta pela elaboração de políticas públicas voltadas para a população em situação de rua. Segundo Pesquisa da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) realizada em 2003, mais de dez mil pessoas dormem em ruas, praças, viadutos, vias expressas, cemitérios e albergues da cidade de São Paulo. "Nós buscamos a aplicação do que está na lei, relativo a políticas que previnam o aumento da população que está nas ruas", afirma o dirigente da Pastoral, que participa da Comissão Permanente de Monitoramento das Políticas de Atendimento à População em Situação de Rua de São Paulo.

Sensibilizar o poder público e a sociedade para a questão da criança em situação de rua é um dos focos do Se Essa Rua Fosse Minha, do Rio de Janeiro (RJ). Criado há 15 anos por Herbert de Souza (Betinho) e quatro organizações não-governamentais, o projeto busca também se aproximar de crianças e jovens por meio da abordagem de rua. O objetivo é fornecer, através da arte-educação, subsídios para que eles encontrem outras estratégias de sobrevivência. "Mapeamos as necessidades e potencialidades de cada criança, para ajudá-la a sair das ruas", conta Claudio Barria, coordenador de projetos da ONG.

Se a equipe achar que a arte-educação não é a metodologia mais adequada para a criança, ela é encaminhada para outras instituições que integram a Rede Rio Criança, formada em 2001, quando 13 organizações que trabalham com crianças em situação de rua chegaram à conclusão de que nenhuma poderia resolver a situação sozinha e de que deveria haver uma sinergia para fortalecer as ações e discutir políticas públicas. "A Rede funciona com a idéia de complementaridade", explica Claudio.

Preconceito e indiferença

Quem está fora do sistema de consumo é visto como perigo para o resto da sociedade, na opinião de Claudio. "Há uma criminalização das classes mais pobres. Não há espaço na mídia para mostrar a organização e a solidariedade de comunidades de baixa renda, apenas a relação dessas com a violência. Isso aprofunda a separação entre as classes e reforça ainda mais o estranhamento em relação àqueles que vivem nas ruas", reflete.

O coordenador do projeto Meio-fio da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), Patrick Depienne, concorda: "Como essas pessoas estão sempre na rua, é fácil responsabilizá-las pela violência".

O preconceito da sociedade somado à indiferença do poder público coloca a segurança dessas pessoas cada vez mais em risco. "O desconhecimento sobre a realidade das pessoas, sobre os motivos que as levaram a viver nas ruas, sobre sua condição na maioria das vezes de trabalhadores, e não de ‘mendigos’, como é comum ouvirmos inclusive na mídia, dificulta a inclusão dessa população", de acordo com o coordenador do projeto Meio-fio. Esse projeto mantém uma equipe multidisciplinar diariamente nas ruas do Rio de Janeiro, levando cuidados de saúde e psicossocial a esta população.

"Nosso trabalho não é o de pressionar as pessoas a irem para um abrigo ou albergue. Nossa equipe escuta, dialoga com a população, encaminha-a para serviços de saúde ou sociais e tenta, em conjunto, fazê-la vislumbrar por sua própria iniciativa um caminho que a faça sofrer menos", explica Patrick.

A MSF, assim como Organização Civil de Ação Social, faz parte da Comissão Permanente de Monitoramento da Política de Assistência Social à População em Situação de Rua do Rio de Janeiro, que tem por finalidade acompanhar as políticas públicas de atendimento à população em situação de rua da cidade, ora monitorando as que estão em andamento, ora propondo novas.

"Em comparação com a situação geral na época em que iniciamos o projeto, no ano 2000, hoje já existe um apoio maior a essa população. Mas as pessoas continuam sendo vítimas do preconceito e de ações do governo como as ‘cata-tralhas’ (que recolhem os pertences dessas pessoas à força e os jogam num caminhão da Comlurb), o que demonstra uma falta de política pública adequada, de vontade real de fazer algo para elas", conclui Patrick.


Mariana Loiola

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