Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Artigos de opinião
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Este é o prefácio do recém-lançado livro "A democracia inesperada - cidadania, direitos humanos e desigualdade social" (Jorge Zahar Editor), do sociólogo Bernardo Sorj. O autor procura discutir a contradição entre o fortalecimento progressivo das organizações da sociedade civil e as dificuldades cada vez maiores dos governos democráticos para enfrentarem a crescente desigualdade socioeconômica.
Bernardo Sorj*
Fernando Henrique Cardoso, o presidente-sociólogo, de formação marxista, identificado na sua juventude com o Partido Comunista, foi duramente criticado pela esquerda por ter realizado um governo “neoliberal”, produto, segundo a maioria dos analistas, de uma opção por alianças políticas à direita. Porém a política econômica do início do governo do Partido dos Trabalhadores, liderado por um presidente-operário, assim como as reformas constitucionais por ele encaminhadas, tem dado continuidade à política do governo anterior.
O que está acontecendo? O novo governo do PT também é neoliberal? Para alguns, o presidente sofre as conseqüências do peso da herança econômica ou de uma assessoria falha orientada por modelos equivocados, promovidos pelos organismos financeiros internacionais. Existem ainda aqueles que chegam a formulações do tipo “o PT está no governo, mas não no poder”, divisão fundada na tradição evolucionária, que não diferencia entre governos democráticos, delimitados pela divisão de poderes e pelas regras do sistema representativo, de governos com controle discricionário do poder e da máquina do Estado.
Para boa parte dos simpatizantes do Partido dos Trabalhadores, não há explicações – somente um sentimento de orfandade. Esse sentimento é, com certeza, o melhor ponto de partida para enfrentar os novos tempos, pois reconhece implicitamente que a esquerda brasileira, nas últimas décadas, se construiu com um discurso “do contra”, da oposição fácil, que permitiu aglutinar tendências divergentes no interior do partido, mas que não explicava em que mundo vivemos, para onde vamos e o que é factível sonharmos um dia realizar.
O antineoliberalismo foi o álibi intelectual da esquerda para não ser contemporânea das transformações da sociedade brasileira. Quando a esquerda era marxista, podia ser criticada pelas eventuais falhas e erros que suas análises continham, mas apresentava uma visão afirmativa do mundo, do sentido das transformações em curso e das novas forças sociais envolvidas. O “Manifesto Comunista”, de Karl Marx e Friedrich Engels, publicado em 1848, ainda representa um dos esforços mais brilhantes de compreensão dos processos sociais desencadeados pela ação transformadora do capitalismo, manifesto(?) em que a crítica social não é substituída por um discurso de denúncia moralista e de idealização do passado.
Mas hoje os tempos são outros e exigem atitudes menos saudosistas e que enfrentem os ventos da história, que anunciam novos desafios e nem sempre sopram na direção desejada. Acreditar que as boas intenções subjetivas são suficientes para mudar a sociedade é uma afronta à experiência histórica, em particular vindo daqueles que passaram pela esquerda revolucionária.
O PT construiu-se sobre o tripé de uma visão de mundo que enxergava a classe social como organizadora do tecido social, o sindicato como principal articulador dos interesses dos trabalhadores e o partido político como formulador de utopias sociais e instrumento de transformação da sociedade. Mas a dinâmica do capitalismo e as mudanças no sistema internacional nas últimas décadas — em particular a derrota do comunismo — diluíram o papel organizador das classes sociais, diminuíram a importância dos sindicatos e fragilizaram os partidos políticos.
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Desde suas origens, a sociologia e o socialismo percorreram caminhos paralelos. Ambos são produtos da secularização da vida social, da transferência da legitimação do poder político, anteriormente fundado em forças sobrenaturais, para a soberania popular, e da crença de que a história é produto da ação humana e não de um desígnio divino. Tanto o socialismo como a sociologia estão marcados pela vontade de conhecer, controlar e orientar a mudança social. A perda da confiança na capacidade humana de reconstrução da sociedade transformou os sociólogos, na expressão de Bauman, de legisladores em intérpretes; e o socialismo, de uma ideologia orientada para o futuro, converteu-se, no momento atual, num vale de lamentações e ressentimentos em face de um progresso que já não é mais compreensível — nem parece “progresso”, pois o futuro aparenta encaminhar-se na direção errada.
A sociedade, porém, não pode viver sem marcos explicativos que ofereçam um sentido à ação social, que motivem as pessoas, que organizem suas percepções dos acontecimentos e justifiquem seus atos. O discurso dos direitos humanos veio ocupar o lugar das utopias políticas veiculadas pelos partidos, transformando o sistema clássico de representação, esvaziando os partidos políticos e transferindo para outros agentes sociais — organizações não-governamentais (as ONGs) — o papel de catalisadores da ação coletiva. O desafio deste livro é analisar esses processos a partir de um certo recorte da realidade que, destino da análise social, explica só parte da dinâmica da sociedade e deixa na penumbra outros fenômenos igualmente fundamentais. Esperamos que as hipóteses apresentadas possam indicar pistas para futuros estudos.
Gostaríamos de assinalar que as idéias aqui apresentadas são produto das discussões desenvolvidas nos seminários ministrados, em Paris, com Jean Michel Blanquer no Institut des Hautes Études de L’Amérique Latine (IHEAL) e com Daniel Pécaut na École des Hautes Études en Sciences Sociales. A ambos agradeço a amizade e o apoio intelectual.
* Bernardo Sorj é sociólogo
A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados. |
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