Você está aqui

Anistia ampla, geral e irrestrita: 25 anos depois, ainda em processo

Autor original: Marcelo Medeiros

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets





Anistia ampla, geral e irrestrita: 25 anos depois, ainda em processo
Ricardo Malta/NImagens

O dia 28 de agosto de 1979 foi especial para Maria de Amparo Araújo. “Foi o primeiro dia de um novo tempo, foi um dia de luz”, lembra com felicidade. Naquela data era aprovada a lei 6.683, que anistiava presos políticos e permitia a volta dos que permaneciam no exterior por estarem condenados ou perseguidos no Brasil. Como Amparo, muitos militantes de organizações clandestinas – ou subversivas, como preferia o governo militar – comemoraram a decisão do então presidente João Baptista Figueiredo de sancionar o projeto que o governo havia enviado ao Congresso.

Presos, impedidos de trabalhar ou mesmo de voltar para o país, poderiam, a partir de então, retomar suas atividades cotidianas, exercer suas profissões, retomar suas carreiras. Não foram apenas as pessoas exiladas e seus parentes se alegraram. A população brasileira via na Lei da Anistia um sinal de que a ditadura estava chegando ao fim. Apesar da felicidade, o texto aprovado não foi o que a maioria considerava o ideal e, 25 anos depois de entrar em vigor, a anistia ainda é comemorada, apesar de ainda gerar polêmicas.

“Não foi exatamente o que queríamos, mas foi o possível. E isso bastou na época”, afirma Amparo, hoje presidente do grupo Tortura Nunca Mais de Pernambuco. O projeto de lei foi aprovado com uma pequena diferença de votos (206 a 201), após horas de discussões entre parlamentares. Ele frustrou um pouco os que desejavam a “anistia ampla, geral e irrestrita”, mas foi o primeiro passo para a redemocratização do país. “Ninguém agüentava mais. Tínhamos de aceitar, para pacificar o país. Pagamos um preço, mas valeu a pena”, diz Therezinha Zerbini, uma das líderes da campanha pela anistia no Brasil.

Para parte da esquerda da época, faltou ao texto aprovado previsão de punição para os responsáveis por torturas e assassinatos, além de reparação aos que foram prejudicados de alguma forma pelo regime. Segundo a cientista política Glenda Mezarobba, doutoranda da Universidade de São Paulo e estudiosa do assunto, a anistia é um processo que se desenvolve até hoje, mas que marcou o início da retomada democrática. “Foi o começo do processo de redemocratização, uma tentativa de reconciliação entre governo e opositores. Porém sempre nos moldes do regime. A lei serviu mais ao aparato de repressão do que aos perseguidos”.

Com a sanção da lei, importantes líderes políticos voltaram para casa. Mais tarde, muitos ocupariam importantes cargos administrativos. Entre eles, Leonel Brizola, Miguel Arraes e José Dirceu, hoje ministro da Casa Civil. Foi também o momento de volta de figuras emblemáticas, como Herbert de Souza, o Betinho, homenageado por Aldir Blanc e João Bosco em “O bêbado e o equilibrista” (Meu Brasil que sonha / Com a volta do irmão do Henfil / Com tanta gente que partiu / Num rabo de foguete). Os versos se tornaram uma espécie de hino pela anistia.

Apesar da alegria pela volta, alguns anistiados tiveram de se equilibrar quando voltaram. Não tinham emprego ou perspectiva de trabalho, por terem sido perseguidos durante boa parte da vida. “Criaram condições políticas, mas não estruturais para a volta”, reclama Carlos Afonso, amigo de Betinho e atualmente diretor de Planejamento e Estratégias da Rits. Os dois moraram durante anos no Canadá, onde estudaram depois de fugirem do país. Betinho voltou ainda em 1979 e vivenciou esse problema. “Ele era cientista social. Seu destino era ir para uma ONG ou para a universidade, mas quem iria empregá-lo? A anistia foi concedida, mas ainda estávamos sob ditadura”, lembra. “Apesar da anistia, a violência não terminara”, lembra Mazarobba.

Afonso só voltou no ano seguinte, pois preferiu ficar na América do Norte tentando captar recursos para trabalhar no Brasil. Enquanto isso, Betinho sobrevivia à custa da ajuda de amigos e da Igreja. Quando seu amigo finalmente retornou, criaram juntos o Instituto Brasileiro de Análise Sócio-Economica (Ibase), hoje uma das mais tradicionais organizações não-governamentais do país.

Apesar dos problemas enfrentados no retorno, Carlos Afonso se considera um privilegiado por não ter passado muitas dificuldades no exílio no Canadá. Ele e Betinho faziam pós-graduação e tinham emprego, além de contatos com o Brasil por meio de familiares e amigos. Recebiam das mãos do cartunista Henfil, irmão de Betinho que morava em Nova Iorque, recortes de jornais com notícias "de casa", que serviam para matar a saudade e se manterem informados sobre a situação no país. Da mesma maneira sabiam das articulações que começaram a ser feitas na Europa a partir de meados dos anos 70 para a formação de comitês internacionais pela Anistia. “O pessoal da Europa tinha muito mais problemas, pois conheciam pouca gente e vários não encontravam trabalho para se sustentar por lá”, lamenta. A volta, para muitos, representava o fim de um pesadelo que começara bem antes.

História

A história do movimento pela anistia começa logo após as primeiras cassações políticas, ainda em 1964, quando o governo militar declarou inimigo qualquer um que tivesse idéias contrárias às suas. Porém a pressão pela anistia só cresce nos anos 70, quando a repressão aos movimentos de oposição à ditadura se fortalece e o número de presos e torturados aumenta. “Eram poucos pedindo anistia no começo da ditadura, mas, com o crescimento do número de casos de violação aos direitos humanos, o movimento se fortalece”, lembra Glenda Mazarobba.

No fim de 68, aproximadamente mil estudantes foram presos no Congresso da União Nacional dos Estudantes. Em seguida foi editado o Ato Institucional 5 (AI-5), que dava ao Executivo poder de cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos, demitir ou aposentar juízes e outros funcionários públicos, suspender o habeas-corpus em crimes contra a segurança nacional, legislar por decreto, julgar crimes políticos em tribunais militares, entre outras medidas autoritárias.

As ações assustaram quem conhecia os envolvidos no movimento estudantil, pois alguns deles também militavam em organizações clandestinas que apoiavam a luta armada para derrubar o regime militar. Com o AI-5, esses grupos intensificaram suas ações e como resposta obtiveram uma repressão ainda mais forte. Outras pessoas que não tinham envolvimento com essas organizações mas também se opunham ao regime foram reprimidas da mesma forma. O número de presos e mortos cresceu bastante desde então. Parentes e amigos de presos políticos começaram a se preocupar com a falta de notícias e montaram uma rede informal de informações.

Uma dessas pessoas era Therezinha Zerbini, mulher de um general cassado logo que houve o golpe. “Para meu orgulho”, faz questão de dizer. Ainda em 68, ela - juntamente com outras mulheres - conseguiu espaço em um colégio religioso de São Paulo para receber alimentos e roupas a serem doados aos jovens que estavam na clandestinidade ou presos. A função principal, porém, era conseguir notícias. “Foi quando surgiram as ‘Mães de São Paulo contra a Violência’”, lembra. Esse grupo é considerado por ela o embrião do movimento pela anistia no Brasil.

Por causa dessas atividades, Zerbini foi presa em 1970. Ficou presa por um ano, período no qual conheceu a face terrível da ditadura. “Vi de tudo”, afirma. Sua companheira de cela era uma militante da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (Var-Palmares) de codinome “Wanda”, mas que na verdade se chamava Dilma Rousseff, hoje ministra das Minas e Energia. Quando saiu da prisão, começou a tentar mobilizar pessoas para pedir o fim das perseguições. A sociedade começava a saber o que acontecia. Uma das razões foi a greve de fome feita por 12 prisioneiros políticos da penitenciária Frei Caneca, no Rio. A iniciativa se espalhou por outras quatro capitais, totalizando 31 “grevistas”.

Em 1975, as manifestações crescem. Naquele ano o jornalista Wladimir Herzog, então diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, foi enforcado em sua cela, em São Paulo. Uma missa em sua homenagem foi rezada com milhares de participantes. No mesmo ano, Zerbini foi à Conferência das Nações Unidas pelo Ano Internacional da Mulher, no México. Leu o manifesto pela anistia que havia escrito no Brasil com outras oito pessoas e foi aplaudida. “As norte-americanas tinham objetivos semelhantes para libertar os filhos que haviam se recusado a ir ao Vietnã”, conta. Na volta fundou o Movimento Feminino pela Anistia, que abriu núcleos em Porto Alegre, Rio, Fortaleza, Bahia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Ela lembra a importância de setores progressistas da Igreja, que colaboravam com exilados e perseguidos. Ainda ressalta o papel das mães em todas as atividades. “Se a luta tivesse começado com homens, teria acabado logo. As mulheres foram muito importantes, pois a ditadura pensava duas vezes antes de reprimir donas de casa como eu”.

Apesar da coragem, ela se precavia. Com medo, entregou uma pasta com todas as atividades do grupo a um jornalista do jornal Movimento, pois estava certa de que seria presa na volta do México. Não foi - e a luta continuou.

Em 1976, cientistas e intelectuais lançaram manifestos por liberdade e democracia na 28o Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Os estudantes começavam a tentar reestruturar suas entidades, cujo funcionamento foi proibido pela ditadura, e elegeram a anistia como principal objetivo. Em 1978 foram criados diversos Comitês Brasileiros pela Anistia, que rapidamente se espalharam pelo Brasil. No exterior, ocorreu fenômeno semelhante, com comitês de exilados pela anistia sendo formados.

Com a pressão da sociedade, o peso pelo assassinato de Herzog, caso que repercutiu no exterior, e o interesse pela abertura, o governo finalmente aceitou a idéia de anistiar todos os perseguidos políticos. Apesar de toda a festa pelo fim da perseguição, medidas importantes só foram tomadas com a democratização do país e, para muitos, o processo de “anistia ampla, geral e irrestrita” ainda não foi encerrado.

Novas leis

Glenda Mazarobba lembra que em 1985, primeiro ano de governo civil, o Executivo tentou mexer na lei da anistia, mas, devido à ainda grande influência dos militares na política, pouco aconteceu. O mesmo se deu durante os debates da Assembléia Constituinte. A primeira medida de impacto veio em 1995, quando foi aprovada a lei 9.140, que previa o reconhecimento por parte do Estado de sua responsabilidade em relação a mortos e desaparecidos por motivação política entre 1961 e 1979. Para tentar resolver essas pendências, em 95 foi instalada a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, vinculada atualmente à Secretaria Especial de Direitos Humanos.

Em 2001, foi a vez de a Comissão de Anistia ser criada. Ela é vinculada ao Ministério da Justiça. No fim de 2002, o Congresso aprovou outra lei referente à anistia. Todos os prejudicados pelo Estado entre 1946 e 1988 passaram a ter direito a indenizações. A Comissão de Anistia pediu ao Ministério do Planejamento R$ 1,4 bilhão para pagar todas as indenizações. Em dezembro de 2003, o governo anunciou R$ 900 milhões até 2006. Este ano seriam liberados R$ 200 milhões; R$ 300 milhões em 2005 e R$ 400 milhões em 2006.

As indenizações podem ser pagas em prestação única correspondente a 30 salários mínimos por ano de perseguição política, até o limite de R$ 100 mil, ou em prestações mensais correspondentes ao posto que uma pessoa demitida poderia ocupar hoje. O limite é o teto da remuneração dos servidores federais, atualmente de R$ 19 mil. Até junho, a Comissão autorizou o pagamento de R$ 23,4 milhões em prestações únicas e R$ 20,6 milhões em prestações mensais.

Em três anos de funcionamento, foram feitos 60 mil pedidos de indenização nas três câmaras da comissão (uma para militares, outra para funcionários públicos e outra para estudantes e funcionários da iniciativa privada). Desses, 16 mil não foram protocolados por falta de informações. Dos restantes, 14.446 foram julgados, sendo a maioria (8.302 processos) negada. Outros 5.540 foram deferidos. Os demais ainda aguardam julgamento. Aí reside uma polêmica.

Muitos anistiados reclamam da lentidão e dos critérios de julgamento. Ou do desconhecimento das regras. “Não tenho esperança de receber indenizações. Há muita burocracia na liberação desses processos”, lamenta Carlos Afonso. Para Amparo, a Comissão deve estabelecer um regulamento claro. “Não sabemos quais são as prioridades”. A Comissão explica que a confusão se deve ao acúmulo de processos. O critério adotado, de acordo com o órgão, é a ordem de chegada de requerimentos de indenização. Porém, com a criação da Comissão, processos abertos anteriormente em outros órgãos foram transferidos para lá, alterando a ordem. Ainda assim, idosos, pessoas com deficiência, desempregados e trabalhadores com rendimento inferior a cinco salários mínimos continuam na frente da fila, garante a Comissão.

O pagamento de indenizações levanta outra polêmica: e os desaparecidos? Oficialmente, existem 424 pessoas cujo destino é desconhecido. Esses casos são tratados pela Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, que já analisou 500 pedidos e indenizou 280 famílias que tiveram algum de seus membros mortos pelo Estado durante a ditadura. Com valores de R$ 100 mil a R$ 150 mil, os pagamentos totalizaram R$ 31 milhões.

Ainda resta, porém, saber onde estão os restos mortais dos desaparecidos, principalmente dos participantes da guerrilha do Araguaia, ocorrida de 1972 e 75. Essas informações estariam nos arquivos do Exército, que afirma ter perdido documentos ou não ter registros de onde estariam os corpos. “Acredito que tenham destruídos os arquivos, afinal os culpados eram os guardiões”, ironiza Afonso. “Mas a busca não deve ser interrompida”, ressalta.

Outro ponto que incomoda é a falta de responsabilização pelas mortes, torturas e seqüestros. Apesar de o Estado já ter assumido a culpa por esses atos, muitos ainda reclamam da não punição dos criminosos. Na Argentina, por exemplo, logo após o fim do regime militar, que durou de 1976 a 1983, ex-presidentes foram presos. No Chile, que viveu sob a ditadura de Pinochet de 1973 a 1989, até agora a Justiça daquele país tenta julgar o ex-presidente. Segundo Mazarobba, a solução brasileira foi relevar os casos para atingir a paz. “O Estado reconhecer a culpa já é muito importante”, diz. Amparo Araújo acredita que falta mobilização social para pedir punição. “A sociedade ainda é pouco organizada para exigir essas medidas”, lamenta.

Para Carlos Afonso, que morou durante três anos no Chile, a comparação é difícil. “Lá e na Argentina as execuções foram muito mais numerosas, assim como os casos de tortura”. Lembra, contudo, a necessidade de ao menos vigiar os passos de ex-torturadores. “Essas pessoas não podem ocupar, por exemplo, cargos de segurança pública”, alerta.

São 25 anos desde a Lei da Anistia, mas a luta continua para aqueles que a defendem ampla, geral e irrestrita.

Marcelo Medeiros

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer