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Proposta "irresponsável"

Autor original: Mariana Loiola

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Proposta `irresponsável´
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Em tramitação na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), o projeto de lei que prevê a criação de um programa estadual de auxílio às pessoas que "voluntariamente optarem pela mudança de sua orientação sexual da homossexualidade para a heterossexualidade" tem provocado a indignação de profissionais das áreas de saúde, das ciências sociais e do direito, além dos militantes e dos parlamentares que defendem a livre orientação sexual. Em protesto contra essa proposta, o Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (Clam) está recolhendo adesões a um abaixo-assinado com objetivo de pressionar os deputados estaduais da Alerj a rejeitarem o projeto. De autoria do deputado estadual Édino Fonseca (Prona), o projeto teve pareceres favoráveis na Comissão de Constituição e Justiça e na Comissão de Saúde, mas precisa passar ainda pela Comissão de Combate às Discriminações e Preconceitos de Raça, Cor, Etnia, Religião e Procedência e pela Comissão dos Direitos Humanos e Cidadania, antes de ser votado em plenário.

Sérgio Carrara, antropólogo, professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ) e coordenador do Clam, comenta as implicações de propostas com esse teor. Para ele, seria "absolutamente irresponsável o Estado investir dinheiro público em programas que se proponham a alterar a orientação sexual das pessoas".

Ao fazer referência à "prevenção" da homossexualidade, o projeto revela o pressuposto de que a homossexualidade é uma doença, segundo Carrara. Na sua opinião, caso seja aprovado, o projeto contribuiria para o aumento da intolerância e, conseqüentemente, do sofrimento dos homossexuais. O antropólogo ressalta ainda que quem de fato se interessa em minimizar o sofrimento dessas pessoas "deve lutar contra a homofobia e comprometer-se com um projeto político que vise a construir valores mais tolerantes, justos e solidários".

A carta que será enviada à Alerj pode ser conferida no site do Clam (ver link ao lado), onde também há instruções para quem quiser aderir ao abaixo-assinado.

Rets - Em declarações à imprensa, o autor do projeto, que é pastor da Assembléia de Deus, argumentou que algumas pessoas buscam apoio em igrejas em momentos de crise por não aceitarem mais o homossexualismo. Existe a possibilidade de uma pessoa deixar de ser homossexual? Existem casos conhecidos?

Sérgio Carrara - A discussão em torno desse projeto tende a se centrar na possibilidade ou não dos indivíduos realizarem uma re-orientação sexual. Antes de mais nada, eu gostaria de dizer que não me parece ser absolutamente essa a questão relevante nesse caso, nem em termos políticos, nem em termos éticos. Devemos olhar o sofrimento que a orientação sexual pode causar em gays, lésbicas ou transexuais como um problema individual, desconhecendo o contexto social e cultural mais amplo? Do meu ponto de vista individualizar a questão é um procedimento antiético. Como já disse em outra oportunidade, podemos pensar a proposta através de uma analogia. Em uma sociedade racista, os negros sofrem, sem dúvida. A solução para isso seria então transformar todos os negros em brancos? O sofrimento seria erradicado através da erradicação daqueles que sofrem!

É mais ou menos isso que propõe o projeto no que respeita à homossexualidade. Se vivêssemos em sociedades indiferentes à orientação sexual de seus membros, ou seja, não-homofóbicas, ser hetero ou homossexual (caso se acredite tratar aqui de uma "opção") poderia até ser considerado apenas como uma questão de escolha individual, assim como ser louro ou moreno. Porém, como se sabe, estamos longe de viver em sociedades tolerantes nesse aspecto e me parece indiscutível que o sofrimento dos homossexuais advém em larga medida do estigma que cerca a homossexualidade e da violência real e simbólica que atinge cotidianamente essas pessoas. Quem de fato se interessa em minimizar tal sofrimento deve, sim, lutar contra a homofobia e comprometer-se com um projeto político que vise a construir valores mais tolerantes, justos e solidários. Como o projeto em discussão mal esconde o fato de considerar a homossexualidade uma doença, desvio ou pecado, ele irá de fato contribuir, caso seja aprovado, para o aumento da intolerância e, portanto, do sofrimento que aparentemente se propõe a amenizar.

Do ponto de vista científico, não existe nada mais controverso do que a possibilidade de uma re-orientação sexual. Não só não existem estudos que demonstrem cabalmente essa possibilidade, como não se conhecem os métodos para tal transformação. O projeto não tem, portanto, qualquer embasamento científico. Seria, para dizer o mínimo, absolutamente irresponsável o Estado investir dinheiro público em programas que se proponham a alterar a orientação sexual das pessoas.

Rets - De acordo com o parecer da Comissão de Constituição e Justiça da Alerj, a medida é de ''relevante cunho social e não esbarra em preceitos constitucionais ou jurídicos que impeçam sua tramitação''. Esta afirmação pode ser contestada?

Sérgio Carrara - Como já disse anteriormente, o projeto não só carece de "cunho social", como de fato uma lei como essa viria apenas contribuir para o acirramento da discriminação e, portanto, do conflito social. Não sou jurista e, portanto, minha opinião sobre a constitucionalidade do projeto é uma opinião técnica. De todo modo, é importante mencionar que, se temos uma Constituição Federal que tem como um de seus princípios mais básicos a defesa da igualdade entre os cidadãos, o projeto parece estar em conflito com ela. Por que os tais programas de re-orientação sexual a que faz referência o projeto de lei trabalham apenas no sentido de "transformar" homossexuais em heterossexuais? Ironicamente, poderíamos dizer que o projeto discrimina os heterossexuais que queiram abandonar a heterossexualidade. Ironias à parte, o fato é que o silêncio do projeto quanto à possibilidade de transformação no sentido inverso e o fato de fazer referência à "prevenção" da homossexualidade mal escondem o pressuposto de que homossexuais são inferiores. Aliás, o que se esconde insidiosamente no projeto é claramente revelado no parecer da Comissão de Saúde da Assembléia Legislativa, em que o relator justifica a relevância do projeto porque "o homossexualismo é uma distorção da natureza do ser humano normal". Esse parecer é escandaloso sob qualquer ponto de vista e macula a própria imagem da Assembléia, reduzindo-a a espécie de arremedo patético da Santa Inquisição ou do Serviço Eugênico Nazista.

Rets - O projeto propõe apoio psicológico àqueles que desejam deixar de ser homossexuais. No entanto, uma resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP) impede que psicólogos colaborem com eventos ou serviços que "proponham tratamentos de cura da homossexualidade". Em que se baseia essa resolução?

Sérgio Carrara - Essa resolução baseia-se antes de mais nada nos conhecimentos científicos atualmente disponíveis, segundo os quais a orientação sexual é uma disposição profundamente incorporada e dificilmente transformável, não sendo a homossexualidade nem doença, nem distúrbio, nem anomalia. Nesse sentido, ela é fundamental para o combate a propostas charlatanescas de "cura". Além disso, mesmo que orientações sexuais fossem alteráveis, como um nariz que se "corrige" através de cirurgia plástica, a resolução do CFP parece também querer evitar o uso abusivo do saber e da técnica científica, que devem se direcionar a tratar de problemas psicológicos e não a transformar em problemas psicológicos questões que são essencialmente sociais, culturais e políticas.

Rets - O que você considera mais grave nessa proposta?

Sérgio Carrara - Do meu ponto de vista, o mais grave é o modo como a proposta manipula o sofrimento real dos homossexuais e a compaixão dos cidadãos de boa vontade em relação a tal sofrimento para aprovar uma lei homofóbica, preconceituosa e violenta. O que me parece mais grave nesse projeto de lei é o cinismo e a má-fé nele presentes. De fato, nesse caso, a pele de cordeiro mal dá para cobrir o lobo inteiro.

Rets - Duas comissões da Alerj foram favoráveis a esse projeto de lei. O que a aprovação de um projeto como esse representaria para a luta dos movimentos de homossexuais?

Sérgio Carrara - Parece-me que o impacto mais sério da aprovação desse projeto não se faria sentir sobre a luta dos homossexuais brasileiros (cada vez mais intensa e com vitórias bastante significativas), mas sobre a própria imagem da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. Sua aprovação desmoralizaria a Assembléia e, caso não seja objeto de veto, o próprio Governo do Estado frente à opinião pública nacional e internacional.

Rets - Outras propostas que dizem respeito aos homossexuais (contra e a favor) estão correndo nos níveis estaduais e federal, e seu andamento é dificultado pela pressão dos grupos que apóiam e dos que combatem a causa. Existe o risco de que o lobby religioso cresça e impeça avanços das conquistas dos movimentos de homossexuais ou até mesmo determine retrocessos na legislação?

Sérgio Carrara - Antes de responder a essa questão, gostaria de lembrar que não são todas as religiões, nem mesmo todos os grupos cristãos que diabolizam a homossexualidade. No momento, a atuação da chamada bancada evangélica e das representações políticas católicas se faz no sentido da defesa da família heterossexual monogâmica como o único arranjo familiar que deve ser socialmente respeitado e juridicamente defendido. Agem portanto como forças conservadoras e podem incidentalmente impedir avanços e levar a retrocessos aqui ou ali.

Entretanto, como a luta pelos direitos dos homossexuais articula-se fortemente ao processo mais amplo de democratização no Brasil e de defesa do Estado laico, penso que apenas uma transformação política radical, que colocasse em risco os próprios fundamentos da democracia brasileira, teria o poder de fazer retroceder de fato o avanço do reconhecimento da plena cidadania dos homossexuais entre nós.

Mariana Loiola

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