Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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As chuvas já começaram a cair no Rio Grande do Sul e, para os agricultores de soja da região, é hora de começar a semear a terra e planejar a colheita da safra no próximo ano. Como nos dois últimos plantios, o deste ano será cercado por muita polêmica, pois a maioria das sementes utilizadas no estado é geneticamente modificada e não há autorização para isso. O governo federal, nas outras ocasiões, editou medidas provisórias autorizando a comercialização das sementes, mas, dessa vez, a expectativa era de que o Projeto de Lei 2.401/2003, conhecido como PL de Biossegurança, já estivesse aprovado e regulamentasse definitivamente o uso de sementes com genes alterados no país.
Enviado pelo Executivo ao Congresso em outubro do ano passado, o projeto só foi aprovado pela Câmara em fevereiro e, desde então, tramita no Senado. Além da questão dos transgênicos, o PL trata de assuntos polêmicos como pesquisa com células-tronco embrionárias e a competência para julgar impactos ambientais e na saúde.
A tramitação mostra o quanto o tema é polêmico. Foram apresentados 98 requerimentos e 304 propostas de emendas. Um substitutivo ao texto votado pelos deputados foi elaborado pelo relator do PL no Senado, o senador Ney Suassuna (PMDB-PE). Em relação ao projeto original, o substitutivo traz importantes alterações. Autoriza pesquisas com células-tronco de embriões estocados há mais de três anos em clínicas de fertilização, mas exclui a clonagem terapêutica do texto, mantendo-a proibida. Determina que cabe à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) a palavra final na avaliação de riscos que os transgênicos podem causar à saúde humana e ao meio ambiente e libera a comercialização e plantio de sementes geneticamente modificadas na safra 2004/2005 - que já está sendo plantada, mesmo sem o PL ter sido aprovado.
Apesar da importância e da urgência do assunto, os senadores não votaram o projeto a tempo e agora estão em recesso devido às eleições municipais.
O resultado é ainda mais polêmica. Se por um lado os agricultores do Rio Grande do Sul já estão plantando sementes transgênicas, por outro ambientalistas fazem manifestações contra a possível edição de mais uma medida provisória e pela alteração do texto do substitutivo. Enquanto isso, cientistas envolvidos com pesquisas ligadas a engenharia genética dizem que o texto que tramita no Senado ainda não é o ideal. E há ainda quem diga que o projeto fere a Constituição ao tentar regulamentar dois assuntos diferentes e desrespeitar competências de órgãos de fiscalização.
Transgênicos
A liberação dos organismos geneticamente modificados (OGMs) é considerada pelo relator do projeto como benéfica para a economia do país, análise que vai de encontro à posição de ambientalistas e entidades de defesa do consumidor. “O impacto econômico positivo proporcionado pela aprovação desta matéria é incontestável”, escreve o senador Ney Suassuna no parecer final do PL.
A opinião é compartilhada pelo presidente da Federação de Agricultores do Rio Grande do Sul (Farsul), Carlos Sperotto. Para ele, o uso das sementes transgênicas já está consolidado naquele estado e será uma tendência em todo o país em pouco tempo. O Ministério da Agricultura já encontrou algumas plantações de algodão geneticamente modificado. Porém a soja ainda é a cultura em que as sementes modificadas são mais comuns. “Temos muitos ganhos”, explica Sperotto. Entre as vantagens apontadas por ele estão a diminuição do volume de agrotóxico aplicado nas lavouras gaúchas, o que seria benéfico não só para o consumidor como para o agricultor. Quem planta, além de ficar menos exposto a produtos tóxicos, tem, de acordo com o presidente da entidade, uma redução de 20% a 25% nos custos da plantação devido à economia com pesticidas.
Segundo os cálculos da Farsul, 90% das sementes de soja plantadas no Rio Grande do Sul este ano serão de espécies geneticamente modificadas. “Em todos os estados onde há soja, há transgênicos”, assegura. Na última safra, foram colhidas 49,78 milhões de toneladas de soja em todo o país. Dessas, 4,1 milhões foram transgênicas, ou seja, 8,3%. A colheita gaúcha de OGMs representou 88,1% do total brasileiro de soja transgênica. Os dados são da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Sperotto acredita que a próxima safra brasileira seja composta por 20% das polêmicas sementes, número que assusta os ambientalistas.
Estes contestam os supostos ganhos no cultivo obtidos com transgênicos e apontam riscos para a disseminação de seu uso para o meio ambiente, consumidores e para os próprios agricultores. De acordo com o Greenpeace, organização membro da campanha Por Um Brasil Livre de Transgênicos, até hoje não foi apresentado nenhum estudo que comprove a segurança desses organismos. A entidade afirma que todas as pesquisas até hoje divulgadas foram feitas por empresas diretamente envolvidas com biotecnologia, logo, suspeitas para emitirem pareceres definitivos.
O relatório da Companhia de Abastecimento Nacional (Conab) sobre as últimas safras de soja aponta o Rio Grande do Sul como o estado com menor produtividade por hectare plantado no país, na última safra. Os gaúchos produziram 1.400 quilos de soja por hectare, 47,8% a menos do que na safra de 2002/03. A maior produtividade foi registrada em Roraima, onde cada hectare produziu 2.990 quilos. Não há indícios de uso de OGMs no estado da região Norte. A queda no rendimento, entretanto, não ficou restrita aos gaúchos. A produção nacional de soja caiu 4,3% e a produtividade média, 16,8%, de 2.816 para 2.343 quilos por hectare.
Ainda segundo o Greenpeace, os OGMs podem contaminar outras áreas, que não os utilizam, e ainda selecionar biologicamente espécies de ervas daninhas e outras pragas. Esses problemas fariam os agricultores, no futuro, utilizarem agrotóxicos mais fortes. Para os consumidores, os riscos estariam na possibilidade de alimentos transgênicos provocarem alergias não previstas devido às modificações genéticas, além de outros problemas de saúde ainda imprevisíveis. Além disso, a necessidade de compra constante de novas sementes junto às empresas produtoras tornaria os agricultores dependentes da política de preços da companhia, o que poderia afetar também a economia nacional.
“Cabe ao governo cumprir seu papel e aplicar a lei. Os transgênicos ainda não estão liberados e apresentam diversos riscos”, diz Gabriela Couto, integrante da campanha de engenharia genética do Greenpeace. Ela e outros ativistas participaram de uma manifestação em frente ao Congresso na quarta-feira, 22 de setembro, na qual exigiam que o governo não edite outra medida provisória liberando o plantio e a comercialização da soja transgênica. Em 2002 e 2003, por pressão dos agricultores gaúchos, foram editadas MPs que liberavam a espécie RoundUp Ready, desenvolvida pela Monsanto. As sementes foram utilizadas no Rio Grande do Sul depois de terem sido contrabandeadas da Argentina. A empresa hoje cobra royalties dos agricultores pela utilização de sua tecnologia.
Para Sperotto, apesar do PL não ter sido aprovado nem uma MP ter sido editada, o assunto já está resolvido. “O governo não fala mais em proibição, mas sim em formas de liberar o uso. Os ambientalistas devem pensar nos que não têm o que comer ao invés de criticar essa tecnologia. Quantas pessoas já morreram por comer transgênico? E quantas já morreram por não ter comida?”, pergunta.
“Devemos seguir o Princípio da Precaução”, responde Sezifredo Paz, coordenador executivo do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) - instituição que conseguiu na Justiça, em 1998, a proibição da concessão de qualquer autorização para comercialização, produção e plantio de qualquer OGM. O princípio a que se refere Sezifredo está contido em tratados internacionais como a Convenção da Biodiversidade e defende amplos estudos antes da utilização em larga escala de tecnologias suspeitas de prejudicarem o meio ambiente ou a saúde.
O governo, porém, dá sinais de que ficará do lado dos grandes agricultores. Em entrevista coletiva realizada em 23 de setembro, o presidente Lula anunciou que editará uma MP caso o Senado concorde. “Se for importante, tiver acordo, eu posso fazer isso”, declarou Lula a jornalistas.
O papel da CTNBio
De acordo com o substitutivo ao PL, a polêmica deverá ser resolvida pela CTNBio, que, na hipótese da aprovação do texto, sairá fortalecida. No texto aprovado na Câmara, à comissão competiam atividades relacionadas à pesquisa com OGMs. A autorização para liberação comercial ficava a cargo do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), no caso de avaliação de impacto ambiental; da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em relação à saúde, e da Secretaria de Defesa Agropecuária, vinculada ao Ministério da Agricultura, em relação aos riscos à saúde animal.
No Senado foram retiradas essas competências, dando à CTNBio autonomia para decidir sobre todas as autorizações. Pareceres contrários à ela deverão ser submetidos ao Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), órgão a ser criado e que será composto por 15 ministros. Ele terá 45 dias para opinar. Caso nenhuma posição seja tomada, vale o decidido pela CTNBio. Suassuna argumenta que a mudança foi feita para desburocratizar a tomada de decisões.
A cientista e pesquisadora da Associação Nacional de Biossegurança (Anbio) Leila Oda vê outra vantagem nesse texto, a abertura à sociedade. “Na CNTBio há transparência e discussões públicas. É melhor assim do que deixar tudo na mão de um ministério”, afirma. Ela também vê com bons olhos a necessidade de ser da área científica para fazer parte do Conselho, cuja função, a princípio, é técnica. Sezifredo Paz, entretanto, discorda. “A composição não é a ideal. Precisamos de especialistas das áreas de saúde e meio ambiente, assim como representantes dos consumidores”.
Oda responde defendendo a idéia de manter o caráter estritamente técnico da comissão. “Se um ministério entender que um produto não deve ser comercializado por causa do risco de perda de fatia do mercado internacional, essa postura deve ser respeitada e considerada”, afirma.
Mas há quem veja problemas mais graves nas atribuições da comissão previstas no PL. “É um absurdo dar a palavra final à comissão", diz Paz. A professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro e representante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) no Congresso, Ingrid Sarti, considera o PL “um horror”. “Na prática, a possibilidade de uma reunião interministerial em 45 dias para resolver a liberação de um produto é muito remota. Todas decisões acabarão sendo tomadas pela CTNBio”, prevê.
“As modificações são bastante negativas, pois quem poderia questionar a liberação de determinado produto sempre será voto vencido, uma vez que não há poder de veto”, avalia Gabriel Fernandes, da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA). O pesquisador também vê complicações no excesso de poder delegado à CTNBio, o que seria inconstitucional, e o histórico favorável aos transgênicos do órgão.
Ao dar à comissão competência para liberar tanto a pesquisa quanto o comércio, o PL estaria infringindo a Constituição por sobrepor atribuições do Ibama e da Anvisa. “É uma usurpação de poder que não pode ser admitida”, reclama Fernandes. Em relação ao favorecimento de transgênicos, ele relembra que a CTNBio já autorizou pesquisas em áreas de mais de 100 hectares a céu aberto, quando o procedimento normal é autorizá-los em terrenos menores e com menor probabilidade de contaminação.
Engenharia
Outro ponto polêmico do PL é o uso de células-tronco embrionárias humanas em pesquisas e terapias. O projeto original liberava os estudos e autorizava a clonagem de embriões com fins terapêuticos. A discussão é filosófica e ética. Há quem diga que embriões sejam pessoas em formação e que por isso não podem ser manipulados e, muito menos, clonados. Outros não concordam.
A boa notícia é que houve consenso na comunidade científica por causa da liberação da pesquisa com embriões, apesar de algumas ressalvas. O substitutivo preferiu autorizar a pesquisa e o uso dessas células produzidas para fertilização in vitro, desde que sejam inviáveis para implantação no corpo humano ou estejam congelados há pelo menos três anos. No texto foi incluída a necessidade de submissão de projetos de pesquisa aos Comitês de Ética em Pesquisa de cada área. Fica proibida a comercialização de embriões para fins científicos e também qualquer tipo de clonagem, temas controversos para a bancada religiosa do Congresso, contrária à manipulação genética.
Para cientistas, o ideal seria ter uma lei específica para a questão da engenharia de genes, mas o PL 2401/03 traz avanços e atrasos. “O ideal é manter todas essas questões nesse projeto, pois o processo de redação e aprovação de um novo é muito demorado”, afirma Leila Oda. A pesquisadora Ingrid Sarti concorda: “melhor isso do que nada”.
Ambas, porém, possuem críticas. Oda afirma que o texto atual atrasa a pesquisa com embriões por impor uma quarentena de três anos, mas acredita que a solução foi a melhor para viabilizar os estudos, já que após esse período os embriões seriam descartados das clínicas de inseminação artificial. “Assim evitamos a discussão ética e religiosa”, afirma. Sarti avalia o PL como um avanço para as pesquisas com células-tronco, mas reclama da falta de critérios de fiscalização de estudos.
Tramitação
O PL foi enviado ao Congresso pelo Executivo com a intenção de resolver um antigo problema na legislação brasileira, o conflito entre a lei de Biossegurança (8.974/95) e a legislação ambiental, que se sobrepunham na questão da fiscalização e de competência para liberar o comércio de organismos geneticamente modificados. A pressão de agricultores gaúchos já havia feito o governo editar Medidas Provisórias por duas vezes a fim de liberar a comercialização de sementes transgênicas de soja. O problema é a forma como a discussão do texto foi feita na Câmara. “O PL foi aprovado em clima de Fla-Flu em fevereiro”, diz Sarti. A bancada ruralista estava a favor da liberação do plantio de transgênicos enquanto ambientalistas defendiam a proibição, até pesquisas comprovarem que esses organismos não afetam o meio ambiente e a saúde humana.
Desde fevereiro no Senado, o projeto passou pelas comissões de Constituição e Justiça, de Assuntos Econômicos e de Assuntos Sociais. Houve espaço para a participação da sociedade civil, mas Sarti, que participou de algumas sessões como representante da SBPC, classsifica-as como “insuficientes para a importância dos assuntos”.
Agora, com o recesso parlamentar, a votação está parada. Todos que foram entrevistados pela Rets não acreditam em grandes mudanças no texto do substitutivo, mas lembram que a aprovação definitiva ainda deve demorar bastante, pois, como foi alterado, o projeto volta para a Câmara, onde será alvo de mais disputas políticas. Os deputados podem referendar as modificações ou manter o projeto original. Enquanto isso, o governo parece caminhar para editar uma Medida Provisória para garantir a safra de soja no sul do país. A AS-PTA afirma já estar preparando uma ação judicial se a MP for editada. O Idec diz que fará de tudo para forçar o cumprimento da liminar obtida pela organização que impede a comercialização de transgênicos no país.
Certo apenas é a continuação da polêmica.
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