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O terceiro setor na ordem do dia

Autor original: Mariana Loiola

Seção original: Artigos de opinião

Ruth Cardoso*

Durante os anos 80, quando se falava em década perdida para o crescimento econômico, a sociedade civil tinha presença garantida na imprensa porque era a guardiã dos direitos civis e ativa participante da luta pela redemocratização. Atualmente, as notícias sobre a sociedade civil têm um tom desconfiado e as dúvidas sobre os propósitos das organizações civis são muitas. O que explica esta mudança?

Nos anos 80 muitos setores estavam mobilizados pela redemocratização do país mas, as associações civis, eram a face mais ativa deste debate que reunia associações profissionais (OAB, ABI etc.) e grupos de ativistas reunidos em ONGs. Juntos, lutavam para garantir direitos e desenvolviam experiências novas mostrando que era e é possível proteger o meio ambiente, educar crianças que abandonaram a escola, apoiar mulheres vítimas de violência e tantas outras atividades de interesse público.

Durante o período da Assembléia Constituinte estes grupos desempenharam um importante papel propondo leis e estimulando um arcabouço legal mais adequado para proteção do meio ambiente, para garantir os direitos de grupos tradicionalmente discriminados como os negros, as mulheres, os indígenas, as crianças e adolescentes e, sobretudo para garantir o direito à igualdade. Constituíram-se em atores políticos que representavam setores sociais sem acesso ao Congresso Nacional porque suas demandas não correspondiam às dos sindicatos ou partidos políticos e nem aos lobbies tradicionais, sempre muito ativos.

Com a redemocratização, estes novos atores ganharam força porque constituem a expressão de uma cidadania participante e responsável. Com a ampliação da presença da sociedade civil difundiu-se uma nova designação, aplicada ao conjunto das organizações sem fins lucrativos - o terceiro setor. Só nas democracias criam-se as condições para que este setor se amplie e para que o segundo setor (as empresas) também assuma sua parte na responsabilidade coletiva de criar uma vida social de melhor qualidade e as agências governamentais (primeiro setor) possam cooperar e aprender com experiências ricas, mas de pequena escala.

As associações civis nunca pretenderam substituir o Estado e, se a sua ação é múltipla e diversificada, não se caracteriza anti-Estado. Foi, sim, contra o Estado autoritário e pautou-se sempre pelo objetivo de ampliar a liberdade de ação e manifestação, condição para que a sociedade possa cumprir seu papel de crítica mas também de legitimadora de governos. As relações entre o Governo e a Sociedade são necessariamente complexas. Os sistemas democráticos são a melhor maneira de regulá-las porque dão voz aos interesses diversos e garantem a liberdade de atuação dentro da lei.

Não é estranho que a década de 90 tenha trazido, com a democracia, uma enorme ampliação do terceiro setor no Brasil. E não foi só aqui que este fenômeno ocorreu. Nos países do Leste Europeu, a emergência de uma sociedade civil vibrante e autônoma teve um papel fundamental na luta pela democratização e na reconstrução social.

O crescente protagonismo dos cidadãos e de suas organizações é um fenômeno mundial, mas aqui contaram com um terceiro setor, já mobilizado pelas lutas da década anterior, que estava pronto para desenvolver parcerias com os demais setores. Também o setor governamental iniciou uma nova forma de diálogo com a sociedade que se desdobrou em parcerias eficazes com os outros dois setores.

Dessa forma, foi sendo construído um novo modelo de relacionamento entre os governos, o mercado e as iniciativas sem fins lucrativos, modificando as tradicionais intervenções assistencialistas.

Por tudo isto, o terceiro setor ficou muito mais complexo e heterogêneo, com atuação em diferentes áreas e com métodos distintos de trabalho. Organizações devotadas ao bem público sempre existiram e cumpriram seu papel. Como mostram pesquisas recentes, o Brasil sempre contou com muito trabalho voluntário e muitas formas de filantropia praticadas por igrejas, associações beneficentes etc. Este trabalho não perdeu sua importância e não é dispensável. Somou-se ao desenvolvimento deste segmento contemporâneo do terceiro setor e, com freqüência renovou-se pela constatação da ineficácia dos métodos tradicionais usados para combater a pobreza.

Curiosamente e apesar de suas contribuições, o papel de porta voz dos excluídos que marcava o terceiro setor foi, agora, substituído por uma imagem de oportunismo e dependência do Estado. Mas, da mesma maneira que não podemos afirmar que todas as organizações sem fins lucrativos são corretas, não podemos supor que estejam propensas ao clientelismo e a manipulação política.

O terceiro setor que se expandiu foi justamente o que lutou contra o clientelismo e o assistencialismo, e se hoje existem repasses de verba pública sem critérios rigorosos, as agências públicas implicadas devem explicações tanto quanto quem as recebeu. E, se olharmos objetivamente para as contribuições resultantes de parcerias entre múltiplos atores – ONGs, fundações, empresas, universidades, vários níveis de governo –, vamos ter que admitir que, no campo da saúde, da preservação do meio ambiente, do apoio a grupos em situação de risco (especialmente crianças e adolescentes), da defesa dos direitos humanos, temos muitos exemplos positivos para citar.

Então, por que a desconfiança?

Porque sempre que se toma a parte pelo todo corre-se o risco de julgamentos apressados. Por um lado podemos generalizar defeitos de algumas experiências mal sucedidas e, por outro não levar em consideração os fatores externos que desvirtuam os objetivos pretendidos. Por exemplo: as relações entre governos, empresas e associações civis são antigas e, seus vícios têm mais raízes no passado que no presente. Quando velhas práticas voltam a ganhar força, significa que o clientelismo partidário foi reinstalado nas agências governamentais.

Cabe à sociedade civil, que reconquistou a democracia, lutar contra preferências e privilégios impostos por razões políticas e que retardam as ações sérias e não assistencialistas.

Reafirmo que o Terceiro Setor só floresce em ambiente democrático e, quando reaparecem os costumes clientelísticos do passado, todos perdem, tanto o governo quanto a sociedade. As instituições do terceiro setor não sobrevivem sem transparência e credibilidade porque dependem da legitimidade que lhes confere a sociedade.

* Ruth Cardoso é presidente da organização não-governamental Comunitas. Este artigo foi publicado originalmente pelo jornal O Estado de São Paulo, em 27 de setembro de 2004.






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