Autor original: Maria Eduarda Mattar
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“Direitos sexuais e reprodutivos” é um conceito bastante amplo e não é muito aplicado pelos profissionais de Direito do Brasil, que, assim, perdem a oportunidade de entender melhor assuntos como planejamento familiar, julgamentos de aborto e mortalidade materna. Essa é opinião da advogada Rosana dos Santos Alcântara, coordenadora executiva da Advocaci - Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos, perante alguns assuntos polêmicos que aparecem constantemente no noticiário.
Como forma de colaborar para acabar com esse desconhecimento, a entidade acaba de lançar o CD-Rom “Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos: marco jurídico e normativo”, uma coletânea de leis, ementas dos Tribunais Superiores Federais e bibliografia sobre esses temas. Na obra constam 83 leis federais e 60 mil casos de jurisprudência nacional, além de quatro mil títulos nacionais e estrangeiros editados no Brasil de 1988 a 2002.
Esse conteúdo pretende servir de base para futuros julgamentos e defesas, pois, segundo Alcântara, casos envolvendo a temática “direitos sexuais e reprodutivos” têm sido cada vez mais comuns e cercados de polêmicas. Nesta entrevista, ela explica o conceito e cita alguns exemplos que comprovam a necessidade de maior discussão na sociedade sobre a proibição do aborto e sobre a elaboração de melhores políticas de planejamento familiar. “Tudo passa por uma tentativa de controle do corpo e da sexualidade da mulher”, conclui.
Rets - A Advocaci acaba de lançar um CD-Rom com um vasto embasamento jurídico e bibliográfico. Qual será a utilidade dele e para quem será distribuído?
Rosana Alcântara - O que fizemos foi um mapa jurídico detalhado. Juntamos legislação, jurisprudência e bibliografia, mas o importante para nós é a possibilidade de um profissional do Direito ver que decisões foram tomadas em casos semelhantes ao que ele pode estar enfrentando. Vimos que há muitas leis e livros sobre os direitos sexuais e reprodutivos, mas estava tudo muito disperso. A idéia é coordenar todos os elementos e, assim, facilitar para quem tem interesse.
Há um grande problema em relação à expressão “direitos sexuais e reprodutivos”. Ela não está na Constituição, não é ensinada nas faculdades de Direito ou Medicina e nem nos tribunais, apesar de estar relacionada a assuntos bastante comuns. Precisamos dar visibilidade para melhorar o entendimento.
Rets - Se é tão comum, por que é desconhecida?
Rosana Alcântara - Por que são poucos os profissionais que conseguem relacionar tudo que está envolvido. Reconhecem facilmente temas como homossexualidade e aborto, entre outros. Mas o conceito é muito mais amplo. Tanto que utilizamos em nossa pesquisa, feita em buscadores da Internet, 54 palavras-chave e ainda deixamos algumas questões de lado.
Outro problema é a dificuldade de identificar alguns problemas, como o desrespeito a esses direitos. Tome como exemplo casos de assédio sexual. Freqüentemente eles são vistos como um problema no trabalho e, não, como uma afronta a alguns direitos da mulher. Nossa intenção é ligar esse tipo de problema a outros até para facilitar o julgamento e o trabalho dos advogados.
Rets - O que pode mudar em relação ao julgamento de problemas desse tipo?
Rosana Alcântara - Podemos ter novas formas de lidar com eles, não necessariamente na Justiça. Recentemente acompanhamos um caso com a Flumitrens [empresa que administra o transporte ferroviário no Rio de Janeiro], pois nos trens há muitos casos de assédio sexual. A empresa se comprometeu a promover debates, ministrar palestras e instalar um sistema de “disque-denúncia” para tentar diminuir as reclamações.
A mudança acontece quando se percebe que esse tipo de problema está inserido em algo muito maior. É preciso dar informações sobre como agir e como evitar transtornos, mas também organizar estas informações. Isso facilita muito quando alguém pretende lidar com algo novo.
Rets - Como estão sendo exercidos os direitos sexuais e reprodutivos no Brasil hoje?
Rosana Alcântara - O exercício evoluiu bastante nos últimos 30 anos, tanto no Brasil quanto no resto do mundo. Saímos de um contexto autoritário para outro no qual os movimentos de mulheres e outros puderam participar mais da elaboração de políticas públicas. Nos últimos anos, o país tem assumido importantes compromissos em conferências internacionais como a de Pequim [IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em 1995] e do Cairo [Sobre população e desenvolvimento, em 1994].
Um exemplo é a legislação sobre planejamento familiar, que é bastante avançada e na qual as organizações puderam participar da elaboração. Ainda assim há problemas, como a falta de definição das esferas de poder, se a política fica a cargo do poder federal, estadual ou municipal. Isso gera problemas na efetivação das políticas. Não há insumos contraceptivos nos postos de saúde, no máximo preservativos. Ou seja, a política não é efetivada por falta de material.
Já em relação ao aborto, estamos cansadas de ver mulheres morrendo ao tentar abortar a gravidez. Outras são presas ou processadas.
Rets - Esses são dois assuntos polêmicos. Em relação ao planejamento familiar, muito tem se falado sobre a necessidade de sua implementação. Como isso poderia ser feito?
Rosana Alcântara - A Conferência de Cairo foi um marco, pois rompe com o controle do corpo da mulher, típico da ditadura, período no qual havia uma política de esterilização de massas. Havia uma idéia de que havia muitos pobres no Brasil e que, portanto, esterilizando essa camada da população, o problema seria amenizado. Não há sentido em ligar pobreza com reprodução, que é um direito da mulher e do casal. A obrigação do Estado é informar a população sobre os riscos de uma gravidez e também sobre os meios de evitá-la. Mas quem decide é o casal.
Ainda assim, sabemos de um comportamento médico propenso à esterilização no momento do parto, no qual a mulher ligava as trompas e pagava ao médico à parte pela operação, que é ilegal no caso de cesarianas.
Rets - Esse é um procedimento comum nos hospitais brasileiros?
Rosana Alcântara - Infelizmente, sim. E é agravado pelo alto número de cesarianas feitas no Brasil.
Rets - E em relação ao aborto? Como ele é encarado?
Rosana Alcântara - Há muita hipocrisia em relação a esse assunto. Há alguns dias li uma pesquisa ainda não publicada sobre a relação de médicos e abortos. Quando perguntados se aceitavam abortos em seus consultórios, a maioria disse desconhecer casos desse tipo. Porém, quando a pergunta era relativa a pessoas conhecidas, a quantidade de respostas positivas eram bem maior. Há um tabu em torno do assunto. É fato que muitas mulheres praticam o aborto e morrem. Desde 1940, ele é permitido em casos de risco à vida da mulher e de abuso sexual. Atualmente é permitido também em fetos anencefálicos [ sem cérebro]. Mas a decisão oficial, no primeiro caso, só saiu depois de cinco ou seis meses, o que obrigou a mulher a levar a gravidez até o fim. Em seguida entramos [o movimento de mulheres] com uma ação de descumprimento de preceito fundamental da Constituição. Acabou prevalecendo uma liminar do Supremo Tribunal Federal que garante o direito de aborto nesses casos.
Mesmo assim, há problemas para exercer esse direito. Ou é desconhecimento (hipótese que eu prefiro) ou descumprimento da lei mesmo. Recentemente participamos de jornadas pela legalização do aborto. Há pessoas que defendem somente a descriminalização, mas é preciso autorizar a mulher a tomar essa decisão desde que ela saiba suas conseqüências.
Rets - Como os juízes julgam esses casos?
Rosana Alcântara - A palavra final é do juiz, o que faz haver muita variedade de decisão. Mas insistimos na necessidade de decisões rápidas, pois quanto antes o aborto for feito, menores são os riscos.
Rets - Sua posição favorável à legalização do aborto se deve a quê?
Rosana Alcântara - Porque a situação atual é insustentável. Quando as mulheres não morrem, são processadas. E há um corte de classe nesses processos, que são absurdos e geram situações inacreditáveis. O número de clínicas que faz aborto é grande, mas nem todas têm médicos. Quando eles estão lá, há mais chances de vida, mas há outras que só induzem o aborto com medicamentos e mandam a paciente para a rede pública. Já soubemos de um caso de uma mulher que chegou ao hospital e, quando a médica entendeu o que estava acontecendo, revoltou-se e chamou a polícia. A gestante fez o aborto algemada e, em seguida, foi levada para um presídio, onde ficou por três meses. A médica falou para ela que havia feito aquilo para que outras mulheres não fossem para lá abortar, pois o hospital tinha problemas maiores para resolver. A grávida foi indiciada por homicídio qualificado, o que revela uma visão muito conservadora de quem a condenou. Conseguimos, com ajuda de outros advogados, retirar a acusação. Hoje ela responde por auto-aborto e tem possibilidade de sair com a ficha limpa.
Rets - Casos como esse são comuns?
Rosana Alcântara - Acontecem. Estamos iniciando uma pesquisa sobre os processos relacionados a aborto no Rio, mas já sabemos que o número é alto. O indiciamento é comum não só por parte de médicos como também das famílias que não aceitam essa prática.
Rets - Você acredita que aborto e planejamento familiar estão ligados?
Rosana Alcântara - Sim, se a pessoa tem informação e meios para fazer um planejamento familiar adequado, o aborto não será alternativa. A pessoa precisa saber que o aborto pode trazer seqüelas graves, logo é melhor prevenir. Daí também a morte materna ser também um fenômeno grande e que pode ser vencido com mais informações. Hoje é muito difícil, para grande parte das mulheres, fazer um pré-natal - prática que evita boa parte dos riscos da gravidez.
Rets - A que você atribui a resistência a essas medidas?
Rosana Alcântara - De certo modo, no Brasil, a discussão sobre a vida do feto é um véu. A questão central é o controle da sexualidade e do corpo da mulher, que o Estado e a sociedade querem controlar. Estamos avançando em diversas questões relativas aos direitos sexuais e reprodutivos, mas temos dificuldades para levá-las adiante.
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