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Mais reforma em mente

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets





Mais reforma em mente

Na década de 60, o italiano Franco Basaglia iniciava na Europa um movimento para repensar o tratamento dado a pacientes psiquiátricos. Ele questionava a forma autoritária e pouco humana como pessoas com transtornos mentais eram tratadas, mantidas isoladas e sob condições que acabavam por anular sua individualidade. Era o início da idéia de reforma psiquiátrica, que no Brasil ganhou força na década de 70 e hoje em dia se traduz nas demandas do movimento antimanicomial e nas vitórias que as pessoas e instituições ligadas ao tema já obtiveram.

O maior exemplo dessas conquistas é a promulgação da lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, que encerra muitos dos pontos pelos quais a luta antimanicomial vem batalhando. "A lei foi finalmente aprovada, depois de 12 anos de tramitação. Mas houve todo um processo anterior com a criação de leis estaduais e a própria criação e operação de unidades que integram a rede de trabalhos substitutivos", explica Karime Porto, assessora técnica da Coordenação Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde (MS).

A lei, que "dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental", determina - no parágrafo único do artigo 2º - que são direitos da pessoa com transtorno mental, entre outros, "ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis" e "ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental". Ou seja, a lei reorienta o modelo de tratamento psiquiátrico brasileiro para ocorrerem cada vez menos internações e cada vez mais a socialização dos indivíduos.

Na prática, a norma torna oficial e necessária a Rede de Trabalhos Substitutivos, tão solicitada pela luta antimanicomial. A rede consiste em um conjunto de ações e novos postos de atendimento para dar total e amplo suporte a usuários de saúde mental na sua ressocialização. A maior expressão disso são os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e Núcleos de Atenção Psicossocial (Naps). Segundo dados de setembro de 2003, fornecidos pela Coordenação Geral de Saúde Mental e coletados pelo Instituto de Convivência e de Recriação do Espaço Social (Inverso), existiam 477 Caps operando no país. A maioria na região Sudeste: 225. Paralelamente ao crescimento no número destes centros, percebe-se o declínio no número de leitos ocupados em hospitais psiquiátricos, que em 1996 eram 72.514 e no ano passado já haviam decaído para 53.180. "O Brasil é o país que mais tem Caps no mundo. Eles já existem em 532 cidades", afirma Vera Lúcia Marques Vita, coordenadora da Comissão Intersetorial de Saúde Mental (CISM), do Conselho Nacional de Saúde.

Esse aumento do atendimento em Caps e o declínio da utilização da internação hospitalar vão ao encontro da necessidade de desospitalização, uma das diretrizes da reforma psiquiátrica. Isso vem ocorrendo mais fortemente depois do lançamento do programa De Volta Para Casa, lançado pelo governo federal em dezembro de 2003, para pagar benefícios a usuários dos serviços de saúde mental. Os pacientes recebem mensalmente R$ 240, pelo período de um ano, podendo haver renovação caso a pessoa não esteja ainda em condições de se reintegrar completamente à sociedade.

Apesar dos avanços já consolidados, a reforma está longe de estar completa e seu andamento precisa ser constantemente acompanhado. Algumas das críticas mais comuns são a do perigo de apressar a saída de pessoas dos hospitais, sem que elas tenham estrutura para se manter fora; a necessidade de implantar todas as unidades e serviços da Rede de Trabalhos Substitutivos, incluindo unidades e ações; e a desresponsabilização do poder público com relação à questão.

A Cism (antiga Comissão de Reforma Psiquiátrica) realiza parte deste acompanhamento. Para a coordenadora da Comissão, o programa De Volta Para Casa é um exemplo: "O processo de desospitalização andou mais rápido do que se esperava. Não se podem tirar, de uma hora para outra, pessoas que não têm a mínima idéia de como viver fora dos muros das instituições psiquiátricas", aponta Vera Lúcia. É o que se chama de "institucionalização" dos pacientes: a pessoa fica a tal ponto impotente, dependente da situação e acostumada com uma determinada realidade, que não tem como sobreviver e se manter fora daquele ambiente.

Assim, para que o processo de desospitalização se dê de uma forma não-traumática e sustentada, é importante que a Rede de Trabalhos Substitutivos esteja montada em todas as suas estruturas e serviços. "Não basta desospitalizar. Tem que haver uma boa forma de continuar prestando atendimento aos pacientes", enfatiza Paulo Amarante, pesquisador da Fiocruz, especialista em saúde mental e um dos precursores da reforma psiquiátrica no Brasil. É o mesmo que defende o escritor Austregésilo Carrano Bueno, membro do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA) e ex-paciente psiquiátrico. Para ele, a rede de trabalhos substitutivos está se limitando aos Caps e Naps, quando deveria ser algo mais amplo e acessível.

"Nós do MNLA defendemos a formação de toda a rede. Está tudo muito centralizado nos Caps. É preciso complementar, e isso inclui que as pessoas em surto ou crise sejam internadas em hospitais gerais e tenham a assistência de uma equipe interprofissional (psicólogos, assistentes sociais, psiquiatras). Em sete dias essa pessoa deve ser avaliada e, se for possível, receber alta e continuar o tratamento nos Caps. Além disso, é preciso ter psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais nos postos de saúde. Existe ainda a necessidade de implementação de duas outras figuras da rede de trabalhos substitutivos, que são as casas terapêuticas e os centros de cidadania e cooperativa. Enfim, existe uma série de coisas que ainda precisam acontecer para termos uma rede que atenda direitos aos usuários de serviços de saúde mental", defende Carrano Bueno, que é o representante dos usuários na CISM e autor do livro "Canto dos Malditos", que deu origem ao filme "Bicho de Sete Cabeças".

Vera Lúcia concorda quanto à necessidade de implantação de mais casas terapêuticas. "Acho que nós da Comissão ainda vamos ter que batalhar muito, principalmente em prol das casas terapêuticas – lares alugados pelo Sistema Único de Saúde onde podem morar os usuários que não estão mais internados em hospitais psiquiátricos e que, ao mesmo tempo, não querem voltar ou não têm família", diz a coordenadora da Cism, órgão composto por representantes de usuários, de familiares e de profissionais de saúde, com caráter consultivo no Conselho Nacional de Saúde, para o qual faz recomendações de como o tratamento a usuários de saúde mental pode ser melhorado.

Por sua vez, Eva Calheiros, coordenadora do Inverso, acredita que o processo de implantação da reforma psiquiátrica "está rápido, porém podia ser mais rápido. Já obtivemos a primeira grande vitória, que é a diminuição do número de leitos nos grandes manicômios. Agora, para ir adiante, basta os municípios quererem e implantarem mais Caps". Com relação a essas unidades, Carrano Bueno faz apenas uma ressalva: "Os Caps são um adianto, mas não a solução completa. Acho que os técnicos da saúde mental estão acomodados. Falta criatividade, como a implementação de atividades fora dos Caps (como idas a cinemas, teatros etc.), senão os Caps viram manicômios a céu aberto. A pessoa vai do seu quarto para o Caps, do Caps para o quarto", observa.

Um outro ponto que merece atenção é o cuidado que se deve ter para que o Estado não se exima por completo de sua responsabilidade, ao transferir o atendimento a pacientes psiquiátricos para unidades fora de sua rede. "A transferência do cuidado dos usuários de saúde mental para Caps municipais e até para aqueles administrados por organizações da sociedade civil não pode significar a desresponsabilização do Estado", enfatiza Paulo Amarante. Ele lembra que, para o Ministério da Saúde, é cômodo e econômico tirar dos os hospitais os pacientes internados, como acontece com aqueles beneficiados pelo programa De Volta Para Casa. Neste caso, o usuário dos serviços de saúde mental recebe um benefício de R$ 240. Caso continuassem internados, o MS gastaria cerca de R$ 860 por mês com cada paciente. “Concordo plenamente com a desospitalização e fui um de seus defensores logo no início do movimento de luta contra os manicômios. Mas é preciso ter cuidado”, alerta.


Maria Eduarda Mattar

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