Autor original: Fausto Rêgo
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O canadense Cory Doctorow pode ser definido como um ativista da liberdade e da inovação. Coordenador da Electronic Frontier Foundation na Europa - organização americana que luta por ciberdireitos -, Cory também é jornalista free-lancer, escritor de ficção-científica e blogueiro. Seu trabalho está, em parte, focado na proposição de reformas ao sistema de propriedade intelectual defendido pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual (Ompi), mas seu discurso e sua atuação também abrangem temas como utopias socialistas, a abolição do dinheiro e uma obsessão: a Disney – segundo ele, do lado de dentro dos parques a Disney é uma utopia socialista; do lado de fora, uma empresa litigiosa e usurpadora de direitos.
Nesta entrevista exclusiva, Cory fala sobre o futuro da Ompi, licenças alternativas de propriedade intelectual, Microsoft, Disney, Hollywood e os tiros no pé que estas empresas estão dando ao tentarem proteger seus mercados controlando o compartilhamento de conteúdos com métodos rígidos de proteção da propriedade intelectual. "É como colocar pimenta na sopa", afirma Doctorow. "Se puser demais, vai ser impossível tomá-la".
Rets - O senhor participou recentemente de uma oficina realizada pelo Transatlantic Consumer Dialog para discutir o futuro da Organização Mundial para a Propriedade Intelectual (Ompi). O documento que apresenta um plano de médio prazo para os programas e as atividades da Ompi para o período de 2006 a 2009 expõe como objetivos principais "a manutenção e a ampliação do respeito à propriedade intelectual em todo o mundo, o que significa que qualquer ameaça à situação já existente deve ser contida". Que ameaças o senhor entende que a Ompi pretende evitar? Isso, de alguma forma, está relacionado à mobilização da sociedade civil dentro do processo da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação e à discussão dos direitos de propriedade intelectual?
Cory Doctorow – Os objetivos da Ompi são os objetivos do direito à propriedade, do uso da propriedade intelectual para maximizar a criatividade em benefício da atividade econômica. É para isso que ela existe, para limitar o uso da criatividade por meio de ferramentas como o direito à propriedade intelectual, o direito autoral, as marcas registradas. O que a Ompi quer evitar é que se propague a noção de que não é possível exercer a criatividade com outros tipos de direitos de propriedade intelectual.
O que estou fazendo é colocar o assunto na agenda internacional. Os países que possuem os termos mais restritivos de propriedade intelectual estão enfrentando dificuldades com as licenças de 70 anos que estão expirando agora. A Ompi reagiu a chamada Database Copyright Law [Lei de Registros de Direito Autoral], que permite a criadores de obras baseadas em itens não originais registrá-las. Assim, uma agenda telefônica, catálogos de sites ou as cores do arco-íris poderão ser propriedades de alguém. E quando outro alguém quiser utilizá-los, não poderá, pois estarão registrados.
Outro ponto importante a ressaltar é a questão dos bancos de dados. Em alguns países cresce bastante a criação de banco de dados, mas em outros não. Esse é um bom exemplo de como a Ompi está tentando restringir nossa criatividade. Se olharmos os países com mais registros de direitos autorais, como os da União Européia, e compará-los aos que não os possuem, como os Estados Unidos, encontramos nestes mais criatividade do que naqueles. E os direitos de propriedade intelectual têm restringido o desenvolvimento de bancos de dados na Europa, pois é muito mais caro fazer isso lá do que nos EUA. Os fundadores do Google, por exemplo, investiram bastante na formação do maior banco de dados que o mundo já viu. Se pudessem cobrar direitos autorais por ele, ganhariam mais dinheiro do que qualquer um já imaginou. Porém seu trabalho é livre de pagamento de direitos de propriedade intelectual.
Temos, então, essa idéia de que podemos proteger a propriedade intelectual simplesmente bloqueando-a, e assim proteger o mercado - quando, na verdade, o que isso faz é retardar o crescimento do mercado. É como colocar pimenta na sopa. Você pode botar pimenta na sopa para que ela fique mais gostosa. Mas se puser demais, vai ser impossível tomá-la.
Rets – Iniciativas como as licenças Creative Commons e o copyleft redesenharam o cenário da propriedade intelectual. De que maneira a legislação está se adaptando a esses novos conceitos? As licenças Creative Commons conseguem abranger todas as questões que emergem no que diz respeito ao compartilhamento e à livre distribuição de conteúdo?
Cory Doctorow – A Creative Commons (CC) certamente abrange todos os assuntos relativos a questões de direitos autorais. É o começo de uma caminhada rumo a um regime mais permissivo no qual criadores e detentores de direitos possam renunciar a alguns de seus direitos de propriedade intelectual. É certo que tanto a CC quanto outras iniciativas de copyleft rearrumam os pilares do direito autoral, o que é algo muito bom.
Entre seus objetivos, um que está sendo alcançado é a criação de uma prova viva de que você pode se livrar das amarras do direito autoral proprietário. Outro é a criação de um contexto no qual possamos desafiar e forçar os donos de empresas detentoras de direitos autorais a incluir outros tipos de abordagem em relação a eles. Mais direitos de propriedade intelectual permitem mais modelos de negócios e eles permitem mais criatividade, o que cria um mercado mais interessante no qual as pessoas podem competir por formas digitais mais interessantes para o trabalho.
Um exemplo prático é quando discutimos padrões de vídeo (assim como os catálogos que são utilizados por pessoas para divulgar vídeos) que permitem que qualquer pessoa faça downloads, compartilhe suas produções e as edite mundo afora. Então podemos dizer para as corporações: “Ei, essa é uma das maiores comunidades de troca do mundo, então, se vocês forem desenvolver padrões de vídeos, devem levá-la em consideração”. Quando falamos dessas comunidades na Internet, referimo-nos aos maiores servidores de mensagens, plataformas, sistemas operacionais, todos sob copyleft. Cada vez mais, quem quiser criar um sistema confiável de computação precisa estar ciente que esse sistema precisa conversar com as plataformas predominantes, que são construídas com base em liberdade e não em restrição.
Rets – A American Library Association (ALA) e a Motion Picture Association of America lideram uma campanha contra a pirataria e a violação de direitos autorais em escolas norte-americanas. Pesquisas mostram que um grande número de jovens, nos Estados Unidos, costuma fazer o download de filmes e músicas. Essa é uma tendência irreversível? Pode ser modificada por campanhas educacionais?
Cory Doctorow – Claro que não. Isso é o tipo de auto-ilusão que Hollywood tem e da qual, de alguma forma, a American Library Association participa. Não sei o nome da campanha, mas acredito que seja uma terrível traição aos seus [da ALA] princípios. Em relação a saber se Hollywood pode ou não educar as pessoas sobre a troca de arquivos, eles estão fazendo a interpretação errada. Se eles pensam que as pessoas trocam arquivos porque são gratuitos, estão errados. Apenas uma pequena parte baixa filmes. A principal razão para as pessoas trocarem arquivos é a “experiência de usuário”. Estão disponíveis, sob demanda, todos os filmes de uma vez só. Os filmes estão disponíveis sem restrições, vêm em formato aberto, em diferentes plataformas que podem ser facilmente decodificadas.
Há diversas empresas ao redor do mundo buscando formas de levar vídeos de telefones para TVs, de TVs para computadores e de computadores de volta para telefones. Esse é um processo relativamente simples se você estiver usando formatos abertos como o MPEG, que pode ser utilizado em todas essas mídias. O processo só se torna complicado quando você tenta quebrar as plataformas de forma seletiva e torná-las mais restritivas.
Os estúdios de Hollywood têm analisado como seus consumidores querem receber seus produtos e decidiram que eles - os consumidores - estão errados. E decidiram também que a melhor forma de levar adiante seus negócios é contar aos consumidores o quão errados eles estão. Qualquer um que esteja no mercado entende o quanto essa atitude é desesperada e sem rumo.
Hollywood ignora isso e age como se trocas fossem coisa de crianças. Acho que será inevitável que sejam surrados no mercado.
Rets – Em seminário realizado recentemente pela Central European University, o senhor afirmou que o Digital Rights Management (DRM) – conjunto de tecnologias que cria mecanismos para conter o abuso de direitos autorais – é nocivo à sociedade, uma má idéia para os negócios e uma péssima opção para os artistas. Ocorre, porém, que empresas como a Microsoft e a Disney vêm adotando cada vez mais essas tecnologias. Como o senhor analisa isso?
Cory Doctorow – Acho uma idéia ruim para os negócios de empresas de entretenimento porque o objetivo do DRM é fazer as coisas não progredirem. Um dos assuntos surgidos na Transatlantic Dialog Conference [Conferência do Diálogo Transatlântico] é que as pessoas acham que a Internet é cheia de pequenos defeitos. Elas pensam que a capacidade da Internet de copiar arquivos de forma barata e rápida é um problema que precisa ser consertado, quando, na verdade, esse é o seu jeito de funcionar, é sua propriedade central.
Tradicionalmente desenvolvemos tecnologias para tornar mais fácil a cópia, a criação e a mistura de material. E tradicionalmente grandes organizações como a Disney reagem com pânico. Elas dizem que você não tem permissão para “brincar”, para copiar do vídeo, do rádio, do filme, todas as coisas que destruiriam os negócios da forma como os conhecemos.
Empresas como a Disney seriam grandes beneficiárias das tecnologias que elas mesmas tentaram banir, como a TV a cabo, a Internet ou o videocassete. Faremos a elas um desserviço se também entrarmos em pânico e se concordarmos com suas políticas. Isso seria voltar no tempo. Com o videocassete aconteceu isso. Tentaram mantê-lo fora do mercado, mas nos últimos 20 anos o aparelho mais do que dobrou os lucros a ele relacionados, tornando-se uma das maiores fontes de faturamento dessas companhias. Por isso acho o DRM uma má idéia para a Disney. As empresas de entretenimento sempre reagem com pânico a novas tecnologias. Isso tem acontecido a cada 15 anos, no último século.
Já em relação a empresas como a Microsoft a questão é um pouco mais complicada. Essa é uma má idéia para a Microsoft, porque ela está se colocando em uma posição como a da DiscoVision, que no começo do videocassete afirmou às empresas de Hollywood que o vídeo destruiria seus negócios. Em seu lugar propôs um vídeo “amigável” a Hollywood, cujas fitas só seriam lidas e gravadas por vídeos por eles produzidos e cujas fitas seriam difíceis de serem copiadas. Para copiá-las, seria necessário um equipamento especial que nunca poderia ser encontrado no mercado.
A DiscoVision não vendeu nada, pois ninguém queria aquilo. Mesmo que Hollywood concedesse uma licença a ela liberando todo seu conteúdo para comercialização em formato DiscoVision, ninguém quereria comprar aquele formato. Preferiam a versão relativamente “aberta”, Betamax ou VHS.
A Microsoft está se tornando uma nova DiscoVision. Ela está oferecendo a Hollywood um formato fechado e esperando que não surja nenhuma resposta relativa a um formato mais aberto que as pessoas comprem e ajustem. Acho que esse é um mau negócio para a Microsoft ou qualquer empresa que venda apenas produtos em um formato aprovado por Hollywood.
Para entendermos por que estas empresas estão fazendo isso, é preciso olhar a história do desenvolvimento tecnológico nos EUA, de onde as grandes empresas surgiram. Na primeira década de sua existência, elas estavam protegidas sob a asa dos militares, com os quais estabeleciam contratos. Nos EUA, empresas ligadas aos militares não precisam justificar sua existência, pois os militares recebem boa parte de seu orçamento secretamente, em comitês secretos do Senado. Nesse contexto, não é surpresa que as empresas de tecnologia não tenham desenvolvido até hoje nenhum tipo de medida regulatória. Nunca houve ninguém atrás delas cobrando e, quando precisavam de mais dinheiro, bastava pedir outra verba secreta por intermédio de um general. O resultado foi que elas se colocaram como não-regulamentáveis e resistiram a todo tipo de tentativa de acabar com isso. E o que descobriram foi que, apesar de não serem reguladas, eram um alvo de regulação como qualquer outra área.
Rets – Qual deve ser o futuro da Ompi?
Cory Doctorow – Acho que a Ompi deveria adotar os princípios que propusemos na reunião: princípios que promovam a criatividade, mais voltada para o interesse público, e não direitos de propriedade intelectual. Creio que a forma pela qual a Ompi pode embarcar nisso é criando ferramentas que imponham limites à propriedade intelectual e que abranjam, focalizem e misturem culturas. Que entenda que diferentes países possuem diferentes formas de entender a propriedade intelectual, que unificar posições de propriedade intelectual não significa que todos os países possuem os mesmos termos e estruturas, que todos os países unifiquem suas propriedades intelectuais de acordo com seus critérios e decidam com base em cada caso. E que decida quais direitos de propriedade intelectual se encaixam melhor na agenda internacional. Essas são as áreas para as quais a Ompi deveria estar direcionada.
Graciela Selaimen
Colaborou Marcelo Medeiros
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