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A ONU e a sociedade civil

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Artigos de opinião

Jacques Attali*






A ONU e a sociedade civil


Por ocasião da reunião da Assembléia Geral da ONU, imaginemos outra grande reunião no grande anfiteatro: uma Assembléia Geral das organizações não governamentais.

Estou convencido de que a próxima evolução da governança global é formalizar o papel destas instituições na sociedade civil, ao lado das nações-estado enfraquecidas que hoje formam as Nações Unidas e as grandes empresas multinacionais cuja influência transcende qualquer fronteira política.

As Nações Unidas, que nasceram depois da Segunda Guerra Mundial, apenas começaram a funcionar efetivamente no fim da Guerra Fria - precisamente no momento, ironicamente, em que as nações que constituem o organismo internacional começaram a perder o seu poder para a globalização econômica. Agora está na altura de apostar na globalização da democracia.

Do mesmo modo que o Estado moderno derivou do feudalismo e o capitalismo cresceu nas guildas profissionais, as ONG estão a dar origem a uma nova entidade dinâmica que, tal como o mercado global, atravessa todas as fronteiras dos Estados-nação e que um dia, creio eu, será mais forte do que o mercado e as forças políticas.

Este sonho é realista: Hoje em dia, as ONG têm mais influência no destino da humanidade do que muitos países que têm assento nas Nações Unidas. Mesmo nas piores ditaduras, mulheres, homens e crianças melhoraram as suas condições de vida ao juntarem-se voluntariamente, para além da política, para resolverem preocupações prementes com as quais nem governos nem empresas privadas são capazes ou querem lidar.

Muitos acontecimentos importantes nos últimos 50 anos tiveram origem nestas organizações da sociedade civil: a luta pelos direitos humanos, a assistência humanitária, a emergência médica, o direito a morrer com dignidade, o direito ao controlo de nascimentos, os direitos das mulheres, a sensibilização para novas doenças como a sida, os direitos das crianças, o direito à educação e aos cuidados médicos, o direito à informação, à liberdade de associação e à proteção ambiental. Todas estas mudanças tiveram origem em grupos ativistas organizados e não em partidos políticos, empresas privadas, governos ou sindicatos.

Trazer estes desafios à luz do dia no último meio século tem sido justamente o papel das ONG, o destino do nosso planeta depende em grande parte do seu papel no futuro.

Comecemos por expor diversas teses sobre o mundo em que vivemos:

- Apesar dos progressos para o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio estabelecidos pelas Nações Unidas, muitos objetivos não serão atingidos até 2015. Por exemplo, a assistência pública ao desenvolvimento com base numa percentagem do Produto Interno Bruto dos países doadores atingiu o nível mais baixo, e os montantes definidos pelas Nações Unidas para apoiar os países mais pobres diminuiu. As exportações dos países mais pobres para os mais ricos estão em queda constante - exceto no que se refere à exportação de armas e petróleo.

- Nos tempos que se aproximam, a pobreza - a primeira causa de violência, o declínio da democracia e o desaparecimento dos serviços públicos - aumentarão. Hoje, mais de um terço da humanidade sobrevive com menos de 2 dólares por dia (que define o limiar de pobreza). Se não houver mudanças, quase metade da humanidade passará a entrar nesta categoria. No outro extremo da escala social, a riqueza estará mais mãos de um punhado de pessoas. Neste mundo, o terrorismo florescerá e talvez dê azo a uma verdadeira guerra entre os ricos e os outros, mesmo no seio dos países mais ricos.

E mesmo assim, mais do que nunca, o nosso mundo tem meios políticos, financeiros, econômicos e tecnológicos para resolver estes problemas. Também tem meios militares e ambientais para cometer um suicídio planetário. Freqüentemente, parecemos estar no caminho certo para fazer este último.

- Governos e movimentos políticos ou terroristas podem determinar o mapa político do mundo, mas não podem defini-lo sozinhos. Com o avanço da globalização, velhas nações dividem-se e novos países se formam. Os Estados já não conseguem defender a sua identidade cultural nem garantir o bem estar dos seus pobres. Muitas regiões do mundo, desde favelas a guetos urbanos, estão a tornar-se zonas «quentes» onde os serviços da ordem têm pouca ou nenhuma autoridade.

Embora as empresas privadas tenham capacidade, muitas vezes mais do que o Estado, para influenciar o mundo através das suas inovações tecnológicas (da genética à informática), da organização do trabalho, da penetração do mercado e promoção do consumismo, estas grandes multinacionais também não têm meios suficientes ou interesse em construir um mundo sustentado.

- Organizações cívicas criadas há muito tempo - partidos políticos coexistindo com governos e sindicatos com empresas - não estão preparadas para lidar com o novo conjunto de problemas que derivam da economia política global dos nossos dias, confrontada com prementes desafios ecológicos.

- Para resolver esses problemas, as novas organizações sem fins lucrativos - ONG - fornecem bens e serviços cívicos, desde a promoção e proteção dos direitos humanos até à assistência à fome, cuidados médicos e melhoria ambiental. Tornam assim o mundo mais tolerável e habitável. Ajudam as Nações Unidas a realizar as suas missões de manutenção da paz e desenvolvimento.

Estas ONG conferem algum sentido à globalização, que sem elas não passa em geral de uma paisagem de mercados e guerras. Levam à mesa do poder militar e econômico os conceitos de governança global, os direitos das gerações futuras, igualdade social, os direitos das mulheres e das minorias.

Lutam pelos fundamentos da democracia em vez de simples eleições livres: liberdade de expressão, proteção das mulheres e das crianças, oposição à pena de morte, direito ao trabalho, direito de abrigo e de acesso ao crédito. As ONG inventaram o conceito de desenvolvimento sustentado.

São líderes na luta pela defesa da diversidade das espécies, línguas e culturas e contra o aquecimento global. E deram o exemplo para a solução do problema da pobreza ao criarem instituições de microcrédito - a ferramenta financeira do futuro - em todo o mundo.

Tendo em conta estas realidades, quais os passos que devem ser dados em seguida?

Para começar, não gosto do nome que outros deram a estas novas entidades. A três letras de “ONG” (NGO em inglês) representam três das palavras mais odiadas em qualquer língua: “não”, uma negativa; “governamental”, que nos faz pensar em Estado invasivo; e finalmente “organização”, que nos traz a idéia de burocracia. Quem poderia pensar em nome pior?

Não devemos continuar a aceitar este nome e temos de encontrar outro. A minha sugestão seria “instituições de solidariedade”. (No mundo anglo-saxão, segundo parece, «solidariedade» tem um cunho nitidamente estrangeiro. Talvez outra palavra, como “humanitário”, tivesse maior ressonância).

Esta discussão não é anedótica. Dar um nome é precisamente dar nome à finalidade de uma existência.

Para cumprir o seu potencial, as «instituições de solidariedade» têm de se tornar mais profissionais na sua administração e mais transparentes no seu financiamento e gestão. De fato, um código de ética deve definir as condições de admissão de qualquer grupo que tenha o direito de enviar os seus representantes a uma futura assembléia global.

Como já existe uma Assembléia Geral das Nações Unidas e como as grandes empresas têm locais de reunião, as instituições de solidariedade também devem ter o seu próprio fórum. O Fórum Social Mundial em Porto Alegre, Brasil, de certo modo cumpre esse objetivo. Para ir ainda mais longe, a cimeira anual das ONG nas Nações Unidas, de que na semana passada se realizou a 57ª e pela qual tanto devemos ao secretariado geral da ONU, deve tornar-se institucional e autônoma: umas Nações Unidas das ONG, ou antes uma World Solidarity Institutions Organization - a WSIO.

Uma tal organização deve procurar definir objetivos de atuação para os próximos 15 anos, juntamente com governos e empresas. Eis algumas sugestões:

- Um mundo sem pobreza é possível se a microfinança se tornar uma prioridade. A microfinança é a única maneira de a maioria dos seres humanos do planeta terem qualquer esperança de ganhar a vida. Atualmente, mais de 60 milhões de pessoas já têm acesso a ele. Nos próximos 20 anos, este número poderá chegar a um bilhão.

- É possível um mundo sem ditaduras. Para atingir este objetivo, o direito de interferir em países que matem ou maltratem a sua população deve ser inteiramente reconhecido. E a nenhuma ditadura deve ser autorizada representação nas Nações Unidas.

- Todas as pessoas devem ter acesso à satisfação das necessidades básicas: água, ar puro, alimento, abrigo, conhecimento e liberdade.

- O financiamento da governança global para atingir estes objetivos deve ser aumentado através de um imposto global sobre emissões de dióxido de carbono, que mais contribui para o aquecimento global.

- Os governos não conseguirão atingir sozinhos estes objetivos e fazê-lo não é o papel das grandes empresas privadas. Só podem ser alcançados por ONG/WSIO que funcionem com valores humanitários e geralmente com voluntários. Assim, todos os países devem oferecer créditos fiscais a quem dedicar o seu tempo a trabalhar com instituições de solidariedade; as empresas devem oferecer licença com vencimento por essas atividades. Além disso, qualquer país que impeça as instituições locais de solidariedade de trabalharem e se desenvolverem livremente no seu território deve ser excluído da assistência internacional.

As ONG já demonstraram a sua capacidade para ter impacto no mundo. E agora o mundo precisa delas mais do que nunca. Vamos dar um passo em frente e formalizar o seu papel na governança global. Chegou o momento de o fazer porque o tempo se está a esgotar. O nosso futuro é demasiado importante para deixar os governos e as grandes empresas sozinhos.

*Jacques Attali é intelectual e escritor francês, presidente da PlaNet Finance. Foi fundador e presidente do Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento e colaborador do Presidente François Mitterrand. A tradução para o português é de Aida Macedo. O artigo foi publicado originalmente em http://expresso.clix.pt.





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