Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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Os anos de 2003 e 2004 foram um período de grande exposição para as ONGs. Foram os anos em que o Projeto de Lei 7/2003 tramitou pelo Congresso Nacional, encontrando-se atualmente na Câmara dos Deputados. O PL, que pretende estabelecer um controle rígido e burocrático sobre as atividades das organizações não-governamentais, foi gerado como resultado final da CPI das ONGs, encerrada no final de 2002 e capitaneada por membros da chamada bancada amazônica no Senado (com a intenção, segundo uma análise mais aprofundada de vários membros de ONGs, de revidar as denúncias, feitas por organizações ambientais, de crimes ecológicos na região). O período foi também de crescente espaço dispensado pela grande mídia às entidades do chamado terceiro setor – o que ocorreu em parte por causa do maior interesse dos legisladores em regular as atividades dessas organizações e, de outra parte, pelo aumento paulatino no número dessas instituições.
Essa conjunção de fatores proporcionou um contexto em que a articulação, a consolidação da identidade política das ONGs e a discussão sobre o marco legal dessas entidades se mostraram cada vez mais necessárias. É dentro desse esforço que a Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong) tem realizado, por intermédio de suas regionais, oficinas e seminários de discussão sobre a legislação que vem sendo proposta para regular o setor, sobre a importância de se definirem com detalhes que tipos de organizações devem ser atingidos pela legislação a ser criada e, não menos importante, a própria definição da identidade política das ONGs – abrangidas pelo grande conjunto delimitado pelo termo terceiro setor, porém com histórias, formas de atuação e motivações diferenciadas.
Foi o que aconteceu, por exemplo, no seminário "Marco legal e o papel das ONGs na construção do espaço público: dilemas e desafios na conjuntura atual", promovido pela Regional Sudeste da Abong nos dias 26 e 27 de outubro, no Rio de Janeiro. No evento, entre outros temas, foram discutidos "As ONGs e a relação com o Estado", "O histórico da construção do marco legal: da legislação das OSCIPs aos dias atuais" e "As diversas compreensões sobre o marco legal". Os assuntos foram o ponto de partida para a definição mais clara do que caracteriza as ONGs (que instituições se inserem nessa classificação?), o que elas querem das leis e como podem e devem se organizar para conseguir dialogar entre si e com o governo e os legisladores a respeito desses assuntos.
O debate sobre uma legislação que atinja as ONGs não é uma iniciativa do governo, mas das próprias organizações. A Abong – que representa uma parcela significativa dessas entidades, em especial aquelas identificadas e formadas para a defesa de direitos – se reuniu em setembro de 2003 com o presidente Luis Inácio Lula da Silva. A intenção era expor a demanda de uma legislação que contemple devidamente as organizações não-governamentais – entendendo toda a importância e a função que essas instituições vêm tendo na atualidade. Para a Abong, é fundamental a criação de leis que percebam e legitimem o interesse público (no sentido de interesse social, de importância para os cidadãos) que as ONGs têm. E também a criação de uma legislação que preveja, inclusive, mecanismos para barrar instituições oportunistas. “Na ocasião, o presidente incumbiu o secretário geral da Presidência da República, Luis Dulci, de dar um tratamento à agenda que nós levamos”, relembra o diretor geral da Abong, Jorge Eduardo Saavedra Durão.
O que complica esse processo de elaboração de uma legislação que contemple todas as especificidades e nuances que caracterizam o trabalho das ONGs é a existência de algumas leis, criadas desde a primeira metade do século passado, que já regulam as atividades de parte das instituições que se encaixam no chamado terceiro setor, que congrega todas as instiuições sem fins lucrativos. (Para conhecer com detalhes sobre a legislação que rege essas organizações, leia o documento O Conceito Legal de Público no chamado Terceiro Setor, disponível para download, ao lado)
E, além disso, a tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal de projetos de lei – como é o caso do já citado PL 7/2003 – que, além de não responderem às especificidades do universo das ONGs, pretendem criar formas rígidas e engessadas de controle das organizações não-governamentais, gerando problemas e entraves ao funcionamento de muitas delas.
Perigo da terceirização e aversão ao controle
Uma das leis já existentes que mais têm impacto na atividade das ONGs é a Lei das OSCIPs – Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (lei nº 9790), aprovada em 1999, fruto das Rodadas de Interlocução Política (parte das atividades do Conselho da Comunidade Solidária, complexo de ações na área social durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso). A norma estabelece diversos critérios de transparência para que a entidade possa receber o título de OSCIP – e, nesse ponto específico, é considerada um progresso. “Do ponto de vista legal, a lei é um avanço, pois é considerada de interesse público uma parte das organizações que reflete as associações”, diz Alexandre Ciconello, assessor jurídico da Abong. Também é dessa opinião o advogado especializado em terceiro setor Paulo Haus Martins: “A lei acende uma luz, pois torna obrigatória a publicização dos termos de parceria, suas prestações de contas etc.”
Apesar disso, a lei recebe críticas de muitas ONGs que acreditam que a figura das OSCIPs é uma saída estratégica para o governo terceirizar serviços que deveriam ser de sua competência. O que causa essas críticas é a figura do Termo de Parceria, “contrato” que pode ser estabelecido entre as organizações com titularidade de OSCIP e órgãos governamentais, sem licitação. A respeito disso, Silvio Caccia Bava, coordenador do Instituto Pólis e ex-diretor da Abong, opinou – durante o seminário ocorrido no Rio de Janeiro – que “as OSCIPs facilitam a contratação pelo Estado, sem licitação, de organizações, podendo fazê-las perderem a autonomia. As OSCIPs parecem ter nascido para isso”.
Do outro lado, entre as leis a serem criadas, estão PLs cujo texto, apesar de pretenderem regular as organizações não-governamentais, não foi discutido com as mesmas. E, em alguns casos, pretendem dificultar a atuação dessas entidades, seja aumentando o controle e a censura sobre suas atividades, seja limitando o acesso delas a fundos públicos – este último ponto, um dos mais debatidos no seminário realizado nos dias 26 e 27. A percepção geral entre as ONGs é de que as normas estão sendo criadas para criar obstáculos à obtenção de recursos aos quais a sociedade civil organizada, por estar realizando trabalhos de fim público, poderia – e deveria – ter acesso. “A Constituição reconhece que somos veículos de concretização da democracia participativa e, por isso, dá imunidade tributária. O governo federal – nessa e em outras gestões – quer açambarcar a maior parte de recursos financeiros que puder. E as ONGs estão no meio do caminho, pois têm isenção ou imunidade tributária em alguns casos. Mas quem faz não precisa pagar, nem ter vergonha disso”, defende Paulo Haus.
Proposta para o diálogo
Assim, nesse contexto de reconhecimento sobre que legislação existe, que normas estão sendo propostas e que leis são desejáveis, as organizações não-governamentais vêem-se, ao mesmo tempo, divididas: que leis existem e devem ser seguidas? Que projetos de lei precisam ser refutados? E que leis precisam ser propostas, para que o conjunto da legislação finalmente faça jus à importância do trabalho das ONGs? É nesse contexto que o esforço de discussão da Abong se encaixa. “Mesmo que tenhamos leis que de certa forma digam respeito a uma parcela das organizações não-governamentais ou a uma parcela das atividades que essas organizações realizam, estamos em um momento de defesa, frente a um projeto que quer cercear, quer criar mais controle”, diz Ciconello, referindo-se ao PL 7/2003.
Ou seja, é preciso discutir. E, nesse sentido, uma proposta aventada por Caccia Bava pode ser um ponto de partida para chegar à legislação que se deseja. “A Abong tem 12 ou 13 anos de existência. E tem 12 ou 13 anos que se discute marco legal. Não podemos nos limitar a fazer emendas ao projeto governamental. Devíamos pensar em nos organizar em bancadas no Congresso que defendessem os interesses das organizações que lutam pela defesa de direitos. Devíamos pensar em um projeto próprio”, propõe o sociólogo.
Sobre isso, Durão acredita ser possível a criação de uma proposta que reflita o desejo das ONGs, mas tem a consciência de que será pouco provável aprová-la junto ao Congresso. “A atual diretoria da Abong já decidiu elaborar uma proposta própria como instrumento para o diálogo. Mas não acreditamos – e há uma diferença importante – que exista uma correlação de forças na sociedade brasileira que propicie a aprovação de um projeto que atenda exclusivamente a nossa visão sobre o assunto. Só será viável, do ponto de vista da aprovação do Congresso Nacional, um projeto que reflita um compromisso entre os diferentes setores interessados no assunto. A proposta própria servirá para a interlocução, sem a ilusão de que daremos a tônica do projeto”, pondera, já se preparando para o encontro marcado com a Secretaria Geral da Presidência para tratar exatamente desse assunto.
A Abong iniciou o diálogo. Resta saber quem será o interlocutor.
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