Autor original: Marcelo Medeiros
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Na última quinta-feira o pedido de demissão do ministro da Defesa, José Viegas, foi aceito pelo presidente Lula. A saída havia sido pedida no dia 22 de outubro, mas só agora foi anunciada. Viegas tomou a decisão depois da publicação de uma nota pelo Exército em resposta à divulgação, pelo jornal Correio Braziliense (e, em seguida, por outros jornais) de fotos que seriam do jornalista Vladimir Herzog, morto sob tortura por militares em 1975. O Exército afirmou que as práticas adotadas durante a ditadura (1964-1985) se justificavam pelo contexto da época. O texto foi enviado a jornais e teve repercussão negativa na sociedade. Por isso o comando do Exército publicou dias depois um segundo comunicado, mais brando.
A publicação das fotos e a nota do Exército também reavivaram uma questão antiga e muito importante sobre o período do governo militar: a existência dos arquivos das Forças Armadas sobre aquela época - e a demanda pela sua abertura. Mesmo com a volta dos governos civis, nega-se a existência de documentos que indiquem como e onde foram mortos militantes de esquerda. Os registros sobre a guerrilha do Araguaia, por exemplo, teriam sido queimados. Porém há quem acredite que isso não passe de jogo de cena.
A psicóloga Cecília Coimbra, segunda vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, é uma dessas pessoas. Ela aponta que a existência de fotos comprova a existência de arquivos e, por isso, o governo deveria abri-los para a sociedade imediatamente. “Estão querendo apagar a história do país e não há democracia sem história”, diz. Coimbra se diz decepcionada com a atitude do governo, pois ele é composto por diversos ex-presos políticos. E não poupa críticas. “É uma postura inadmissível para quem já foi companheiro de luta”, reclama.
Nesta entrevista ela comenta a publicação das fotos dos arquivos militares, a negação da abertura de arquivos e o comportamento do governo perante o caso.
Rets - Após a polêmica sobre as fotos que seriam do jornalista Vladimir Herzog o governo afirmou que os arquivos do período militar serão reabertos, mas sem estardalhaço e depois de muita discussão interna. Você acredita nessa abertura?
Cecília Coimbra - Sim, mas costumo dizer que esse discurso se assemelha ao do [general Ernesto] Geisel, com a história da abertura lenta e gradual para a democracia. Parece que o espírito do general está presente nesse governo.
É um absurdo a existência dessa postura, principalmente neste governo. Já seria um absurdo sob qualquer governante, mas sobretudo neste, onde estão ex-companheiros de luta, que foram presos e torturados. É um desrespeito não só com as famílias e amigos de militantes assassinados, mas também com a sociedade brasileira.
Estão mantendo a história recente do país sob tutela militar, o que é lamentável. Se essa atitude viesse de quem apoiou a ditadura, de quem participou dela, explicaria, mas não justificaria. Mas esse? Cheio de companheiros? Chego à conclusão de que o governo continua tutelado pelos militares.
Rets - O Brasil voltou no tempo?
Cecília Coimbra - Nunca se conseguiu uma ruptura, na verdade.
Rets - Outros países da América Latina estão em busca dessa ruptura. Na Argentina e no Chile, que também passaram por ditaduras nas décadas de 70 e 80, os responsáveis por assassinatos e torturas foram ou estão sendo processados. Como você vê essa diferença de comportamento?
Cecília Coimbra - Estive recentemente na Argentina participando de um seminário sobre memória e contei tudo o que estava acontecendo por aqui. Eles ficaram assustados. Os movimentos de lá têm um lema em relação à ditadura: “não perdoamos, não esqueceremos”. E parece que a sociedade acompanha essa idéia. O Brasil sempre foi mais atrasado em relação a isso. Quer dizer, no período militar, foi bem mais “avançado”. Exportou técnicas de tortura, de interrogatórios, de perseguição e outras práticas muito utilizadas pelas ditaduras da América Latina.
Rets - Em nota a respeito da carta do Exército sobre as fotos que seriam do jornalista Vladimir Herzog, o Tortura Nunca Mais afirma que a lei da Anistia brasileira é a mais retrógrada da América. Por quê?
Cecília Coimbra - Porque se deixou de fora significantes parcelas de envolvidos. Foi criada uma categoria esquisita: a do crime conexo. Ela permite a anistia a torturadores. É uma lei estranha, para não dizer tímida e covarde.
No Chile, por exemplo, apesar da influência do [ex-presidente e general Augusto] Pinochet, tem-se avançado bastante nessa questão. Eles têm procurado julgar os envolvidos.
Rets - Você esteve há pouco na Argentina conversando sobre o assunto. Como eles têm lidado com isso?
Cecília Coimbra - Estava num congresso sobre memória e contei tudo o que acontece por aqui. Causei espanto. Em La Plata há uma organização chamada Comissão Memória. Ela funciona no prédio onde estava o centro de torturas do regime argentino e ficou com todos os arquivos que lá estavam. A repressão na Argentina foi muito mais violenta do que aqui. Fala-se em três mil desaparecidos, enquanto aqui são 500. Só em uma escola de La Plata, sumiram 300 alunos, líderes estudantis de Ensino Médio. Mas a questão não é numérica.
Lá todos os arquivos estão abertos e assim descobriram também que o monitoramento dos movimentos sociais continuou mesmo depois do fim do regime. Vi vídeos de 1996, 1997 e 1998 que reportavam atividades de militantes como na ditadura.
Aqui se fala que a abertura dos arquivos ameaça a democracia. Na Argentina e no Chile eles estão disponíveis para quem quiser ver, e a democracia permanece.
Que medo é esse que existe aqui?
Rets - O argumento utilizado é a manutenção da ordem...
Cecília Coimbra - Esse argumento de fechar as feridas não vale. Para curar um machucado, antes é preciso limpá-lo, saber o que houve. [O filósofo alemão Friederich] Nietzche dizia que só podemos esquecer o que sabemos. Ou seja, precisamos saber o que aconteceu naquele tempo, onde estão os corpos. Esse é o mínimo, não estou nem falando em punição para os responsáveis.
Rets - O governo afirma que os arquivos sobre a guerrilha do Araguaia, por exemplo, foram queimados. Ainda há esperança de que eles existam?
Cecília Coimbra - Sim, até pouco tempo atrás a guerrilha era negada como fato. Nenhum governo nunca assumiu sua existência. Hoje já se assume, mas os arquivos ainda parecem não existir. Mas eles estão por aí. Alguns documentos podem ter sido extraviados, mas o grosso está lá. Quando o Dops (Departamento de Ordem Política e Social) foi desmanchado nos anos 80, todo seu material foi entregue à Polícia Federal, que o manteve sob sigilo até 1992, quando voltou para as polícias militares estaduais. Isso depois de muita pressão nossa.
O caso do Rio foi um absurdo, sumiram diversas fichas. Passamos um pente fino no que sobrou e conseguimos algumas informações. Ou seja, algumas coisas acabam se perdendo, mas nunca tudo.
Duvido que os registros do Araguaia tenham mesmo sido queimados. São documentos importantes e estratégicos.
Rets - O Decreto 4.553 de 2002 amplia os prazos de sigilo de documentos. Eles podem ficar eternamente guardados?
Cecília Coimbra - Isso é uma vergonha. Foi instituído pelo Fernando Henrique, mas entrou em vigor já em 2003, com Lula no poder. Fizemos muito barulho na época e colocamos em questão o sigilo eterno. O decreto permite que documentos com sigilo de 50 anos possam ter esse prazo renovado diversas vezes.
Mas acredito na revogação. Estamos fazendo uma campanha nacional e internacional para isso. Há dois meses era impensável admitir a existência de arquivos. O próprio Nilmário Miranda, secretário especial de direitos humanos, em reunião feita conosco, disse que não existia nada.
Rets - Esse governo é composto por pessoas que foram muito ativas na luta pela anistia e no combate à ditadura, como o próprio Nilmário Miranda e o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que defenderam presos políticos. A postura dessas pessoas surpreendeu?
Cecília Coimbra - Acho o comportamento do Márcio Thomaz Bastos, até o momento, ético. O de outras pessoas, porém, é inadmissível por colaborarem com a negação da história. Precisamos desses arquivos para fortalecer a democracia. Apesar de ser psicóloga, não vou analisar por que essa ou aquela pessoa tem tomado determinadas atitudes. A análise não é psicológica, mas política. O resgate da história precisa ser feito. Esse é o lema de todos os movimentos sociais da América Latina. Não há razão para não acontecer aqui também.
Rets - A primeira nota do Exército, que justificava a tortura, surpreendeu?
Cecília Coimbra - Muito. A segunda não foi muito melhor, não pedia desculpas pelas atrocidades coisa nenhuma. Muitos jornais disseram que pela primeira vez se pedia perdão pelos excessos cometidos, mas não houve nada disso.
A primeira carta é um texto típico da ditadura, do período Médici, da forma de pensar desses militares. O que surpreende é como aquela carta pode ser publicada sem ninguém assumir a responsabilidade por ela. Foi assinada somente pelo centro de comunicação do Exército. O oficial que escreveu aquilo deveria pelo menos ir para a reserva. Deve haver alguma punição. É inadmissível que essa pessoa continue trabalhando.
Rets - O pedido de demissão de José Viegas fortalece essa postura?
Cecília Coimbra - Precisamos saber melhor o que aconteceu. Há pressões dentro do governo, mas temos que saber melhor quais são.
Vale lembrar, entretanto, que o material divulgado pela imprensa foi entregue à Comissão de Direitos Humanos da Câmara em 1997 e nunca foi divulgado. É preciso que respondam por quê. Vamos começar uma campanha para cobrar o presidente da comissão sobre isso, pois a divulgação é obrigação.
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