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Mais organizações, mais dados

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets





Mais organizações, mais dados


Não é de hoje que se planeja um estudo amplo sobre as organizações não-governamentais e sem fins lucrativos do Brasil, para conhecer sua quantidade, suas áreas de atuação, características trabalhistas etc. Projetos iniciados há mais de uma década já tentavam esboçar um esforço neste sentido. Em mais um desses esforços, foi divulgada, no dia 10 de dezembro, a pesquisa "As Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos no Brasil 2002", uma realização conjunta do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), da Associação Brasileira de ONGs (Abong) e do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife). Entre os destaques, a constatação de que existem, hoje, no Brasil, cerca de 1,5 milhão de pessoas trabalhando em instituições sem finalidade lucrativa.

O levantamento vem atender a uma grande demanda de informações e dados sobre o universo - diverso e heterogêneo - das organizações não-governamentais sem fins lucrativos. Até hoje, a pesquisa mais ampla sobre o assunto havia sido feita em 1991, por Leilah Landim e Neide Beres, dentro de um projeto comparativo internacional sobre o setor sem fins de lucro, da Universidade Johns Hopkins. O nome do estudo é "As organizações sem fins lucrativos no Brasil - ocupações, despesas e recursos". Naquela época, tomando como base dados da Relação Anual de Informações Sociais (do Ministério do Trabalho) e da Receita Federal, as pesquisadoras chegaram à conclusão de que havia no país aproximadamente 220 mil instituições que se encaixavam na descrição "sem fins lucrativos".

A nova pesquisa parte de uma base de dados e de critérios diferentes. Para sua elaboração, foi usado o Cadastro Central de Empresas (Cempre), do IBGE, no qual estão todas as instituições constituídas juridicamente. A partir daí, foi feito um recorte para se chegar ao número total de entidades privadas sem fins lucrativos, segundo a natureza jurídica indicada no Cempre: 500.155, em 2002. Em seguida, a aplicação de cinco critérios gerou mais algumas exclusões - como a retirada de partidos políticos e cartórios do universo pesquisado. "Entre as instituições cadastradas no Cempre, pegamos as sem fins lucrativos (500 mil) e depois fizemos outro filtro com base nos critérios de um manual sobre instituições sem fins lucrativos elaborado pela Divisão de Estatísticas da ONU em conjunto com a Universidade Johns Hopkins. São cinco critérios: as instituições têm que ser privadas, sem fins lucrativos, institucionalizadas, auto-administradas e voluntárias", explica Denise Guichard Freire, gerente de Análise de Dados do Cempre.

Assim, chegou-se ao número final de instituições não-governamentais sem fins de lucro abrangidas pelo estudo: exatos 275.895. Estas são aquelas que, dentro do novo Código Civil, correspondem a três figuras jurídicas: associações, fundações e organizações religiosas. Assim, do universo de cerca de 5,3 milhões de organizações públicas, privadas lucrativas e privadas não-lucrativas que compunham o Cempre, as fundações a associações representavam, em 2002 (ano do estudo), cerca de 5%. Além dos dados sobre o número total de entidades, o estudo traz também informações sobre sua distribuição geográfica, quantidade de pessoas empregadas, ano de criação, área de atuação e tamanho, entre outros. Anna Peliano, diretora de estudos sociais do Ipea, destaca a importância desse levantamento. "É uma demanda antiga. Dimensiona o número de trabalhadores nessa área e mostra em que áreas voltadas para causas da sociedade as organizações mais cresceram nos últimos anos: defesa dos direitos, associações de produtores e de profissionais e meio ambiente", diz.

Questionamentos


No entanto a pesquisa tem pontos que podem sofrer alguns questionamentos. Primeiro, o fato de excluir cooperativas de seu universo de pesquisa. Isso pode ser questionado, uma vez que a atividade cooperativada muitas vezes é a saída e a forma de transformação social encontrada por grupos e/ou comunidades. A explicação para a retirada, entretanto, é dada no próprio texto da pesquisa: "Cabe ressaltar que as sociedades cooperativas não foram incluídas na classificação das Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos ou no universo das entidades sem fins lucrativos. Embora sejam estruturas híbridas, as cooperativas se organizam com um objetivo de caráter econômico, visando à partilha dos resultados dessa atividade entre seus membros cooperados. Pela Tabela de Natureza Jurídica, as cooperativas são classificadas como entidades empresariais".

Outro ponto que pode gerar críticas é a não abrangência dos movimentos sociais no campo de estudo - uma vez que os movimentos são iniciativas que se constituem junto ou por várias das ONGs consideradas na pesquisa, com lutas semelhantes ou complementares. Porém, da mesma forma que a não consideração das cooperativas, a exclusão dos movimentos se deveu à opção metodológica do levantamento. "A pesquisa abrange o terceiro setor formalmente instituído. Não há como captar as que não estão", defende Anna Peliano. Alexandre Ciconello, assessor jurídico da Abong e pessoa da instituição responsável por acompanhar a elaboração do estudo, também explica o motivo. "Os movimentos têm a característica de ser dinâmicos e transitórios. Além de não se constituírem formalmente, juridicamente, não são tão perenes quanto as instituições", esclarece o assessor da Abong.

Outro questionamento não chega a ser uma crítica, mas uma recomendação. Para Leilah Landim, pesquisadora e estudiosa sobre ONGs e entidades sem fins lucrativos, os dados devem ser avaliados de forma desagregada - o mesmo que indica Ciconello. Para ela, é preciso ler mais criticamente as estatísticas. "Dos 1,5 milhão de assalariados, um em cada dois - 52% - estão na área de educação e de saúde, sendo que um em cada três - 33% - são o pessoal empregado seja em hospitais, seja em faculdades ou universidades privadas. Faz sentido perguntar o que têm a ver essas instituições, ou a grande maioria delas, com os valores do associativismo voluntário ou com a mobilização da sociedade, sobretudo considerando-se os termos do que está colocado na introdução à publicação Ipea/IBGE, onde se ressalta a importância da pesquisa para se conhecer o peso das associações cívicas para construção democrática", questiona Leilah.

"Ao contrário, aquelas instituições – excetuando-se raras, como a Santa Casa da Misericórdia - comportam-se segundo a lógica do mercado, cobrando caro e gerando lucros indiretos para seus mantenedores, o que aliás está explicitado a um momento dado no próprio texto da pesquisa. Portanto teríamos que considerar nos seus devidos termos esse enorme mercado de trabalho em crescimento das FASFIL [fundações e associações civis sem fins lucrativos]. O que significará, em termos de benefício público e ação sem fins lucrativos (para não falar em participação voluntária etc.), o crescimento em 102% do número de estabelecimentos de ensino superior privado (como se sabe, todos sem fins lucrativos) no país, entre 1996 e 2002? E por aí vai, ao menos no que se refere à saúde e à educação, que inflacionam os números", diz a pesquisadora, na tentativa de alertar para a generalização e supervalorização dos números.

Essas especificidades necessárias à correta leitura dos dados da pesquisa podem ser decorrentes do fato de o estudo ter sido feito em cima de uma base de dados já existente - o Cempre - sobre a qual apenas se fizeram recortes. Um levantamento de dados específicos e direcionados exclusivamente para o estudo das ONGs - no sentido daquelas identificadas com a defesa de direitos e promoção de desenvolvimento e transformações sociais - poderia ser a chave para uma pesquisa que espelhasse sem qualquer distorção o campo, ou "setor", das organizações não-governamentais no Brasil. Em outras palavras, um esforço de elaboração de pesquisa e de levantamento de dados especificamente com este fim – em vez do aproveitamento de dados já existentes - poderia ajudar a traçar um retrato ainda mais fiel e exato deste setor no país.

É o que comenta Fernando Rossetti, diretor executivo do Gife, uma das organizações envolvidas na elaboração do estudo: "A pesquisa tem seu limite, e são necessários novos estudos para se ter realmente uma leitura clara do fenômeno do terceiro setor", diz. "O estudo, de fato, não é ideal, já que não promoveu seu próprio censo. Mas organiza informações que permitem uma compreensão muito melhor das organizações sem fins lucrativos e do próprio terceiro setor. Há recortes dos dados que revelam fenômenos interessantes. Por exemplo, o grande crescimento das organizações de defesa dos direitos", completa.

Ciconello recorda que o uso de um cadastro já existente se deveu a um motivo simples: a necessidade de fazer a pesquisa sem grandes custos. "Um movimento de saída à rua, de coleta de dados, tal qual um censo, seria muito dispendioso. Não existia qualquer previsão para isso". Ele aponta que, dentro das possibilidades existentes, o uso do Cempre - um cadastro "pronto, atual e confiável" - foi uma opção acertada. Ele reconhece também, entretanto, algumas limitações pequenas: "Não pudemos, com essa pesquisa, mensurar o voluntariado, nem o número e as características de organizações que têm associados", comenta.

No entanto a pesquisa traz mais respostas do que dúvidas. Uma das principais é a revelação do número de entidades que se formam para a defesa de direitos, como as associações comunitárias etc. "Nesse caso, os dados contidos no item sobre 'desenvolvimento e defesa de direitos' são sensacionais, no sentido de fornecerem evidências quanto à criação e ao crescimento bem recente (muito acima da média, mais de 300%, entre 1996 e 2002) de um terreno de associações voltadas para a ação no campo social e político, de cunho participativo e que têm tido um papel na construção democrática brasileira", diz Leilah.

Esse crescimento - não só o absoluto, que registrou uma variação de 157% no número total de organizações entre 1996 e 2002, mas o concentrado na área de defesa de direitos - tem sido atribuído, pelas pessoas e instituições envolvidas na pesquisa, ao contexto político-social do país. "O aumento no número de instituições nos anos 90 se deve ao processo de democratização e à organização da sociedade brasileira", diz Anna Peliano. "O crescimento nos anos 90 se deve à abertura democrática e a uma noção maior da população dos seus direitos, da sua cidadania. Tanto é que um dos grupos que mais cresceram foi o dos movimentos de defesa dos direitos", concorda Denise, do IBGE.

Para Rossetti, "há duas razões centrais para o boom do terceiro setor na década de 90: uma política e outra econômica. Em primeiro lugar, a democratização do país, após uma longa ditadura militar (1964-1985), permitiu o surgimento de novos atores sociais, desde os movimentos pelos direitos das crianças e pelo meio ambiente até o de empresários socialmente responsáveis. Em segundo lugar, o Brasil ao mesmo tempo globalizou sua economia – o que trouxe para o país novas culturas corporativas, que contribuíram para promover a idéia do investimento social privado – e também acabou com a inflação, o que permitiu um grau inédito de planejamento das empresas – dando mais condições para incluir o trabalho social entre suas atividades".

A avaliação de Ciconello também não foge à noção de que a situação do país, com a retomada da democracia, contribuiu para a formação de novas e diversas instituições. Ele vai além, mencionando que o maior associativismo pode ser identificado não só na formação de entidades para a defesa de direitos, para a busca do bem público (no sentido do bem que diga respeito ao conjunto da sociedade). "O associativismo se mostra muito mais amplo. As pessoas se unem para as mais diversas coisas, não necessariamente com algum objetivo público. E isso é interessante, pois mostra que elas estão mobilizadas, que percebem que podem fazer alguma diferença juntas".

A outra resposta importante é justamente o fato de trazer respostas, de trazer dados, de gerar conhecimento sobre o assunto. Ou, como opina o assessor da Abong, "a grande vantagem deste levantamento é lançar luz sobre o assunto. Uma pesquisa como essa é importante para iluminar, para dar incentivo a novas pesquisas, principalmente acadêmicas, sobre a questão. E, principalmente, para gerar o debate público". Para Leilah, "tudo o que se disser é pouco diante da relevância não só dos resultados da pesquisa, mas sobretudo do fato de que o IBGE e o Ipea finalmente tomaram a iniciativa de implementá-la, o que anuncia o reconhecimento, por instâncias oficiais, de fenômenos significativos e pouco estudados na sociedade brasileira".

Maria Eduarda Mattar. Colaborou Mariana Loiola.

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