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Mercado humano

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets





Mercado humano
Pablo Picasso - Les Demoiselles d' Avignon

"Primeiro eles tiram o passaporte, depois a liberdade". Esse é o principal slogan da campanha que o Ministério da Justiça lançou em parceria com o Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC) para combater o tráfico de seres humanos. De acordo com a ONU, esta é a terceira atividade ilegal mais rentável do mundo, movimentando cerca de US$ 9 bilhões por ano. No Brasil, o enfrentamento desse tipo de crime está apenas engatinhando e esbarra na falta de recursos destinados pelo governo federal e na legislação pouco abrangente e ultrapassada.

O tema do tráfico de pessoas não é uma questão nova no Brasil, mas começou a compor a agenda pública há apenas alguns anos. Em 2000, o Ministério da Justiça montou o primeiro seminário internacional sobre o assunto, que reuniu vários pesquisadores, autoridades internacionais e representantes da ONU. Na ocasião, foi assinado ao primeiro protocolo de intenções para a criação de um projeto que abrangesse todas as formas de tráfico de pessoas e não apenas as relacionadas no Código Penal brasileiro.

No Seminário sobre Tráfico de Seres Humanos e Exploração Sexual realizado nesta semana, no Rio de Janeiro, pela Secretaria Estadual de Direitos Humanos, em parceria com a Embaixada da Suécia, a pesquisadora do Instituto Latino-americano de Direitos Humanos, Elizabeth Sussekind, afirmou que o tráfico de seres humanos se manifesta em todos os países do mundo e de maneiras muito peculiares em cada um deles. "Aqui no Brasil, existem três maneiras mais freqüentes, que são a exploração sexual comercial, o tráfico de trabalhadores, principalmente o tráfico interno, e o tráfico para a retirada de órgãos", citou Elizabeth. Segundo ela, existem inúmeras finalidades para as quais as pessoas são traficadas. "Na África, por exemplo, o tráfico de pessoas é para a guerra. As crianças são traficadas para que após os cinco anos, quando já podem carregar o fuzil, elas se tornem crianças guerreiras ou sejam levadas por caminhos minados para que andem na frente das milícias e vão estourando as minas. Só depois é que passam os soldados", relata a pesquisadora.

Apesar das inúmeras facetas desse crime - que movimenta pelas fronteiras internas e externas do planeta cerca de 4 milhões de pessoas, de acordo com a Organização Internacional da Migração -, algumas características permanecem. "A principal delas é que se trata de exploração de gente. A outra é que geralmente as pessoas vão de países pobres ou em desenvolvimento para países ricos, que ocupam os principais assentos das Nações Unidas", analisa Elizabeth. Para ela, esse é um dos principais indícios de que o problema também engloba uma dimensão cultural. O pequeno número de condenações por esse tipo de crime – apenas 50 em todo o país, segundo dados do Ministério da Justiça – confirma a tese da pesquisadora de que a sociedade ainda está adormecida para o problema. "Não podemos nos deter apenas no lado moral da questão. É preciso enxergar o tráfico de pessoas como parte do crime organizado internacional, praticado por máfias poderosas", alerta.

A única forma de acordar a sociedade para a dimensão do problema é realizar um trabalho conjunto entre governo e organizações da sociedade civil, de acordo com o coordenador geral do Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria), Vicente Faleiros. "Precisamos sensibilizar, mobilizar e promover o debate sobre o tema. O papel do Estado é repressivo. Mas as ONGs precisam botar o dedo na ferida, senão nada é feito", avalia Faleiros. Ele também concorda que a sociedade brasileira "ainda é cega para o problema" e critica o seu comportamento pouco humanista. "Controlamos muito bem o fluxo de mercadorias, mas deixamos de lado o deslocamento forçado de seres humanos". Apesar das críticas, Faleiros reconhece que a realização da Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial (Pestraf), coordenada pela professora Maria Lúcia Leal, da Universidade de Brasília, em parceria com o Cecria, representou uma ferramenta importante para combater o problema.

A campanha do Ministério da Justiça faz parte de um programa de cooperação técnica com as Nações Unidas. O programa-piloto do ministério abrange apenas os estados de Goiás, Ceará, Rio de Janeiro e São Paulo. Segundo a coordenadora do programa, Marina de Oliveira, nesses quatro estados, as ações do programa consistem em capacitar operadores de direito, mobilizar ONGs que têm interesse pelo tema, fazer um diagnóstico de como esse tipo de crime está chegando na Justiça e conscientizar a população. Marina cita o exemplo de Goiás: dos 50 inquéritos sobre tráfico de seres humanos realizados no país, metade é de lá. "O que não significa que o combate é mais eficiente nesse estado. O que acontece é que esse crime faz parte do cotidiano das pessoas, tem uma visibilidade muito maior", explica. No caso de Goiás, o aliciamento é feito geralmente no interior e na periferia de Goiânia, o que dificulta a ação da Polícia Federal. "Como o tráfico de seres humanos ocorre com tanta freqüência lá e em cidades tão pequenas, é claro que existe conivência com a polícia militar local", acusa Marina.

A coordenadora do Ministério da Justiça lembra que pela primeira vez uma verba destinada ao enfrentamento deste crime foi inserida no PPA do governo Lula. Para 2004, foram destinados R$ 280 mil. Apesar de ser um montante ainda pequeno, Marina acredita que foi apenas o primeiro passo para inserir o combate ao tráfico na agenda do governo e no Orçamento da União.

Exploração e turismo sexual


Em 92% dos casos de tráfico de seres humanos, segundo um levantamento do UNODC, as vítimas foram aliciadas para fins de exploração sexual. A juíza da Vara da Infância e Juventude de Mato Grosso do Sul, Maria Isabel de Matos Rocha afirma que no Brasil, principalmente na região Centro-Oeste, o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual se apresenta nas seguintes formas: exploração sexual comercial em prostíbulos, exploração sexual comercial nas fronteiras junto às redes de narcotráfico, prostituição de meninas e meninos de rua, rede de prostituição (como em hotéis, por exemplo), prostituição através de anúncios de jornais, turismo sexual, ecológico e náutico e prostituição nas estradas.

A coordenadora do projeto do Ministério da Justiça conta que a maioria das mulheres aliciadas vai para Portugal ou Espanha, por causa da facilidade do idioma, e os travestis e transexuais têm como principal destino a Itália. Geralmente as brasileiras são aliciadas com promessas de enriquecimento fácil ou de emprego em lanchonetes, como babás ou dançarinas. Quando chegam, muitas vezes são submetidas a cárcere privado, ameaçadas de morte e têm seu passaporte apreendido. "Temos notícia de que são submetidas a condições horríveis de vida e têm que fazer uma relação sexual a cada 20 minutos", conta Marina. Uma diferença delas para as mulheres traficadas do Leste Europeu é que as brasileiras geralmente têm filhos e mandam dinheiro periodicamente para o Brasil.

Marina explica que muitas retornam para o Brasil e, por isso, o programa do ministério inclui apoio às vítimas para que sejam reinseridas na sociedade e não voltem a ser alvo de aliciadores. "Trabalhamos nos estados para que façam parcerias entre os governos municipal e estadual para montarem um escritório de atendimento à vítima", diz. Segundo ela, muitas vítimas voltam porque são expulsas, fogem ou são deportadas.

De acordo com a Pestraf, o perfil das pessoas traficadas com finalidade de exploração sexual é composto, na maioria dos casos, de mulheres adultas e de baixa renda; os aliciadores, por sua vez, são majoritariamente homens entre 30 e 40 anos e com bom nível de instrução. A pesquisa conclui ainda que os aliciadores são geralmente empresários que atuam em diferentes ramos de negócios, mas principalmente aqueles ligados ao turismo, como donos de casas de show, agências de viagens, bares etc. A pesquisa também identificou que as vítimas saem principalmente de cidades litorâneas, como Rio de Janeiro, Vitória, Salvador, Recife e Fortaleza, mas há também registros nos estados de Goiás, São Paulo, Minas Gerais e Pará.

De acordo com a pesquisadora em sexologia Helena Theodoro, que também participou do Seminário sobre Tráfico de Seres Humanos e Exploração Sexual no Rio de Janeiro, o grande problema do enfrentamento do tráfico é a desvalorização, por parte de um grupo hegemônico, de outro que lhe é submisso. E, principalmente, a imagem que o Brasil tem no exterior. "A nossa imagem lá fora é um convite a uma visão de um Brasil sensual, da mulata, do samba e da permissividade. O turista tem uma idéia dos seus limites e da sua sociedade, mas aqui ele não sente que estar com meninas de 12 ou 13 anos é um problema seu", analisa Helena. Segundo ela, o fato de o tráfico ser comandado por máfias dos países desenvolvidos mostra o olhar inferiorizante que faz com que pessoas dos países pobres passem a ser vistas como objetos. "Não há, portanto, uma igualdade entre mulheres européias e brasileiras", conclui.

Vicente Faleiros, do Cecria, também reconhece que a imagem do país no exterior estimula muito o turismo sexual, mas lembra que algumas medidas já estão sendo tomadas. "Fizemos uma campanha com a Embratur, e a empresa não mostra mais no exterior imagens com apelos sexuais na propaganda oficial do país", garante.

Tráfico de crianças e adolescentes


Não há registros nos aeroportos internacionais de rotas de tráfico de crianças e adolescentes, mas, de acordo com a juíza do Mato Grosso do Sul, elas existem e se dão principalmente entre os estados brasileiros e através das "fronteiras secas". "A Pestraf mapeou 141 rotas de tráfico nacional e internacional que ‘comercializam’ crianças, adolescentes e mulheres brasileiras", explica Maria Isabel. Ela diz que, no caso de adoções ilegais, é difícil que os menores saiam do país pelos aeroportos internacionais, pois hoje não é fácil embarcar ilegalmente uma criança. "A lei não permite viagem de menores acompanhados por estrangeiros sem serem adotados (artigo 85 do Estatuto da Criança e do Adolescente), e a emissão de passaportes obedece a regras rígidas", explica a juíza. Por outro lado, os casos de "vendas de crianças" dentro Brasil são muito comuns, apesar de haver poucos registros na Justiça. O principal motivo, de acordo com a juíza, é a vulnerabilidade econômica das mães, que, não podendo criar seus filhos, são aliciadas a entregá-los.

No Mato Grosso do Sul, foi criado o Comitê contra o Tráfico de Seres Humanos – que reúne representantes de várias entidades públicas e organizações não-governamentais – e tem feito inúmeros eventos para divulgar a legislação e a atuação da rede e dos órgãos públicos no combate a esse crime. "O Comitê de Combate à Exploração Sexual do MS também tem feito uma boa atuação no estado, detectando crimes sexuais, sobretudo contra crianças. Vários casos que foram noticiados nacionalmente tiveram apuração rápida e condenação criminal após um ano", conta a juíza.

Marina Oliveira confirma que o tráfico de crianças e adolescentes acontece principalmente internamente ou através das fronteiras. As crianças muitas vezes são traficadas para realizarem trabalho forçado em áreas de produção agrícola. No caso de exploração sexual, a fiscalização é difícil nos sete mil quilômetros de fronteira brasileira e nas estradas. No litoral, o turismo sexual é o grande objetivo. Entretanto, apesar de a Internet ser um facilitador para este tipo de prática, no caso de crianças e adolescentes, o combate é facilitado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que já prevê como crime a pornografia e a exploração sexual infantil na web. Com isso, a Polícia Federal tem ferramentas legais para enquadrar este tipo de conduta.

Protocolo de Palermo

Hoje, a principal arma legal para o combate ao tráfico de seres humanos é a ratificação pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em março deste ano, da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional – a Convenção de Palermo. O Código Penal brasileiro faz referência apenas ao crime de tráfico de mulheres para fins de exploração sexual. Esta é a única tipificação que existe na lei atualmente e, se as vítimas consentirem ou concordarem com a prática, esta deixa de ser considerada crime. A partir da ratificação da Convenção e de seus dois protocolos, o consentimento ou não da vítima deixa de ser relevante nos processos.

O documento define o tráfico de seres humanos como "recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas, por meio de ameaça ou uso da força ou outras formas de coerção, de rapto, de fraude, de engano, do abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade ou de dar ou receber pagamentos ou benefícios para obter o consentimento para uma pessoa ter controle sobre outra pessoa, para o propósito de exploração". O protocolo também define exploração: "inclui, no mínimo, a exploração da prostituição ou outras formas de exploração sexual, trabalho ou serviços forçados, escravidão ou práticas análogas à escravidão, servidão ou a remoção de órgãos".

Segundo a coordenadora do Ministério da Justiça, a nossa legislação deixa de fora temas importantes, como o tráfico para trabalho forçado e o tráfico de homens e travestis para exploração sexual, além de só punir quem menos ganha com o crime. "Com essa legislação só o aliciador é preso. O resto da máfia fica de fora". Ela explica que há um projeto no Senado aguardando votação que substitui no artigo 231 a palavra ‘mulher’ por ‘pessoa’. Como a Constituição brasileira assegura o cumprimento de todos os acordos internacionais ratificados, a legislação nacional terá de ser adaptada à Convenção de Palermo.

A juíza Maria Isabel Rocha acredita que com a nova lei vai haver maior eficácia e cooperação internacional para a perseguição e punição do crime organizado de tráfico de pessoas e para a proteção das vítimas. Apesar desse tipo de crime apresentar inúmeras facetas, há um consenso no que diz respeito a uma abordagem integrada para o seu enfrentamento. "Esperamos que em cinco ou seis anos o tema faça parte da agenda pública, não só da Justiça, mas também da Educação e da Saúde", afirma Marina Oliveira.


Luísa Gockel

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