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Gêmeas com muito a aprender

Autor original: Maria Eduarda Mattar

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Gêmeas com muito a aprender


Um grupo de onze organizações brasileiras poderão trocar experiências, saberes e informações com entidades européias que tenham atuação semelhante, através das tecnologias de informação e comunicação (TICs). A intenção é mostrar que não são só as organizações dos países do Norte que têm o que ensinar às das nações do Sul, mas que as entidades dos dois lados têm muito a aprender umas com as outras. Trata-se do projeto I-Geminações, uma iniciativa de cooperação e interação internacional entre organizações européias e latino-americanas.

No Brasil para participar do III Fórum Ministerial América Latina e Caribe (ALC) e União Européia (UE), Valérie Peugeot, coordenadora da Vecam – organização francesa à frente do I-Geminações -, falou com a Rets sobre quais os princípios que guiam o projeto e o impacto esperado e comentou ainda sobre a necessidade de as organizações incorporarem e fazerem uso de todas as possibilidades trazidas pela Internet. “Para mim, há uma mudança radical possibilitada com a vinda da Internet que muitos grupos ainda não percebem - inclusive muitas das nossas organizações amigas”.

Rets - No que consiste o projeto I-Geminações, do qual a Vecam é a coordenadora? Qual o impacto esperado?

Valérie Peugeot - O projeto I-Geminações começou a partir da experiência da nossa organização, a Vecam, que - desde o início de suas atividades, em 1995 - vem trabalhando em rede com atores internacionais, o que nos dava idéias, energia, ânimo para novos projetos. Além disso, às vezes as ONGs têm o sentimento de isolamento nas suas ações. Então, quando as organizações se dão conta de que há atores semelhantes no mundo todo que fazem a mesma coisa, isso lhes dá mais força, tanto em termos políticos quanto em termos concretos, em relação aos projetos que são desenvolvidos. Esse foi o ponto de partida: como ajudar outros atores, em nível local, a trabalhar no espaço internacional?

O I-Geminações, de modo mais concreto, é um projeto de cooperação internacional, entre entidades (ONGs, associações, movimentos sociais, grupos informais etc.) que vão colaborar, por cerca de um ano e meio, dois anos, fazendo trocas entre os dois lados do Atlântico, ou seja, entre entidades européias e latino-americanas.

Rets - O que vem a ser uma i-geminação, na prática?

Valérie Peugeot - Por exemplo, temos aqui no Brasil uma ONG que trabalha com jovens o tema da saúde [o Centro de Promoção da Saúde (Cedaps)], que faz parte do projeto. Assim, estamos em busca de organizações nos outros países que também trabalhem com jovens tratando sobre esse tema. Os facilitadores [as organizações de referência que pesquisaram e propuseram os nomes das entidades participantes do projeto e estão fazendo seu acompanhamento. A Rits é um dos facilitadores] do projeto procuram atores na França ou em outros países da Europa que realizam trabalhos similares e desejam compartilhar a experiência. No caso, essas duas organizações já estão em contato e já pretendem elaborar em conjunto um jornal temático sobre os assuntos de que tratam em comum. Esse é um exemplo.

É importante ressaltar que, no projeto I-Geminações, não são os países do Norte que apóiam os do Sul. O que ocorre é uma comunicação, uma colaboração, uma reciprocidade. Isso, para nós, é muitíssimo importante politicamente. Não se pode ter a visão de "pobres países do Sul, temos que apoiá-los". Dizemos claramente: há igualdades entre os lados. Há coisas em que o Sul precisa de apoio, assim como há coisas nas quais os países do Norte podem aprender muito com os do Sul. Isso é fundamental para entender a filosofia do I-Geminações.

Rets - Em que estágio está o projeto?

Valérie Peugeot - Toda a primeira fase, que era construir o projeto, a metodologia de trabalho - pois não queríamos uma metodologia imposta de cima para baixo; queríamos uma que fosse construída colaborativamente - já está terminada. Cada sócio da Vecam (que chamamos de facilitador) já fez as propostas para as organizações que podem participar em cada país, informando a elas que há uma oportunidade e consultando-as se desejam trabalhar com atores internacionais. Ao todo, serão 30 i-geminações, ou seja, no mínimo 60 organizações.

Assim, toda a parte preparatória está feita: os facilitadores já fizeram as propostas a seus membros e grupos de base. Também já tornamos disponíveis todas as ferramentas online de que dispomos, para que cada i-geminação possa utlizar. Há o portal do projeto [cujo endereço está na área de Links Relacionados, ao lado], há uma área para cada entidade, onde estão os dados da organização, há as listas de trabalho etc. Agora, estamos finalizando o processo de combinação entre as iniciativas que tenham a ver umas com as outras.

Depois disso, na próxima fase, cada i-geminação vai começar seu próprio trabalho de cooperação e trocas e - daqui a um ano, um ano e meio, dependendo de cada caso - teremos uma terceira fase, de mutualização, de compartilhamento das informações... na verdade, o compartilhamento das informações começaremos já, pois é importante que cada projeto não fique isolado. O que ocorrerá na terceira fase é o compartilhamento de resultados, uma avaliação do que foi feito. E, também nessa fase, nossa preocupação será como poderemos replicar. Ainda mais porque alguns projetos precisarão continuar, a colaboração precisará permanecer ainda por alguns anos. E, por isso, as i-geminações precisarão encontrar maneiras de continuar, inclusive se isso envolver custos, no que não interferimos.

Aliás, isso é outra coisa que precisa ficar clara: não apoiamos com dinheiro as entidades participantes. O apoio da Vecam e dos facilitadores do projeto é metodológico, com ajuda na captação de recursos, disponibilização de ferramentas online etc.

Rets - Você já acompanha e estuda o uso das TICs pelas organizações da sociedade civil há algum tempo. Como você avalia a apropriação das ferramentas tecnológicas por estas entidades, atualmente?

Valérie Peugeot - Para mim, há uma mudança radical possibilitada com a vinda da Internet que muitos grupos ainda não percebem - inclusive muitas das nossas organizações amigas. Por exemplo, muitos dos participantes da campanha CRIS - Communication Rights in the Information Society [que tem como uma das bandeiras principais a democratização da comunicação] seguem com uma visão tradicional dos meios de comunicação. E, para nós, essa mudança radical está justamente no fato de que podemos passar de meios de difusão para meios colaborativos. Podemos passar de receptores de informação para disseminadores. Com a Internet, todos podem ser criadores de conteúdo.

No entanto, essa mudança é muito pouco tangível. Estamos justamente no princípio de uma mudança radical e nossa preocupação é que, como movimentos sociais, apoiemos esta transição e o fortaleçamos, para que o cidadão passe de uma postura de consumidor de conteúdos para uma de criador. Essa tem que ser a maior preocupação. E, mesmo entre os grupos que tratam diretamente de temas relacionados à comunicação, existe apenas a percepção dessa mudança, mas não a preocupação em fortalecê-la, como deveria haver. Até porque muitas das pessoas que estão ligadas a esses grupos vêm das televisões e rádios e ainda estão acostumadas com os conceitos antigos dos meios de comunicação.

A Vecam nasceu em 1995, junto com a Internet. Portanto, temos a cultura da interatividade. Há realmente um movimento na sociedade, uma mudança muito interessante que tem que ser apoiada, pois pode ser a melhor ferramenta de educação popular para que as pessoas mudem seu relacionamento com a informação. As crianças podem aprender não a manipular um computador - pois isso é natural para as crianças de hoje em dia -, mas a manipular a informação.

E quando alguém aprende a fazer isso, entende que, quando escreve, escreve para o público. Tem que pensar em quem vai ler aquilo, na veracidade da informação etc., o que provocará a mudança na sua postura.


Rets - Há muitos textos seus a respeito de uma “rede cidadã”. O que seria isso?

Valérie Peugeot - Em 1998, começamos a trabalhar com outros atores de países da Europa - pois, na época, havia uma política européia totalmente liberal no que se referia às tecnologias de informação e comunicação e nenhuma preocupação para a dimensão social, com o terceiro setor. A partir daí, começamos uma pequena rede européia de organizações que compartilhavam uma mesma visão ética e social a respeito deste tema. Entre nossos membros, havia alguns que eram influenciados pelos Community Networks, que existiam nos EUA e no Canadá. "Community Networks" não é um termo que pode ser trazido para o francês, pois não faria sentido. Assim, utilizamos o conceito de Internet cidadã. E dentro deste conceito estavam telecentros, redes comunitárias, ONGs que realizam um trabalho de caráter mais intelectual e político, enfim, todos os atores que têm uma relação com as novas tecnologias com uma perspectiva de solidariedade, social e cidadã. Isso seria a rede cidadã. Assim, criamos uma rede que se chama Internet Criativa, Cooperativa e Cidadã (I3C).

Rets - O que você achou das ONGs brasileiras que pôde conhecer, considerando seu grau de articulação e de mobilização?

Valérie Peugeot - Aqui vocês estão realizando o sonho que não podemos fazer lá. Estão conseguindo transformar iniciativas isoladas em movimentos sociais. Porque, por exemplo, estou totalmente decepcionada com a pouca visão política por parte dos gestores dos telecentros franceses. Têm uma atuação interessante, que merece respeito, mas não incluem em seu trabalho uma visão mais global de seu papel social. Os jovens, que são mais militantes, não estão atuando nestes espaços. Eles se voltam mais para os grupos que defendem software livre. Falávamos da I3C. Pois então: a Vecam foi uma das cinco fundadoras da I3C, porque tínhamos essa visão de nos juntar para fazer um movimento mais político, mais social etc.

E, no atual contexto francês, cada uma de nossas organizações está muito frágil. O governo francês está destruindo o terceiro setor do país, progressivamente. Está com uma política de exterminação do setor - cortando os orçamentos, os fundos etc. Assim, cada organização está preocupada demais com a sua sobrevivência, em encontrar estratégias para se manter viva, operando. Assim, é muito difícil se organizarem, articularem-se em um movimento. Para mim, é muito mais interessante o que está acontecendo aqui, no Brasil. O contexto político influencia muito. Oxalá eu pudesse trabalhar aqui!

Maria Eduarda Mattar

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