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Remédios para quem precisa

Autor original: Marcelo Medeiros

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Remédios para quem precisa


O belga Michel Lotrowska afirma ser necessário estimular a pesquisa sobre doenças negligenciadas em todo o mundo. Para ele, as grandes empresas farmacêuticas não têm interesse em investir no desenvolvimento de medicamentos desejados por pessoas pobres, sem condições de pagar grandes quantias para se verem curadas. Doenças negligenciadas são aquelas que não interessam a empresas e governos do mundo desenvolvido, por já terem sido erradicadas nesses locais ou não se apresentarem neles. Entre elas a leishmaniose, a doença de Chagas e a doença do sono. Representante da Iniciativa de Medicamentos para Doenças Negligenciadas no Brasil e membro da organização Médicos Sem Fronteiras, Lotrowska afirma que “precisamos simplificar o tratamento e o diagnóstico, além de adaptá-los às realidades locais”. Segundo o economista, isso deve ser feito com apoio das Nações Unidas, da Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelos governos. A Iniciativa, criada no ano passado por sete organizações, entre elas a Fundação Oswaldo Cruz, está formando uma rede de pesquisadores para reunir esforços em prol das milhares de pessoas sem acesso a medicamentos hoje. A DNDI, sigla em inglês pela qual é mais conhecida, já está caminhando. Dois projetos de pesquisa estão sendo selecionados e a equipe que tentará tornar o tema mais particular está formada. Falta, porém, de acordo com Lotrowska, a OMS tomar para si a responsabilidade de levar adiante estudos que erradiquem esses males.

Rets - O que é a Iniciativa de Medicamentos para Doenças Negligenciadas?

Michel Lotrowska - É um processo que veio se desenvolvendo desde a formação, pelos Médicos Sem Fronteiras, do grupo de trabalho para doenças negligenciadas, em 1999. Ele juntava pessoas que pensavam formas de diminuir a incidência desses males, esquecidos pela indústria farmacêutica de grande porte. No grupo discutimos as falhas das políticas públicas relacionadas à pesquisa e à produção de medicamentos para países em desenvolvimento.

Sua existência é necessária para combater o atual sistema de patentes, que estimula a fabricação de remédios para ricos. Não é de interesse das grandes empresas produzir para quem não tem como pagar. A África, por exemplo, representa menos de 1% do consumo de medicamentos, quando, obviamente, precisaria de muito mais. O problema é que não há pesquisas voltadas para os males que afligem essas populações.

A iniciativa diferenciou as doenças em três tipos: as “globais”, como as coronarianas, as “negligenciadas”, como a malária, que atingem alguns poucos habitantes de países ricos, entre eles os viajantes, e as “mais negligenciadas”, como a leishmaniose, presente apenas em locais pobres.

Rets - Quando a iniciativa foi lançada?

Michel Lotrowska - Oficialmente, em julho de 2003, mas, como disse, operava antes disso. Só agora temos uma equipe formada, pois o processo de seleção de profissionais foi longo. Os Médicos Sem Fronteiras vão bancá-la durante cinco anos, até que possa andar sozinha.

Já foram feitas duas chamadas de projetos e os resultados devem sair em uma semana. Uma delas se refere ao combate de doenças e outra, a ações pró-ativas. Há muita gente que fez importantes descobertas, mas não as levou adiante a ponto de produzirem medicamentos. Faltam parcerias para atingir esse estado.

Rets - Explique um pouco mais os objetivos das chamadas.

Michel Lotrowska - Precisamos de trabalho em todas as fases de pesquisa. Há medicamentos prontos que nunca foram testados oficialmente e outros que tiveram novas aplicações descobertas. A paromomicina, por exemplo, é um antibiótico existente há muito tempo e agora está sendo usada no tratamento de leishmaniose na África. Porém nunca foi testada de acordo com as regras internacionais. Só se sabe que tem funcionado. O mesmo acontece com a doença do sono, cujo tratamento agora inclui um remédio antes usado para tratar de outras doenças.

Rets - Não é arriscado oferecer tratamentos que não tenham sido completamente testados?

Michel Lotrowska - Sabe-se que esses medicamentos funcionam, são conhecidos, mas sem comprovação de acordo com os padrões internacionais. Apenas não eram utilizados para tais doenças. Os testes não foram feitos na aplicação para essas doenças. Precisamos desenvolver mais pesquisas sobre isso para aproveitar esses potenciais.

No Brasil, por exemplo, foi descoberta uma associação entre dois medicamentos para combater a malária. Será produzido na Farmanguinhos e testado em diferentes países. É necessário criar uma rede internacional com esse objetivo, fazer uma espécie de empresa virtual de medicamentos na qual cada localidade faça o que sabe.

A DNDI pretende ser responsável pela coordenação dessas trocas anteriores à aprovação pelas entidades internacionais. Isso, porém, não é suficiente, precisamos de mais pesquisas básicas. O tratamento para a Doença de Chagas, por exemplo, possui diversos medicamentos, mas quando um paciente chega à fase terminal não há remédios. Mas esse tipo de trabalho leva alguns anos.

Rets - O uso de medicamentos sem aprovação internacional, porém, não pode deixar seqüelas ou provocar efeitos colaterais inesperados?

Michel Lotrowska - Não. Há uma literatura internacional que mostra os possíveis efeitos. Como já disse, são medicamentos velhos, mas que nunca foram usados para determinadas doenças. Outro problema é a falta de alternativa de medicação. O remédio mais utilizado no combate à doença do sono mata um paciente em cada 20. É um medicamento ruim, de 1949. Outro método foi elaborado, mas depende de profusões, logo não é fácil de usar. Então qualquer coisa mais fácil e eficiente é melhor.

Rets - A construção de parcerias é o maior problema?

Michel Lotrowska - Elas estão sendo construídas em todos os países, desenvolvidos ou em desenvolvimento. Mas temos privilegiado, para financiamento, a pertinência das pesquisas. Se formos pensar só em qualidade, iremos sempre parar em Harvard. Queremos estudos sobre doenças que atinjam os países mais pobres e para as quais não existam medicamentos eficientes. Se há uma boa idéia a ser desenvolvida, buscamos parceiros. A idéia da DNDI é reforçar a capacidade de pesquisa, que falta no setor público. A indústria, aliás, também é bem-vinda nesse processo.

Rets - Mesmo cobrando pelo desenvolvimento de medicamentos?

Michel Lotrowska - Não queremos perder o foco do projeto. Se for necessário pagar para atingirmos nosso objetivo, tudo bem. Não podemos ficar amarrados. É bom lembrar que o projeto não acaba quando os medicamentos estão prontos. Ele só termina quando a distribuição está assegurada e o preço, acessível.

Rets - Qual é então o papel da indústria?

Michel Lotrowska - Ela tem uma “livraria” enorme, à qual gostaríamos de ter acesso. Se pudéssemos testar as moléculas por ela já descritas, seria maravilhoso. Esse é um tesouro que poderia ser compartilhado.

Rets - Já foram feitos contatos nesse sentido?

Michel Lotrowska - Já, algumas aceitaram e estão trabalhando. As empresas estão começando a tentar valorizar sua imagem.

Rets - No Brasil isso também tem acontecido?

Michel Lotrowska - Sim, a Novartis, por exemplo, abriu um projeto similar ao que desenvolve em Cingapura.

Rets - O Brasil tem potencial para ser um líder na produção de medicamentos voltados para doenças negligenciadas?

Michel Lotrowska - É preciso ser claro em relação a esse assunto. O Brasil ainda é muito atrasado em pesquisas de medicamentos. Nunca houve uma política de produção, sempre houve protecionismos e impedimentos à engenharia reversa. Temos aqui muita inovação, mas pouca capacidade de produção. As empresas públicas e privadas nacionais só conseguem fazer melhorias leves nos produtos.

Por tudo isso, o Brasil não vai liderar a inovação tão cedo. Talvez em relação a medicamentos fitoterápicos consigamos algum papel importante. A indústria nacional tem uma visão muito voltada para o mercado internacional e para as compras governamentais. Assim fica dependente do governo e de concorrências internacionais.

Rets - E quanto a outros países em desenvolvimento, como a Índia e a África do Sul?

Michel Lotrowska - Tenho o sonho de que eles também se voltem para as doenças negligenciadas. Esse não é um mercado competitivo, mas também paga remuneração. Não com o lucro gigantesco que as grandes empresas conseguem com o mercado tradicional, mas, ainda assim, lucrativo.

Algumas empresas já estão tentando se livrar de alguns produtos que não lhes proporcionam lucros, mas são úteis para países em desenvolvimento, que as pressionam por menores preços. Elas estão passando adiante licenças ou determinadas pesquisas para que os próprios países possam produzir o medicamento. As multinacionais querem sair desse mercado, parar de produzir medicamentos que não dão lucro, mas as agências de saúde costumam proibir o fim da produção.

Rets - As Nações Unidas e seus órgãos, como a Organização Mundial de Saúde (OMS), estão cumprindo seu papel de estímulo à pesquisa e resolução de problemas como os apontados até agora?

Michel Lotrowska - Temos muitas críticas à atuação da OMS. No México [onde houve a Cúpula Ministerial de Pesquisa em Saúde, de 16 a 20 de novembro] tivemos um debate sobre pesquisas na área de saúde e percebíamos que o maior problema era arranjar mecanismos para beneficiar pesquisa e desenvolvimento de medicamentos para doenças negligenciadas. Foi discutido tudo, menos esses itens.

Falta também à OMS ver como problema a não responsabilização pela ausência de medicamentos para doenças que afetam 90% da população mundial. Não só em relação aos remédios, mas também por não haver doses pediátricas. Alguns medicamentos até têm produção suficiente e acessível, mas voltada apenas para adultos. Na África temos muitas crianças doentes, que não podem tomar esses remédios, pois eles são fortes demais.

Em relação à Aids, há ainda outras questões. O Brasil, por mais pobre que seja, ainda se dá ao luxo de importar máquinas para fazer o diagnóstico rapidamente. Os países africanos não conseguem fazer isso, então o tratamento fica ainda mais demorado e caro. Ninguém está pesquisando testes mais baratos e simples de serem feitos, algo que possa dizer se a pessoa tem HIV a partir de uma gota de sangue. As multis não fazem. O coquetel “3 em 1” é outro exemplo. Não existe um comprimido único que reúna os três princípios ativos.

Enfim, precisamos simplificar o tratamento e o diagnóstico, além de adaptá-los às realidades locais. Os retrovirais precisam ser refrigerados para não estragarem. Como vamos fazer isso na África, em lugares sem luz?

Rets - A OMS, então, não está cumprindo seu papel?

Michel Lotrowska - No fim da conferência, ela acabou reconhecendo que é preciso mais investimento para deter as doenças negligenciadas, mas faltou uma responsabilização da própria entidade. Hoje a Fundação Bill Gates financia pesquisa sobre a Aids. A gente agradece, mas não podemos ficar dependentes da boa vontade de milionários. Onde está o poder público?

Rets - Diante desse quadro, há indicativos de melhora?

Michel Lotrowska - Sempre mantemos a esperança, apesar de a situação estar muito ruim. Acredito que haverá novidades. Nossa maior preocupação é a Aids. As pessoas pensam que há muita pesquisa sobre ela, mas isso não é verdade, pois 90% dos afetados são negligenciados pelos tratamentos. Os preços e instrumentos precisam ser adaptados à realidade local.

Marcelo Medeiros

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