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Segurança humana em todos os seus aspectos

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets





Segurança humana em todos os seus aspectos


“Os conceitos de segurança e insegurança que inspiram esta edição do Observatório da Cidadania têm a ver com a segurança humana, uma noção multifacetada, que vai além da segurança contra a violência física”. A frase, escrita por Fernanda Carvalho no prefácio da versão brasileira da obra, resume o conteúdo e os enfoques presentes no relatório Social Watch/Observatório da Cidadania 2004, que foi lançado no último dia 30, em Brasília. Em outro trecho, na apresentação elaborada por Roberto Bissio, coordenador do Social Watch, mais uma eficiente tradução do que revela a publicação: “Quais são os principais obstáculos à segurança humana em seu país? A grande variedade de respostas a essa questão constitui a essência deste relatório. Certamente, a segurança inclui a ausência de medo, porém as pessoas temem a guerra, o terrorismo, o conflito civil, o crime e a violência doméstica. Esses temores não podem ser dissociados do medo do desemprego, da doença, da pobreza, da exclusão e da discriminação”.

E é essa a principal característica do Observatório da Cidadania 2004, cujo tema mundial é segurança humana: a noção de que a questão não envolve apenas a segurança pública, no sentido de resposta à violência física ou criminal. Mas, sim, todo um conjunto de fatores que faz com que cidadãos e cidadãs se sintam seguros, dignos e capazes de exercerem sua cidadania por completo – apesar de a violência, principalmente nos centros urbanos, ser algo cada vez mais palpável no Brasil. Na década de 80, segundo dados do Departamento de Informação e Informática do SUS (Datasus), ligado ao Ministério da Saúde, foram assassinadas 11,7 pessoas em cada 100 mil habitantes; no ano 2000, este número chegou a 28,7 pessoas. Ou seja, um aumento de mais de 100%. Somente no ano passado, também segundo o Datasus, foram assassinadas no país 47 mil pessoas.

Nas grandes cidades, a percepção deste aumento vertiginoso da violência é ainda maior. “No Rio de Janeiro, por exemplo, a taxa de pessoas assassinadas é de 50 por cada 100 mil habitantes. Entre os jovens, são 200 assassinados em cada 100 mil habitantes, o que supera a taxa a partir da qual as Nações Unidas consideram situação de guerra, que é de 100 em cada 100 mil habitantes”, chama atenção Silvia Ramos, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec). Segundo ela, existe ainda o que se denomina a “cor da morte” e a “geografia da morte”. “Entre os jovens assassinados, os negros estão em um número 12% maior. E quanto ao local onde as mortes acontecem, são sempre mais nas periferias e nos subúrbios pobres do que nos centros urbanos”, explica.

Mas, embora a segurança pública e a violência tenham lugar cativo nas preocupações da sociedade atualmente, o relatório mostra que outros fatores, não tão previsíveis, têm importância igual – senão maior – na garantia da segurança humana. A violência de gênero, a instabilidade econômica e do emprego e o pouco respeito às instituições democráticas são alguns dos problemas que ameaçam essa tão desejada segurança. Ou, nas palavras de Fernanda, , também no prefácio da versão brasileira do documento“, essa noção [segurança humana] inclui as possibilidades de sobrevivência digna do ser humano, nas suas múltiplas dimensões: segurança contra agressão armada, contra as incertezas econômicas, contra as arbitrariedades de toda ordem, contra a privação de oportunidades por motivos de natureza racial, de gênero, de renda etc.”.

“O principal desta edição do relatório é a chamada para a complexidade da questão. Demonstra que, na verdade, a ameaça à segurança humana está ligada não só à violência contra a integridade física do ser humano, mas à não garantia de direitos”, avalia Cândido Grzybowski, diretor geral do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), organização brasileira que coordena os trabalhos do Social Watch/Observatório da Cidadania no Brasil.

A iniciativa nasceu em 1995, com o intuito de ser uma rede mundial de monitoramento de políticas públicas. Hoje reúne organizações da sociedade civil de 50 países, pressionando governos e instituições multilaterais a cumprirem metas sociais assumidas em compromissos internacionais, especialmente aqueles do âmbito da ONU. A cada ano, o Social Watch internacional publica um relatório com avaliações gerais sobre temas que variam periodicamente.

No Brasil, o Social Watch tem uma representação desde 1997: o Observatório da Cidadania/Social Watch. Composta por um grupo de referência formado por ONGs (cuja composição completa pode ser vista no box ao lado), a iniciativa também publica anualmente a versão brasileira do relatório mundial, trazendo uma parte dos textos da edição internacional (em 2004, são 12 dos textos internacionais presentes na versão impressa; os outros 38 estão no CD-Rom que acompanha a publicação), acrescidos de análises originais sobre a situação brasileira. Os artigos nacionais elaborados para o relatório brasileiro têm como base o mesmo tema da edição mundial.

Além disso, o Observatório da Cidadania/Social Watch também elabora indicadores de cumprimento de compromissos internacionais. “Existem os índices para 180 países, que estão do CD-Rom e estarão disponíveis no site do Social Watch internacional e na área de Biblioteca do site do Ibase [os dois endereços estão na área de Links Relacionados, ao lado]. Seria interessante as pessoas lerem e verem como os países estão caminhando”, comenta Fernanda Carvalho, coordenadora executiva do grupo de referência do Social Watch no Brasil.

O panorama do Brasil

Neste ano, para o Panorama Brasileiro, contribuíram autores como Lúcia Avelar, professora de Ciência Política da UnB, que analisou o desapontamento da população com a democracia, enfocando em especial o clientelismo tradicional entre Estado e sociedade. Leila Linhares, do Cepia - Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação, aborda a perspectiva da violência de gênero, que, para ela, não tem sido devidamente considerada quando se trata de segurança humana. Segundo a autora, as mulheres sofrem a violência tanto no espaço público como no privado, cerceando seu protagonismo social. A situação é ainda mais dramática para as da raça negra, pois as questões de gênero e de raça se somam.

A questão alimentar e nutricional foi enfocada por Luciene Burlandy e Rosana Magalhães, da UFF e da Fiocruz, respectivamente, que mostram que somente pela complementação das várias dimensões da questão alimentar e nutricional (seguridade social, segurança alimentar, segurança humana e direito humano à alimentação) será possível superar os impasses e dilemas para o desenvolvimento de uma política nacional de segurança alimentar e nutricional.

Lena Lavinas, do Instituto de Economia da UFRJ, defende que as políticas universais não são necessariamente regressivas, mas, ao contrário, podem impactar positivamente a redistribuição de renda. Para ela, é importante tomar cuidado com a ênfase que se dá na transferência de recursos somente para famílias pobres. Seria necessário pensar na universalização de direitos de fato, com a implantação do programa de renda mínima para todos os cidadãos. E, finalmente, Silvia Ramos e Julita Lemgruber, ambas do Cesec, se debruçam sobre o aspecto mais imediatamente relacionado ao tema da segurança humana: o aprofundamento da violência nas grandes cidades. Segundo elas, a violência atinge desproporcionalmente as comunidades mais pobres, particularmente os jovens e negros.

Para Fernanda, o ponto comum entre os relatórios dos vários países é que, apesar de a identificação dos problemas já acontecer há tempos, com a pobreza sendo a causa de muitos deles, pouca coisa muda. “Realmente, apesar das diferenças das situações em diversos países, o que sobressai é a pobreza como fator de insegurança humana. E não estamos progredindo na redução da pobreza e das desigualdades. É chocante saber que, do meio dos anos 90 pra cá (desde quando o Observatório começou a fazer suas avaliações), nada mudou. Fica até repetitivo: todo ano as avaliações são parecidas, pois encontram as mesmas causas para os problemas”, indigna-se. Cândido Grzybowski conclui o pensamento: “Não ter comida, teto e água também faz parte da insegurança das pessoas. Esse enfoque é a inovação do relatório: só a universalização dos direitos pode garantir a segurança humana”.

Maria Eduarda Mattar

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