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Reforma do Judiciário: tardou e pode falhar

Autor original: Mariana Loiola

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets





Reforma do Judiciário: tardou e pode falhar


A tão aguardada aprovação da Reforma do Judiciário foi anunciada pelo governo como uma resposta à cobrança da sociedade por uma Justiça mais ágil e próxima da população. No entanto, muitos do que lutam pela democratização da Justiça no país acreditam que a maioria dos pontos da reforma aprovada não apenas não garante essa democratização como pode dificultá-la.

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para a reforma do Poder Judiciário foi apresentada em 1992 pelo então deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Hélio Bicudo. A idéia era combater a lentidão, a ineficiência e a dificuldade de acesso à Justiça. Ao longo de 13 anos de tramitação no Congresso Nacional, a proposta recebeu diversas modificações que acenderam debates inflamados entre magistrados, congressistas e sociedade civil.

No último dia 17 de novembro, a PEC foi finalmente aprovada em segundo turno do Senado Federal, com 56 votos favoráveis, e promulgada no dia 8 de dezembro, no Congresso Nacional. Agora, parte do texto que foi alterado pelos senadores voltará à Câmara para nova deliberação. Entre os pontos aprovados estão a criação do Conselho Nacional de Justiça e do Ministério Público, a súmula vinculante e a autonomia das defensorias públicas.

Segundo Hélio Bicudo, atualmente presidente da Comissão Municipal de Direitos Humanos de São Paulo, o texto aprovado é completamente diferente do original, inclusive na sua idéia principal. "A idéia do texto apresentado em 1992 era aproximar as partes dos juízes, pois a Justiça não é feita sobre papéis e sim sobre pessoas". Para ele, a reforma representa um passo atrás. "Essa reforma resolve o problema dos tribunais, mas não da Justiça. Como o texto foi mudado substancialmente no Senado, ele deveria ter uma nova votação na Câmara. É uma reforma ‘cosmética’: só serve para o governo dizer que fez reforma e deixar as coisas como estão", critica.

Ponto positivo

O único dispositivo da reforma que facilita o acesso da população à Justiça, segundo o desembargador Cláudio Baldino Maciel, da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), é a autonomia administrativa e financeira das defensorias públicas nos estados, que deixarão de ter seus orçamentos ligados aos governos estaduais. "As defensorias deveriam ter tantos recursos quanto o Ministério Público, mas estão deficientes. Agora vão poder se organizar. A melhoria das defensorias é um meio de democratizar o acesso à Justiça, pois atende à população que não tem condições de pagar um advogado", enfatiza.

Além do problema da falta de recursos, há estados (São Paulo, Goiás e Santa Catariana) que sequer possuem defensoria pública. O estudo Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, iniciativa da Secretaria de Reforma do Judiciário, com apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), mostra que o número de defensores públicos no país é insuficiente para atender à parcela da população que depende da prestação gratuita dos serviços de orientação jurídica. O Brasil dispõe de apenas 1,86 defensor público para cada 100 mil habitantes, ao passo que a proporção de juízes é de 7,7 para cada 100 mil habitantes. A pesquisa constatou que o grau de cobertura das defensorias é de apenas 42,% das comarcas brasileiras. Os estados que menos investem nas defensorias são os que apresentam os piores indicadores sociais – e que mais necessitariam dos serviços da instituição.

Controle equivocado

A criação de um Conselho Nacional de Justiça é um dos pontos mais contestados. De acordo com o texto da reforma, caberá ao Conselho Nacional de Justiça planejar e padronizar as atividades do Poder Judiciário. Entre as suas atribuições, estão o controle da atuação administrativa e financeira do Judiciário e os deveres funcionais dos juízes. O conselho será composto por 15 membros, dos quais nove do Judiciário e seis entre representantes do Ministério Público, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e da sociedade civil, indicados pelo Senado e pela Câmara dos Deputados. O conselho deve entrar em funcionamento 180 dias após a promulgação da Emenda Constitucional.

A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) entrou, no dia 9 de dezembro, com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF), contestando a criação do Conselho Nacional de Justiça. De acordo com a AMB, a medida viola o princípio da separação e da independência dos poderes da República, previsto na Constituição Federal. Para o presidente da entidade, a presença de pessoas indicadas pelo Poder Legislativo no Conselho implica a politização do judiciário brasileiro e prejudica a sua função de fiscalizar os outros poderes.

Para Hélio Bicudo, o Conselho só funcionaria se aproximasse os juízes das partes. "Esse Conselho não vai funcionar, pois vai ter um acesso muito relativo aos juízes. O controle deveria ser feito pela própria sociedade civil e não por um órgão burocrático formado por 15 pessoas", afirma.

Ameaça de retrocessos

A adoção da súmula vinculante é outro ponto polêmico entre representantes de entidades da sociedade civil e até mesmo dentro do governo. Por este mecanismo, os juízes das instâncias inferiores ficam, em tese, obrigados a seguir as orientações firmadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre temas que tenham sido objeto de muitas ações. O instrumento teria como objetivo reduzir o número de causas repetitivas.

O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, em audiência pública promovida pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) no início do ano, afirmou ser "radicalmente contrário" à implantação da súmula vinculante. A medida, segundo ele, imobilizaria os magistrados de primeira instância, que estariam obrigados a seguir diretrizes estabelecidas pelo STF.

A coordenadora executiva da Advocaci - Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos, Rosana dos Santos Alcântara, também manifesta bastante preocupação quanto à adoção da súmula vinculante. "Apesar da lentidão do judiciário e dos tribunais abarrotados, essa é uma decisão muito séria. Há o perigo de engessar e dificultar o exercício da democracia", teme Rosana. As causas ligadas às lutas dos movimentos sociais poderão ser prejudicadas, segundo ela:

"As temáticas que a Advocaci trabalha, por exemplo, na área dos direitos sexuais e reprodutivos, geralmente têm avanços pontuados em tribunais regionais. Os juízes de primeira instância têm a possibilidade de estar mais próximos dos cidadãos do que os desembargadores e ministros. Por isso, é mais fácil eles serem favoráveis a causas que tratem de aborto e de orientação sexual, por exemplo. No caso de uma negativa, há como pensar em outros mecanismos jurídicos. Os avanços na linha dos movimentos sociais geralmente acontecem de baixo para cima, enquanto estão nas primeiras instâncias. Mas a toda hora surgem tentativas de retrocessos. Uma causa dessas que for para ser decidida no STF, se não for acompanhada de uma estrutura de mobilização dos movimentos para sensibilizar o ministros, pode ser dificultada".

O presidente da AMB concorda: "Geralmente a Justiça começa nas comarcas, com os juízes em contato com as partes e a sociedade. A súmula congela a criação do direito, não permite que evolua numa sociedade dinâmica como a nossa".

Em vez da implementação da súmula vinculante, Rosana sugere a verificação do excesso de prazos e recursos possibilitados pelos Códigos de Processo Civil e Penal. Quanto a essa questão, o governo deve tomar providências, conforme foi anunciado pelo ministro da Justiça, após a promulgação da reforma. Segundo o ministro, o governo deve encaminhar, até o fim do ano, projetos sobre a simplificação do processo civil para tornar a justiça mais ágil.

Participação da sociedade civil

Um dos grandes problemas da reforma aprovada, segundo Hélio Bicudo, foi a ausência da sociedade civil na sua construção. "Nesse processo, que durou 13 anos, não houve a menor participação da sociedade civil. A construção da reforma obedeceu apenas ao corporativismo dos tribunais." Ele lembra que, para possibilitar o acesso de mais pessoas à Justiça, é preciso descentralizá-la, ampliá-la para as periferias.

A Reforma do Judiciário não é o único meio para a aproximar a Justiça da população, ressalta Virgínia Feix, coordenadora executiva da Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero. Além de melhorar o seu funcionamento, o Poder Judiciário deve dialogar com organizações da sociedade civil para a elaboração de políticas públicas. "Só com políticas públicas podemos diminuir o fosso histórico entre a grande massa da população e a Justiça".

Virgínia cita como exemplo o programa de Promotoras Legais Populares, realizado há 11 anos pela Themis em parceria com as Justiças locais e outras ONGs. Atualmente presente em 12 municípios do Rio Grande do Sul e multiplicado em mais 11 estados, o programa capacita mulheres líderes comunitárias em noções do direito, de direitos humanos e funcionamento do Poder Judiciário. "À medida que população souber dos seus direitos e que caminho percorrer para reivindicá-los, ela vai procurar o Poder Judiciário", afirma.

Mariana Loiola

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