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A mobilização democrática e produtiva dos territórios como via de transformação social

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Artigos de opinião

Caio Silveira*

Mais de 3.000 pessoas de todo o Brasil, além de participantes de outros países, afluíram à 3ª Expo Brasil Desenvolvimento Local, entre 24 e 27 de novembro deste 2004, em Olinda, no Centro de Convenções de Pernambuco.

Algo aconteceu ali, algo que talvez não estivesse nítido ganhou evidência. Podemos dizer que o evento combinou apresentação e debate de experiências, oficinas, painéis temáticos e palestras, além de uma feira de projetos e instituições. Na verdade, porém, transcendeu a soma de todos estes elementos, naquilo que trouxe de mais revelador: sem medo de errar, já devemos dizer que o Brasil é hoje um imenso laboratório de iniciativas locais com potencial de mudança substantiva nos padrões de relacionamento social e político. Um imenso e pulsante laboratório!

Se isto acontece é porque há condições para que aconteça. É porque, a despeito de uma tradição fortemente concentradora e excludente, vieram se conformando ao longo dos últimos anos, em inúmeros pontos do país, ambientes e práticas que favorecem a irrupção de dinâmicas democrático-participativas capazes de abrir novos caminhos de desenvolvimento social.

Tais condições se mostram, sobretudo, no vigor que advém das bases da sociedade, na germinação de uma cultura política distinta dos padrões centralistas e clientelistas, na profusão de agentes de desenvolvimento e multiplicadores e, em especial, no adensamento das redes locais e interlocais que se constroem e reconstroem.

Os atores e instituições governamentais são relevantes em todo esse esforço? Sem sombra de dúvida. Tanto nas estratégias de fomento a iniciativas de desenvolvimento local hoje em curso quanto no apoio específico ao acontecimento da última Expo Brasil, a participação governamental (incluindo segmentos expressivos do governo federal) merece ser claramente destacada, assim como a de agências internacionais e de diversos organismos públicos de grande porte. Mas o fulcro dessas dinâmicas, e do que hoje emerge como um movimento social associado à perspectiva do desenvolvimento local, não é o protagonismo do Estado ou das grandes instituições: é, seguramente, o protagonismo local, é a percepção dos atores envolvidos em dinâmicas locais como sujeitos de seu próprio projeto de mudança, como sujeitos de seu desenvolvimento.

Parece ficar mais claro o vínculo entre desenvolvimento sustentável e protagonismo local. Perceber este vínculo significa partir da descoberta e da valorização dos ativos locais, especialmente das potencialidades de cooperação ocultas em cada território. Significa também identificar o núcleo impulsionador dos processos de desenvolvimento na construção de esferas públicas ampliadas de base local. De que se trata, enfim? Basicamente, da constituição de usinas sociais de projetos e ações de base territorial, da criação e manutenção de dinâmicas que combinam articulação interinstitucional e participação social direta, do deslocamento de uma lógica de ações setoriais e pontuais para uma lógica sistêmica de construção social de territórios, isto é, de construção do desenvolvimento local.

Esta é a hipótese, esta é a aposta: a mobilização democrática e produtiva dos territórios como uma via de transformação social. Há questões de fundo - não limitadas a um país ou a uma região do planeta - que permitem a emergência dessa hipótese. Elas residem, em boa parte, no contexto atual de deslocamento de paradigmas, com a conjugação entre reestruturação produtiva, primado do trabalho imaterial (informação, comunicação, conhecimento) e crise do Estado provedor construído com base na sociedade salarial. Residem, especialmente, no potencial que se abre - no avesso das dinâmicas de dominação e exclusão - para a conjugação entre aprofundamento da democracia e emersão de novas possibilidades de cooperação social e produtiva. Isto é, no nexo entre a constituição de novos sujeitos-em-relação e o florescimento de territórios democrático-produtivos. Assim pode ser enunciada a hipótese do desenvolvimento desde o local.

Esse modo de ver é inseparável da percepção de que o crescimento econômico, ainda que essencial, ainda que acompanhado de ações redistributivas, não garante inclusão social ou redução das desigualdades. Diferentemente, é preciso distribuir para desenvolver. E distribuir não apenas renda, mas conhecimento e poder - o que não se faz de cima para baixo ou de fora para dentro. Alternativas transformadoras de desenvolvimento local traduzem a recomposição, em um único e mesmo processo, de aspectos políticos, econômicos, culturais e ambientais. Não se trata do "desenvolvimento clássico", reduzido a uma "escala local". Na verdade, não se trata de uma questão de escala. O desenvolvimento local inscreve-se, tipicamente, na busca de um outro desenvolvimento, em que os fluxos adensam os lugares, e é de lá, onde a vida acontece, que se criam novos sujeitos e relacionamentos.

Isto significa apontar para agendas estratégicas fora dos parâmetros mercadocêntricos (neoliberais) ou estadocêntricos (como nas políticas industriais de tipo desenvolvimentista). O desenvolvimento desde o local expressa essa inflexão, diferenciando-se tanto da posição que confia cegamente nas forças do mercado quanto dos modelos de planejamento centralizado, com instrumentos e recursos organizados verticalmente a partir das instituições públicas centrais. Trata-se de perceber os territórios não como pontas dos sistemas de fluxos (para usar o jargão que ainda predomina nas nossas instituições), mas como centralidades instauradoras de mudanças efetivas, desconstruindo o vínculo imaginário entre ação vertical e mudança estrutural.

E isto não é uma idéia "fora do lugar". Ao contrário, é algo que está aí, que se torna visível pela profusão de iniciativas e experiências que revelam a capacidade de serem instituídos, desde as bases da sociedade, novos territórios democrático-produtivos.

São inúmeros os obstáculos e resistências a processos dessa natureza, a começar pela nossa cultura política, marcadamente clientelista e centralizadora. Ainda assim, o Brasil é hoje um palco vivo de ações inovadoras que têm as comunidades locais como protagonistas. São processos certamente embrionários, que embutem avanços, retrocessos e novos desafios, mas que já apontam para alternativas de desenvolvimento que têm nas redes sociais e na democracia local sua base, conjugando ação molecular e mudança estrutural.

Mais do que mero refúgio tático (enquanto os "grandes destinos" seriam traçados por outras mãos), a busca de alternativas de desenvolvimento de base territorial mexe com questões de fundo. Aliás, mexe com as principais questões de fundo, pois se contrapõe direta e concretamente aos mecanismos que reproduzem a dominação e a segregação social.

É nesse contexto, e em boa parte alimentada por esta hipótese, que a Expo Brasil Desenvolvimento Local hoje se afirma no calendário nacional, propondo-se como um canal de visibilidade, debate, aprendizagem, articulação de atores e fortalecimento de ações relacionadas ao desenvolvimento local. E é sintomático, animadoramente sintomático, que a cada ano mais pessoas se mobilizem por esse evento, gente de todo o Brasil e, também crescentemente, de outros países e continentes.

No diálogo internacional, que já se fez vísivel nos quatro dias de Olinda (PE), além da presença de especialistas de diversos países, destacou-se o avanço na aproximação com atores do desenvolvimento local em Portugal e no firme propósito de uma ampla articulação de pessoas de todos os países de língua portuguesa em torno do desenvolvimento de base territorial. Este já será um grande passo, quiçá ao nosso alcance, na perspectiva de uma inserção mais ampla e vigorosa do tema no debate mundial, para além das fronteiras de qualquer tipo.

Um outro mundo supõe um outro desenvolvimento, isto é, um desenvolvimento social propriamente dito, por definição solidário e sustentável. E há bons motivos para que se fortaleça a percepção de que mudanças sociais profundas, ou seja, mudanças não impostas, mudanças que não sejam mudanças de dono, requerem a mobilização democrática e produtiva dos territórios, requerem a potência dos locais em conexão, como forças capazes de produzir política, economia e cultura sob novos vínculos.

*Caio Silveira é coordenador da rede de conhecimento sobre desenvolvimento local (Rede Dlis), sediada na Rits, que promove anualmente a Expo Brasil Desenvolvimento Local.






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