Autor original: Luísa Gockel
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Ao chegar ao fim do quinto mês com mais de 230 mil armas entregues voluntariamente pela população, a Campanha do Desarmamento superou com folga a meta inicial do Ministério da Justiça e ganhará novo fôlego com a sua prorrogação por mais seis meses. Apesar de premiada pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) na categoria Direitos Humanos e Cultura da Paz e considerada pela instituição como "uma das melhores estratégias de promoção da paz já desenvolvidas no Brasil", a campanha ainda precisa de ajustes estruturais, de acordo com o sociólogo Antônio Rangel, coordenador do Projeto de Controle de Armas da organização não-governamental Viva Rio.
Segundo ele, a campanha, que já foi realizada em mais de 20 países, poderia ter arrecadado muito mais se contasse com a participação mais ativa da sociedade civil, com exceção do Rio de Janeiro e de São Paulo – estados onde houve a colaboração permanente de ONGs e a arrecadação de armas foi muito maior. Rangel, que participou ativamente da campanha, acredita que esta seja uma iniciativa importantíssima para tirar o Brasil do primeiro lugar do ranking de países onde mais se morre por armas de fogo do mundo, mas reconhece que a arrecadação ainda está aquém do possível.
Rets - O governo está comemorando o sucesso da campanha e a superação da meta de 80 mil armas recolhidas. A campanha superou de fato todas as expectativas?
Antônio Rangel - O Brasil não é pioneiro nesse tipo de campanha. Nós estudamos campanhas semelhantes em 23 países e esse número de armas recolhidas não nos surpreendeu. Apesar de o Ministério da Justiça avaliar em 80 mil a meta de recolhimento de armas, 233 mil é um número bom, mas está aquém do possível.
Rets - De que forma a campanha poderia ter sido mais eficiente?
Antônio Rangel - Até agora, foi uma campanha oficial. A sociedade civil só participou no Rio de Janeiro e em São Paulo. Para essa segunda fase, esperamos uma participação mais ativa das entidades não-governamentais. Uma das razões pelas quais o ministro resolveu prorrogar a campanha por mais seis meses foi o pedido das principais igrejas do país para participar. A CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] e o Conic [Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil], além das igrejas presbiterianas, pediram para ajudar na campanha.
Com a entrada da sociedade civil, esse número pode ser multiplicado porque há muita resistência da população em entregar em delegacia e quartéis. Tem gente que tem receio de entrar em delegacia. Infelizmente sabemos que nem todas as polícias do país têm boa imagem. O Viva Rio recolheu 5.500 armas e aplicamos um questionário nas pessoas que vieram entregá-las. Descobrimos que 89% das armas eram ilegais. Embora a lei garanta anistia, é compreensível que as pessoas fiquem desconfiadas e prefiram entregar numa entidade civil. Por isso criamos uma grande expectativa para essa segunda fase.
Outro ponto a melhorar é o esclarecimento da opinião pública. A publicidade não foi suficiente. É uma questão de mudança de costumes, o que é muito complicado. É só nos lembrarmos da campanha para a utilização do cinto de segurança. No começo, houve muita resistência e ninguém usava. É preciso que haja uma publicidade inteligente que mostre o risco de ter uma arma em casa. Tem muitos homens que acham que ter uma arma em casa é uma forma de defender a família, mas as pesquisas mostram o contrário. O número de acidentes com armas de fogo é enorme. Brigas fatais entre familiares ou amigos, suicídio de jovens, acidentes com crianças. É preciso mostrar isso com números. A informação está muito restrita à universidade. De acordo com o SUS, mais de cem pessoas morrem por dia por causa de arma de fogo. O Brasil é o país onde mais se mata com armas de fogo no mundo.
Rets - De que outras formas as organizações civis poderiam estimular a entrega voluntária de armas?
Antônio Rangel - Posso destacar alguns benefícios dessa parceria. A entidade civil inutiliza a arma no momento da entrega com uma marretada. Algumas pessoas pedem para marretar. Muita gente se emociona, é quase um desabafo. Mas mais importante do que isso é a garantia de que a arma não vai ser desviada e a garantia da segurança do local de recolhimento.
Outra razão é a necessidade de ter muitos postos. É preciso ter posto perto da casa da pessoas. Imagina uma mulher que quer entregar a arma do seu falecido marido tendo de pegar vários ônibus com uma arma na bolsa para entregá-la.
E, por último, polícia e funcionário público não trabalham no fim de semana, o que exclui os trabalhadores. Algumas igrejas abrem sábado e têm um recolhimento enorme. Pode até virar um programa familiar e educativo de domingo.
Rets - Há algum tipo de resistência quanto à participação da sociedade civil na campanha?
Antônio Rangel - Certamente. Existem alguns setores, como a polícia, principalmente, que têm medo do fato de civis terem acesso a armas. O que não faz sentido, porque mesmo quando uma entidade civil é a recolhedora sempre há um policial, sem estar uniformizado, que supervisiona todo o processo de entrega. No fundo, é uma resistência de uma polícia que nunca trabalhou com a sociedade.
Rets - Podemos dizer que o Brasil é um país armado?
Antônio Rangel - É difícil dizer. Estimamos, por alto, que existam entre 14 e 20 milhões de armas no país, entre legais e ilegais. As pesquisas são muito precárias aqui. O Viva Rio está indo de estado em estado para fazer o primeiro levantamento deste tipo. Estamos aplicamos um questionário para conhecer melhor o perfil de quem entrega a arma no país, suas razões etc., para fazermos um mapa das armas e dos usuários no Brasil.
Rets - A campanha recebe muitas críticas por estar desarmando apenas os "homens de bem" e não ter os bandidos como o foco principal. O senhor acha que esta é uma deficiência?
Antônio Rangel - Esse é um grande equívoco sobre o objetivo da campanha. O Estatuto do Desarmamento oferece meios para que a polícia desarme os bandidos, como marcar armas e munição, por exemplo. O que nos permite saber sobre a origem, se foi desviada etc. Mas também existe um artigo no Estatuto que fala em incentivar a população a se desarmar, e é onde entra a campanha.
Pesquisas do SUS dizem que um terço dos feridos por armas de fogo foram vítimas de acidente. O objetivo da campanha é exatamente baixar esse tipo de mortes, de homicídios entre familiares, acidentes e suicídios de jovens. Mesmo não sendo o objetivo principal da campanha, ela acaba afetando os bandidos. Fizemos uma pesquisa com mais de 70 mil armas apreendidas pela polícia e concluímos que 28% foram roubadas ou compradas de homens de bem.
Rets - Mas as armas pequenas, que normalmente são entregues pela população, são dos tipos usadas pelos bandidos?
Antônio Rangel - Dizem que o bandido só usa metralhadora ou fuzil. Não é verdade. Esse armamento pesado ele só usa contra a polícia ou contra outros bandidos. Para assaltar o cidadão comum, a arma é pequena e escondida, como pistolas e revólveres. Outro mito é que a maioria das armas utilizadas pelos criminosos é proveniente de contrabando. É claro que existe contrabando, mas a maior parte são armas pequenas e brasileiras. Essa idéia foi sustentada por muito tempo pela industria brasileira de armas. Foi uma cortina de fumaça alimentada por ela.
Rets - O senhor vem criticando a portaria que limita o número de balas por cidadão no país. Qual seria o limite mais adequado e de que forma isso pode ser controlado?
Antônio Rangel - O ministério da Justiça não foi consultado e o Ministério da Defesa lançou essa portaria sobre o limite anual de balas por cidadão. É uma questão que tem que ser decidida mutuamente entre os dois ministérios, pois o problema das armas não é de guerra, é crime. Essa portaria estabelece 300 cartuchos por ano para quem tem em casa uma arma legal. Acredito que para quem tem armas para se defender é um número muito alto. Achamos que 50 é mais do que suficiente. A crítica a essa posição é que é preciso um número maior para poder praticar, mas isso pode ser feito num clube de tiro, que é fiscalizado pelo exército e onde o limite de balas é muito maior.
Outro problema dessa portaria é que não estabelece mecanismos precisos de fiscalização. O cidadão pode comprar 300 unidades em cada estado. Não há uma fiscalização conjunta. Por esses motivos, a portaria está sendo revista e este limite deve ser alterado para menos.
Rets - O senhor vem chamando a atenção para o problema da fiscalização. É possível ter um estatuto eficiente e desarmar a população sem a cooperação de países vizinhos?
Antônio Rangel - Algumas armas são proibidas aqui, mas no Paraguai não, como é o caso da pistola 9mm. Ela acaba entrando no país, pois a arma não respeita fronteiras. Quanto mais ampla, mais eficiente uma lei de controle.
A nossa lei é de vanguarda. Vários países do Mercosul já estão adotando algumas inovações do Estatuto, como a marcação de balas e os testes psicológicos para componentes do exército. A Argentina tinha uma lei que era supostamente boa e eles se orgulhavam disso, mas agora se inspiram no nosso Estatuto. Acho que é esse o caminho.
Rets - O senhor afirmou que a Campanha do Desarmamento trata de mudanças de costumes. É por isso que foi criada uma campanha só para as crianças?
Antônio Rangel - A criança, na nossa sociedade, é estimulada pelos filmes e pela TV a resolverem seus conflitos de forma violenta. Ou ela tem um contraponto forte na família ou acaba se tornando um pessoa violenta por causa disso. Uma pesquisa nos Estados Unidos mostrou que a maioria dos criminosos era de famílias violentas. Essa campanha tem o objetivo de dar consciência à criança de que não devemos resolver nossos conflitos de forma violenta. Queremos desde cedo implantar essa cultura de paz nas crianças.
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