Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original:
Paulo Lima*[1]
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“Hoje, quando muito se fala de globalização, quando muito se teme a homogeneização que ela traria, quando guerras de novo são encetadas sob a alegação de garantir a supremacia de determinados valores, considerados superiormente humanos, penso nos meus ancestrais portugueses, que “da ocidental praia lusitana… foram dilatando a fé, o império, e as terras viciosas d’África e d’Ásia andaram devastando.” E como na época disso se orgulhou o poeta Camões. Penso nos meus ancestrais africanos, em homens e mulheres litorâneos, debruçados sobre o Atlântico, que significava riquezas, comércio, desgraça, escravidão e saudade. E penso num dos resultados disso tudo, o Brasil de hoje, com seu peculiar amálgama de tragédia e celebração da vida. A História, como Deus, tem formas tortas e insuspeitas de ir escrevendo o seu texto.[2]¨
Gilberto Gil, Ministro da Cultura do Brasil
Organismos multilaterais, ONGs de atuação internacional, empresas de entretenimento e Governos se preparam para a anunciada disputa de 2005, a Convenção sobre a Proteção dos Conteúdos Culturais e das Expressões Artísticas que se realizará em Paris no fim deste ano.
Convocada pela Unesco na perspectiva da aceleração do avanço do processo de mundialização, a Convenção é gesto de risco no multilateralismo e do próprio papel que a entidade terá no futuro. A Unesco, em seu Ato Constitutivo, assume o papel de “assegurar a preservação e a promoção da fecunda diversidade das culturas e de recomendar acordos internacionais que julgue útil para facilitar a livre circulação de idéias através da palavra e da imagem”[3]. A Convenção proposta é ato concreto oriundo da Declaração Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural, adotada pela 31ª reunião da Conferência Geral da entidade realizada em Paris, em novembro de 2001.
O Brasil defendeu, na 32ª Conferência Geral da Unesco – realizada em Paris, no ano seguinte, com a presença do Ministro da Cultura Gilberto Gil - a negociação, a curto prazo, de uma Convenção sobre a Proteção da Diversidade Cultural.
Esta idéia foi esmagadora e explicitamente defendida também por mais de 100 países, desenvolvidos e em desenvolvimento. Um pequeno grupo de nações (seis a oito) – lideradas pelos Estados Unidos – prefeririam que a matéria fosse exclusivamente tratada na Organização Mundial de Comércio (OMC). Mas, após densa rodada de negociação e entendimentos, foi dado à Unesco, por consenso, um mandato de preparação de proposta de Convenção.
A Declaração Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural
O texto de abertura do Diretor Geral da Unesco, Koichiro Matsuura, ressalta o momento específico da assinatura, cerca de dois meses depois do 11 de setembro e a necessidade premente de diálogos entre as diversidades. O que não diz Matsuura é que, depois de cerca de 20 anos, os Estados Unidos voltam à Unesco. Além do regresso dos norte-americanos, passou a integrar a Unesco a mais nova nação do planeta, o Timor Leste, totalizando, assim, 190 países-membro. Washington deu as costas à Unesco em 1984, quando Ronald Reagan estava na presidência. Para justificar a saída desse organismo da ONU, o então presidente republicano alegou que a Unesco "sofria de problemas de gerência e induzia a ações contrárias ao Ocidente". O retorno dos Estados Unidos em 2002 representaria aumento orçamentário de 544 para 610 milhões de dólares no caixa da Unesco nos dois anos seguintes.
A primeira-dama dos Estados Unidos, Laura Bush, encontrou-se com o presidente francês Jacques Chirac, antes da conferência que gerou a declaração, em Paris. Oficialmente, a esposa do presidente Bush foi participar do evento da Unesco. Mas o encontro com Chirac veio selar o retorno das conversações entre a França e os Estados Unidos, depois dos entraves causados pelas divergências em relação à guerra no Iraque, quando a França se opôs com veemência à ocupação, liderada por norte-americanos e britânicos.
Um patrimônio comum da humanidade. Ameaçado.
A diversidade cultural é - e em relação a isso não pairam dúvidas - uma das maiores riquezas da humanidade e seu respeito não é só um direito dos povos mas também, num marco de diálogo e cooperação, uma condição para se avançar para a paz e convivência mundiais[4]. A Declaração, em seus 12 artigos e 20 pontos para a construção de um plano de ação, faz um belo e útil diagnóstico dos perigos e dos rumos que a mundialização apresenta. Não só no campo das culturas, mas também expõe de maneira clara e objetiva a tensão principal: o paradoxo na relação entre o cultural e o econômico.
O tema central, a Diversidade Cultural, entendida como um direito fundamental da humanidade, regulamentada em acordo internacional, se choca frontalmente com os interesses comerciais em jogo e manejados por alguns países desenvolvidos. Nunca é demais esclarecer as coisas.
Apesar das imensas promessas que contém, a globalização ameaça a diversidade cultural. É verdade que ela facilita a circulação de bens e serviços culturais e favorece a redução dos custos de produção. Os produtos culturais assumem um lugar crescente na criação de riquezas e de emprego no mundo. O alargamento dos mercados abre perspectivas novas para os criadores de todas as origens, e o progresso das tecnologias da informação e da comunicação constitui uma oportunidade para o conjunto das culturas e das línguas, nomeadamente as das minorias. No entanto, o desenvolvimento e a liberalização dos intercâmbios internacionais, em conjunto com a convergência das tecnologias da informação e da comunicação, provocam a concentração das indústrias culturais e o aparecimento de empresas dominantes. Estas evoluções constituem uma ameaça de uniformização das culturas e de marginalização dos criadores e põem em perigo o pluralismo cultural, incluindo o linguístico. Neste quadro, torna-se urgente garantir a preservação da diversidade cultural enquanto fonte de criatividade e fator de coesão social e de desenvolvimento econômico. As políticas de apoio e de promoção cultural devem fazer com que todas as culturas tenham voz e opiniões no contexto da globalização.
É igualmente imperativo que o debate sobre a diversidade cultural não se limite ao confronto de interesses entre países tradicionalmente produtores de bens e serviços culturais. A este respeito há que reconhecer a situação especial dos países em desenvolvimento, que necessitam de uma atenção contínua ao se pretender reforçar a sua capacidade no domínio do desenvolvimento cultural, permitir-lhes desenvolver o potencial econômico da sua produção cultural e dar-lhes acesso a bens e seviços culturais que correspondam à sua própria cultura, condições essenciais para um verdadeiro diálogo entre as culturas do mundo.
Aspectos legais: O que poderá a Convenção?[5]
A iniciativa da Unesco de elaborar uma convenção internacional de caráter normativo e vinculante – Convenção sobre a Proteção da Diversidade dos Conteúdos Culturais e as Expressões Artísticas - que brinde respostas às ameaças concretas à diversidade cultural em tempos de globalização liberal, defendendo o direito das nações e dos povos a proteger e estimular sua criação cultural, é objeto das grandes discussões entre diversidade ou homegeneização cultural. A Convenção foi concebida como um instrumento jurídico permanente, para dar apoio legal às medidas e políticas soberanas que adotem os Estados nacionais nessa questão. Ela pretende propiciar um maior equilíbrio nos intercâmbios culturais de distintos países do mundo e propiciaria legitimidade às propostas para modificar os acordos comerciais nesse sentido. Estabeleceria normas que os Estados signatários se comprometam a respeitar, no sentido de dar garantias para a diversidade de expressões culturais em cada país, em um marco de liberdade de expressão.
As negociações para o estabelecimento dessa Convenção encontram dificuldades em vários aspectos, a começar pelo estatuto legal da Convenção, ainda mais quando os EUA retornaram à Unesco e são o principal interessado na liberalização dos bens culturais como se fossem assimiláveis aos outros bens comerciais. A expectativa é que as discussões possam estar concluídas no momento da 33ª sessão de Conferência Geral da Unesco, em outubro de 2005, antes da conclusão da Ronda Doha da OMC.
A proposta de texto para a Convenção, elaborado depois de múltiplas consultas informais, destaca o caráter cultural e econômico dos bens e serviços culturais, que não devem ser considerados mercadorias ou bens de consumo como os demais, porque “são portadores de identidades, de valores e de significados”. Dessa forma, os aspectos culturais e econômicos do desenvolvimento têm igual importância.
Os Estados signatários da Convenção, conforme os direitos humanos universalmente reconhecidos, “afirmam seu direito soberano a adotar medidas para proteger e promover a diversidade das expressões culturais em seus respectivos territórios e reconhecem sua obrigação de protegê-la e promovê-la tanto em seus territórios como no plano mundial”. (Art. 5.10). Estabelece também que os Estados podem “adotar medidas, em especial regulamentares e financeiras, para proteger a diversidade em seus respectivos territórios, especialmente quando estes se acham em perigo ou em situação de vulnerabilidade”. (Art. 6.1) Essas medidas podem consistir em um espaço para os bens e serviços culturais nacionais; para a adoção de disposições relativas ao idioma utilizado; para a garantia às indústrias culturais um acesso efetivo aos meios de produção, à difusão e à distribuição; para concessão de ajuda financeira do setor público; para a promoção do livre intercâmbio e circulação de idéias, expressões, bens e serviços culturais; e para o apoio às instituições de serviço público.
Os países signatários terão como obrigação a promoção ativa da diversidade das expressões culturais e a proteção das formas vulneráveis de expressão cultural. Terão também a obrigação de sensibilizar e educar o público em relação à importância da diversidade cultural.
As pressões, especialmente dos EUA, são para reduzir o mandato da Convenção que venha a ser aprovada, o que significa sua relação com outros acordos internacionais existentes. Uma Convenção desse tipo somente terá efetividade se tiver estatuto igual ou superior aos acordos comerciais existentes, que tendem a considerar os bens culturais como bens comerciais, sem nenhuma especificidade. Caso contrário, será mais uma declaração que expressa vontade, sem capacidade de implementação real. Por um lado está a posição que se limita a expressar que a Convenção não afetará os direitos e obrigações dos Estados em virtude de outros acordos internacionais. Por outro, está a que admite uma exceção, quando o exercício desses direitos e obrigações “cause sérios prejuízos ou constitua uma ameaça para a diversidade das expressões culturais”. Esta posição tem nos países francófonos – França e Canadá (Quebec) – seus maiores defensores. São acompanhados pelos ministérios de cultura dos 63 países membros da Rede Internacional sobre Políticas Culturais, que expressou posições contrárias aos ministérios de comércio desses mesmos países, adeptos das políticas de livre comércio. Existem ainda as Coalizões para a Diversidade Cultural, em 16 países – na América Latina: Argentina, Chile, Colômbia, México, Peru e Uruguai – que agrupam as redes de artistas e de pequenas e médias produtoras culturais, que buscam defender suas posições frente ao monopólio das cinco mega corporações mundiais do setor. O questionamento da concepção de direitos de propriedade intelectual, a defesa do conceito de bens públicos globais e a defesa do pluralismo midiático e de sua função de serviço público - são alguns dos temas em debate na elaboração da Convenção.
Para os países da América Latina e do Caribe – e para o Brasil, em particular -, o tema da proteção e o fomento da diversidade cultural é fundamental. Os acordos de livre comércio – tanto a nível mundial, como regional e os acordos bilaterais –, vigentes ou em processo de negociação, contêm cláusulas que comprometem o direito dos países de adotar políticas soberanas no plano cultural.
Em contraposição a uma tradição acadêmica adotada no campo das relações externas no que se refere à cultura, o Governo brasileiro divulga que: “O Governo Lula não trata a Cultura sob conceitos estritamente acadêmicos, restritivos e elitistas. Temos caminhado no sentido de promover a diversidade cultural mediante o apoio à desconcentração de recursos para a área cultural, o incentivo às manifestações culturais em todo o território nacional, assim como o processo de regionalização dos conteúdos dos meios de comunicação. Definimos assim uma nova perspectiva do papel do Estado, criando a possibilidade de retomada de princípios que vão além da expansão do comércio mundial, de políticas macro-econômicas e dos interesses transnacionais.
O Ministério da Cultura entende que a questão da diversidade cultural é elemento estratégico e fundamental na formulação de suas políticas, especialmente, a inclusão de critérios culturais na formação das agendas políticas e econômicas no âmbito nacional e internacional. A cultura pode e deve ser entendida como fator de desenvolvimento pois está estreitamente ligada aos processos de criação e da existência de uma sociedade democrática e da coesão social[6].”
No tema dos subsídios, os países que abriram sem cautela seu setor audiovisual no marco dos acordos da OMC podem se ver obrigados a oferecer subsídios similares a empresas nacionais e estrangeiras presentes no seu território, conforme os preceitos do chamado “livre comércio” e dos processos de integração como o Nafta e a Alca. Países que aplicam cotas para limitar a porcentagem de programação estrangeira no setor audiovisual, especialmente na televisão, vêm sofrendo pressões dos EUA, no momento das negociações de acordos de “livre comércio”, para que elas sejam eliminadas, inclusive por sua eficiência em fomentar a produção nacional e os conteúdos locais.
Sobre o controle dos investimentos – tema que afeta particularmente os meios de comunicação – vários países renunciaram a esse direito. Mesmo países do centro do capitalismo, incluindo os EUA, definiram várias reservas protecionistas que limitam o acesso de investidores estrangeiros a seus mercados de rádio e televisão e autorizam a outorga exclusiva de subsídios de produção artística a empresas nacionais. Os EUA se mostram menos rígidos nas mídias que se referem aos formatos tradicionais do audiovisual, que tenderão a desaparecer com as transformações tecnológicas em curso, para concentrarem-se no tema eletrônico, com o propósito central de assegurar as redes digitais, para que permaneçam fora dos protecionismos culturais. Buscam eliminar a distinção entre bens e serviços digitais, ao utilizar o termo “produtos digitais”, o que equivaleria a abrir o mercado de bens.
A sociedade civil e o jogo
As organizações não-governamentais em campo ainda são poucas mas é crescente a articulação para o acompanhamento e participação. Parece ser consenso o perfil baixo das reuniões multilaterais no sistema Nações Unidas (ver resultados pífios até o momento da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação) e a incompreensão sobre em que resultará a Reforma da ONU[7], para entender o fenômeno de migração das entidade para as reuniões da Organização Mundial de Comércio (OMC) e da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI). No Brasil a articulação da Campanha pelo Direito à Comunicação na Sociedade da Informação (Cris Brasil) se prepara para a discussão e irá levantar a questão durante seminários no V Fórum Social Mundial.
E essa é a meta: consagrar juridicamente a diversidade cultural, seja em uma ação de vigilância e monitoramento junto à OMC e à OMPI e, por outro lado, apostar no espaço que se abre junto à Unesco, na estratégia de combater a concentração e atuar no sentido de preservar e promover a diversidade cultural.
*Paulo Lima é historiador e diretor executivo da Rits.
[1] Agradeço ao Prof. Emir Sader pela importante contribuição ao presente texto.
[2] Discurso de Gilberto Gil no Fórum Mundial das Culturas, Barcelona 2004.
[3] Avant-project de Convention sur la Protection de la Diversité des Contenus Culturels et des Expression Artistiques, Rapport Préliminaire du Directeur Général. Disponíveis em www.unesco.org/culture/diversite/convention
[4] Burch, Sally, Arranca la negociación de la Convención sobre Diversidad Cultural, Agencia Latinoamericana de Información. Disponível em http://alainet.org/docs/6813.html.
[5] Esta parte deste texto incorpora análise do Prof. Emir Sader apresentada no Seminário Diversidade Cultural brasileira na Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, em setembro de 2004.
[6] Discurso do secretário da Diversidade Cultural Sérgio Mamberti na abertura da Mostra História e Cultura Movimento dos Sem Terra no MinC.
[7] Ver em www.un.org/reform.
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