Autor original: Mariana Loiola
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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Após décadas de lutas e conquistas, redes feministas de todo o mundo temem pela redução dos direitos estabelecidos na IV Conferência Mundial da Mulher, realizada pela ONU em 1995, em Pequim, China. Esta ameaça surge com a pressão dos Estados Unidos, da Igreja Católica e de setores conservadores, que deverão intervir e pedir a revisão dos acordos na 49ª Sessão da Comissão sobre a Situação das Mulheres (CSW, em inglês) – Beijing+10, que ocorrerá de 28 de fevereiro a 11 de março deste ano, em Nova Iorque, EUA.
A CSW pretende avaliar o que foi feito desde a Conferência de Beijing, onde foi definida a Plataforma de Ação Mundial (aprovada por mais de 180 países), pela qual poderiam e/ou deveriam se guiar políticas públicas e iniciativas de garantia dos direitos das mulheres e da promoção da equidade de gênero. Na "Declaração Política" adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em sua 23ª sessão especial, em junho de 2000, os países-membros concordaram em "avaliar regularmente a implementação da Plataforma para Ação, de Beijing, tendo como foco reunir, em 2005, todas as partes envolvidas, para avaliar o progresso e a apropriação das novas iniciativas, dez anos depois da adoção da Plataforma para Ação".
No Brasil, a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), constituída a partir da articulação dos movimentos de mulheres no processo preparatório para a Conferência de Beijing, divulgou em 2004 um documento no qual reafirma seu compromisso com os princípios e ações propostos na Plataforma de Ação e se posiciona contrária a qualquer forma de revisão. As feministas são a favor – isto, sim – de que se avalie o que foi feito pelos governos signatários do documento nos últimos dez anos e que se promovam ações no sentido de garantir que a Plataforma de Ação seja implementada.
Batalha internacional
Segundo Carla Batista, secretária-adjunta da AMB e integrante do Comitê de Seguimento de Beijing+10 da América Latina e do Caribe, há uma grande apreensão sobre como os EUA vão atuar na CSW. As feministas se preparam para uma batalha internacional. "Beijing+10 pode ter um quadro difícil para os movimentos de mulheres, pois os EUA querem reabrir as negociações em torno da Plataforma, em especial com relação ao campo de diretos sexuais e reprodutivos, como nas questões do aborto e dos direitos dos homossexuais. Os EUA sempre estiveram isolados no processo de Beijing, mas dessa vez podem pressionar outros países ameaçando embargos econômicos".
A pressão dos EUA pode ganhar força pelo cenário encontrado hoje, bem diferente do de dez anos atrás. "Os anos 90 foram um período marcante de mobilização. Foram realizadas diversas conferências importantes. Agora o cenário é outro. É uma época de descrédito das Nações Unidas", diz Carla.
A possibilidade de reabertura dos acordos da Plataforma é uma verdadeira ameaça aos direitos humanos, segundo Guacira Oliveira, integrante do colegiado diretor do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea). Por esse motivo, é fundamental que haja um trabalho forte contra o retrocesso. "Há dez anos a ONU vivia um momento de fortalecimento; hoje está fragilizada (pelos processos de guerra etc.). Nesse contexto, buscar que não haja retrocesso na Plataforma já é um horizonte. Vai ser difícil conseguirmos algum avanço. Mas é fundamental irmos para lá para reafirmar os direitos humanos."
Guacira Oliveira destaca a mudança de posicionamento de outros países da América Latina, resultado do esforço dos movimentos de mulheres. "Na IX Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe (2004), vimos que muitos países, onde os governos há dez anos eram retrógrados, comprometidos com o Vaticano, hoje estão mais comprometidos com os direitos das mulheres."
Na conferência a que se refere Guacira, que aconteceu em junho de 2004, na capital do México, foram divulgados dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) que apontam que, na América Latina, a pobreza atinge principalmente as mulheres. Entre outros dados, a Cepal informa que: 46% das mulheres latino-americanas maiores de 15 anos não têm renda própria, enquanto somente um entre cada cinco homens está nessa situação (21%); a renda per capita dos lares comandados por mulheres é menor do que os lares encabeçados por um homem; 48% das mulheres entre 20 e 24 anos de idade estão inativas.
Avanços e retrocessos
O Brasil, segundo Carla Batista, tem tido um comportamento progressista em relação as direitos das mulheres, e em Beijing+10 não deve ser diferente. "O governo brasileiro tem se posicionado de acordo com o que tem proposto o movimento feminista", diz.
Carla lembra que a Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, realizada em 2004, e a elaboração do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres foram marcos importantes de implementação da Plataforma no Brasil, mas que é preciso haver recursos para efetivar as ações previstas e não deixar os setores conservadores e religiosos interferirem nas políticas para as mulheres. "Esses setores têm feito um trabalho pesado para reverter o que nós conseguimos até hoje", afirma.
Embora sejam limitados, os avanços no Brasil aconteceram principalmente em razão da Plataforma de Ação de Beijing, reforça Carla. "A Plataforma é muito abrangente e, em alguns pontos, o Brasil avançou bastante. Reconheceu, por exemplo, que os governos devem trabalhar cada vez mais no sentido de diminuir as restrições ao aborto, que nenhuma mulher deve ficar sem atendimento médico e ser punida nessa situação. Reconheceu ainda que também existe violência sexual dentro do casamento. O aumento da participação das mulheres na política, a partir do estabelecimento de cotas, também é uma das grandes conquistas decorrentes da Plataforma de Beijing."
Guacira Oliveira, que esteve na Conferência de Beijing, avalia que os avanços no Brasil estão muito aquém do que se esperava há dez anos. "Havia uma expectativa muito grande de que a Plataforma fosse mais do que uma declaração das Nações Unidas, que tivesse uma base real para se efetivar e que houvesse um movimento que sustentasse essa agenda. Fizemos uma conferência nacional preparatória para Beijing e reuniões em todos os estados. Foram 300 mulheres brasileiras para a China".
Em 2000 (Beijing+5), no entanto, houve uma avaliação muito crítica sobre a implementação da plataforma acordada na capital chinesa. "Em Beijing foi gerada uma plataforma que, se implementada, poderia produzir transformações importantes. Mas, em 2000, o Brasil não tinha avançado em quase nada. Não havia mecanismos institucionais e recursos que favorecessem as questões de gênero. Onde tinha avançado um pouco, foi por causa da grande mobilização das mulheres. Por isso insistimos no debate sobre a transversalidade das questões de gênero nas políticas públicas, em enfatizar a necessidade mecanismos de empoderamento das mulheres e de recursos para isto. Criticamos também a ONU, por ter destinado poucos recursos para as questões de gênero, pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem), e pela incompatibilidade de projetos elaborados sem o compromisso com a Plataforma", conta Guacira.
Para ela, os retrocessos foram muitos nesses dez anos, embora o governo atual tenha dado alguns sinais de avanço - que, no entanto, deveriam ter acontecido há muito mais tempo. "Nesse governo, houve algumas iniciativas, como a criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e a elaboração do Plano Nacional, mas a situação das mulheres ainda não mudou de forma significativa. Hoje, tem mais mulheres desempregadas do que há dez anos. O número de mulheres pobres também aumentou. Os recursos para políticas de gênero ainda são poucos", conclui.
As questões da violência doméstica e da violência racial também não foram trabalhadas neste governo, aponta Alzira Rufino, coordenadora geral da Casa de Cultura da Mulher Negra (CCMN). "Tinha que ter mais vontade política para elaborar políticas, leis, campanhas e outras ações", critica.
Mobilização dos movimentos
A CCMN tem ajudado a divulgar o processo preparatório para Beijing+10 para que as mulheres se apropriem das informações relacionadas ao assunto e para que os diversos grupos se articulem e intervenham mais no processo. A coordenadora do CCMN enfatiza a necessidade de mobilizar mais mulheres negras para que em Beijing+10 as especificidades desse grupo sejam mais marcadas. "Em Beijing houve pouca visibilidade das mulheres negras. Queremos aumentar isso", afirma Alzira.
Um dos principais pontos discutidos na reunião do Comitê Internacional de Seguimento de Beijing+10, realizada em Nova Jersey, EUA, em dezembro, para discutir estratégias conjuntas, foi a necessidade de mobilizar o maior número possível de mulheres de diferentes movimentos e prepará-las para intervirem em Beijing+10.
"Debatemos a importância de se garantir o respeito às diferenças e incorporá-las a tudo o que fazemos, e de se reduzir a distância entre o feminismo clássico, consolidado, com outros grupos que também são protagonistas na luta das mulheres, como as mulheres sindicais, rurais, negras, índias etc.", conta Nilza Iraci, que participou da reunião do comitê internacional.
Coordenadora executiva do Geledés - Instituto da Mulher Negra e da Articulação de ONGs de Mulheres Negras Brasileiras e integrante do Comitê de Seguimento de Beijing+10 da América Latina e do Caribe, Nilza conta ainda que os comitês debateram a necessidade de incorporação de diversas questões, como paz e segurança, a conexão entre o global e o local, homofobia, racismo etc., por todos os movimentos feministas.
O Comitê de Seguimento de Beijing+10 da América Latina e do Caribe aproveitará a presença de representantes dos movimentos de mulheres no V Fórum Social Mundial, em Porto Alegre (RS), para se organizar, articular-se e definir, em uma reunião no dia 28 de janeiro, as estratégias de participação na sessão da ONU.
A delegação de mulheres brasileiras que irá para a 49ª CSW deverá ser bem menor do que a que foi para Pequim, segundo Carla Batista. "Os processos nacionais têm demandado muito do movimento de mulheres e têm trazido mais retorno do que os processos globais, como as conferências da ONU. Mas o trabalho para o não-recuo dos avanços em NY será intenso", garante.
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