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"A mulher com HIV/Aids também tem o direito de ser mãe"

Autor original: Mariana Loiola

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A mulher com HIV/Aids também tem o direito de ser mãe


O Projeto de lei que propõe a concessão gratuita de ligadura de trompas para gestantes soropositivas não leva em consideração o direito da mulher soropositiva de ser mãe, segundo José Carlos Veloso, diretor-presidente do Grupo de Apoio à Prevenção à Aids - São Paulo (Gapa-SP) e um dos coordenadores da Rede Gapa. De autoria do deputado gaúcho Enio Bacci (PDT), o PL 4393/04 tem como objetivo colaborar com a redução do nascimento de mais crianças soropositivas no Brasil. O projeto tramita em caráter conclusivo na Câmara dos Deputados.

A Rede Gapa, composta por 17 organizações não-governamentais que trabalham a questão da convivência com o HIV/Aids e o combate à epidemia, escreveu um Manifesto de Repúdio ao PL. O texto cita a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Constituição Federal e a Declaração de Compromisso sobre HIV/Aids da Sessão Especial das Nações Unidas sobre HIV/Aids para reforçar a posição contrária à proposta.

Para o coordenador da Rede Gapa, o projeto é preconceituoso por partir do princípio de que a mulher soropositiva não pode ter filhos. "Seria como dizer que uma pessoa com diabetes, que é uma doença hereditária, não pode ter filhos", compara. Veloso ressalta que o projeto não leva em consideração todas as ações já desenvolvidas nesta área, como, por exemplo, o tratamento disponível na rede pública hospitalar que diminui em até 95% as chances de a criança nascer infectada com o vírus da Aids.

Rets - O manifesto afirma que o Projeto de Lei 4393/04, de autoria do deputado Enio Bacci (PDT-RS), "fere todos os princípios de liberdade do ser humano e da constituição de família assegurados na Constituição Federal Brasileira e em todos os pactos internacionais". Quais são esses princípios?

José Carlos Veloso - Nós estamos falando em princípios de direitos humanos, no direito à livre escolha, no acesso a saúde e tratamento, educação, lazer, trabalho, entre tantos outros que visam a melhorar a qualidade de vida do cidadão. Já tivemos várias experiências sem grandes sucessos envolvendo a esterilização de mulheres em idade reprodutiva em nosso país, principalmente na década de 70 e 80, sem haver discussão com o movimento feminista e a sociedade civil. Muitas mulheres que foram esterilizadas depois quiseram ter filhos e não puderam mais. O controle da Aids deve ser feito de uma forma não-preconceituosa, garantindo a autonomia das mulheres e com a participação dos próprios envolvidos na questão de HIV/Aids.

Rets – Mas, segundo o projeto, a laqueadura seria feita "mediante consentimento"...

José Carlos Veloso - O que estamos questionando é a ideologia do projeto. Parte do princípio de que a pessoa soropositiva não pode ter filhos. Seria como dizer que uma pessoa com diabetes, que é uma doença hereditária, não pode ter filhos. Por que não implementar os métodos terapêuticos que já existem?

Rets - Que implicações poderia ter a aprovação desse projeto?

José Carlos Veloso - No mínimo, o projeto de lei não leva em consideração todas as ações já desenvolvidas nesta área. Hoje existe disponível um tratamento preventivo com as gestantes com HIV+, isto é, as mulheres soropositivas grávidas têm tratamento disponível na rede pública hospitalar que diminui em até 95% as chances de a criança nascer infectada com o vírus da Aids. Esse tratamento pode ser feito durante a gravidez. Também existem técnicas preventivas para durante o parto. Isso tudo disponível na rede pública.

Além disso, o projeto é preconceituoso, pois passa a idéia de que as gestantes soropositivas estão proliferando o HIV no mundo. Essa é uma discussão que tem ocorrido no Brasil e no mundo todo, pois os medicamentos têm melhorado a qualidade de vida das pessoas soropositivas, que querem continuar as suas vidas, ter filhos etc. A mulher com HIV/Aids também tem o direito de ser mãe.

Rets - O projeto afirma ter por objetivo "colaborar com a diminuição do nascimento de mais crianças soropositivas" e evitar a "a continuidade de proliferação, enquanto não houver a erradicação e cura definitiva desta doença". Esta medida já foi considerada pelas instituições que atuam nesta área para combater a Aids? Por quê?

José Carlos Veloso - Acho que, em primeiro lugar, temos que levar em consideração o direito da mulher soropositiva de ser mãe, assim como o pai também (muitas vezes é uma decisão do casal ter filhos), até porque hoje vivemos em uma época em que as pessoas com HIV estão conquistando espaços, que antes haviam perdido. É claro que ainda existe muito preconceito, mas o movimento organizado de luta contra a Aids no Brasil batalha contra isso, inclusive contra projetos como esse, que não leva em conta a autonomia das pessoas soropositivas tratando-as como lixo humano. Acho que poderíamos - Legislativo, Executivo e sociedade civil - trabalhar no sentido de aumentar a oferta de serviços especializados na rede pública, inclusive de reprodução assistida para mulheres com HIV+, questão que pouco a pouco vem sendo discutida pelos movimentos sociais. Se a mulher soropositiva tem o direito de ser mãe, também deve ter direito às novas tecnologias e à reprodução assistida.

Rets - Segundo o projeto, as gestantes com HIV/Aids, em sua maioria, "não se conscientizam da gravidade e do risco da situação em que se encontram principalmente considerando a realidade socioeconômica. Há de se considerar também a pouca ou nenhuma instrução da maioria destas mulheres, e face a esta condição, novamente ficam grávidas, e assim geram mais filhos vítimas desta terrível doença que assola a humanidade." Ao invés de laqueadura gratuita, que tipo de orientação devem ter essas mulheres, na sua opinião?

José Carlos Veloso - Na verdade não são as mulheres com HIV+ que não se conscientizam, mas o problema é que na maioria das vezes as mulheres descobrem a soropositividade durante a gravidez. Quando ela já sabe da soropositividade, faz uso dos tratamentos existentes que têm se mostrado muito eficazes. Então, as taxas de infecção de crianças durante e na hora do parto são muito baixas, não justificam um projeto de lei desse gênero.

Temos ainda que garantir os cuidados pós-parto, ou seja, a não-amamentação com leite materno da própria mãe soropositiva. Talvez um projeto de lei que pudesse melhorar os bancos de leite já existentes e possibilitar a formação de outros fosse mais útil.

Rets - Têm ocorrido ações nesse sentido? O que falta ser feito?

José Carlos Veloso - Na maioria dos serviços de DST HIV/Aids, existem grupos de mulheres e profissionais de saúde que discutem a questão. O próprio movimento organizado de mulheres soropositivas já discute isso no Brasil com o poder público. Então, ações estão sendo feitas, mas são ações que visam também à autonomia das mulheres soropositivas enquanto cidadãs e donas de suas histórias.

Rets - Quais são os papéis dos governos e da sociedade civil em relação a essa questão?

José Carlos Veloso - O papel é de parceria. Para isso existem instâncias de controle social, os conselhos municipais, estaduais e nacional de saúde e as comissões técnicas que tratam de temas como HIV/Aids e controle da natalidade, com a participação efetiva da sociedade civil organizada.

Mariana Loiola

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