Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
![]() | ![]() |
São 2.800 km de um curso de água que leva vida para a população sertaneja e, ultimamente, polêmica para a sociedade brasileira. O projeto de transposição das águas do rio São Francisco esbarra no atropelo da sua condução e na forte resistência de variados setores. A justificativa do governo é levar água às pessoas que sofrem com a seca no semi-árido nordestino, ajudando assim muitos moradores desses locais a escaparem da pobreza. A interpretação de quem se opõe ao projeto é de que ele pretende, na verdade, favorecer a irrigação de grandes áreas privadas de agricultura e o cultivo de camarão em larga escala para exportação.
Com o nome oficial de Projeto de Integração da Bacia do Rio São Francisco às Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional, a iniciativa pretende, segundo o governo federal, levar água a mais de 12 milhões de pessoas que convivem “com os problemas decorrentes da escassez e da irregularidade das chuvas”. O executor do projeto, o Ministério da Integração Nacional (MIN), assegura que o leito d’água vai continuar no mesmo curso que sempre teve. “Só uma pequena parte do seu volume – ou seja, apenas 1% da água que ele joga no mar – vai ser captada para garantir o consumo humano e animal na região do semi-árido nordestino, onde vivem 12 milhões de pessoas. Não haverá nenhum problema ambiental para o São Francisco ou para qualquer atividade econômica que hoje se desenvolve ao longo de seus 2.700 km de extensão. A quantidade de água a ser retirada é, realmente, muito pequena”, assegura a página especial dedicada ao tema no site do MIN.
Não é o que pensam, porém, os opositores do projeto – grupo que envolve desde governos estaduais e municipais até ambientalistas, passando por cientistas, associações comunitárias e profissionais, numerosas organizações não-governamentais e o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (órgão de gestão e planejamento composto por representantes do governo, dos usuários e da sociedade civil organizada). O grande argumento é de que é preciso primeiro revitalizar o rio, antes de desviar o curso de parte de suas águas.
Assim, manifestações públicas vêm ocorrendo, especialmente depois de 17 de janeiro, quando o Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) – órgão ligado ao Ministério do Meio Ambiente – aprovou, em reunião extraordinária, parecer da Agência Nacional de Águas (ANA) que afirma que há quantidade suficiente de água no rio São Francisco para o projeto de integração das bacias. Isso viabilizaria a concessão do uso da água e o licenciamento ambiental para o projeto. A partir daí, puderam ser retomadas sessões públicas organizadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para discutir com a sociedade o relatório de impacto no meio ambiente. Das oito estavam previstas, quatro foram canceladas, em função de protestos nos estados de Minas Gerais, Alagoas, Sergipe e Bahia.
Uma das responsáveis por esse movimento é a recém-surgida Frente Nacional em Defesa do Rio São Francisco, que engloba a Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Sergipe, o Ministério Público, membros da Igreja, da CUT, de governos estaduais e municipais, sindicatos de classe, estudantes e entidades representativas de Sergipe, Alagoas, Bahia e Minas Gerais. Outra entidade que se opõe veementemente ao projeto é o Comitê Gestor da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (instância prevista na Lei Nacional de Recursos Hídricos – lei nº 9.433 –, cabendo a ele, entre outras funções, arbitrar os conflitos relacionados aos recursos hídricos, aprovar o Plano de Recursos Hídricos da bacia e estabelecer critérios e limites para outorga do uso das suas águas).
“Elaboramos o Plano da Bacia do São Francisco, com a participação de 105 técnicos, 15 mil pessoas, com rodadas de consultas. E este documento não foi sequer considerado na sessão do CNRH que aprovou o parecer da ANA. Ou seja, nem foi colocado para a apreciação. Isso é um ponto muito delicado, pois o Comitê é normativo, deliberativo. Compete a ele decidir sobre o uso das águas do rio, e ao CNRH cabe decidir sobre projetos de uso da água. Mas a gestão dos recursos da bacia fica com o Comitê”, indigna-se Luiz Carlos Fontes, da Secretaria Executiva do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco.
O que chama atenção no grupo que se opõe ao projeto de transposição é a heterogeneidade dos atores que têm se levantado para dizer “não” à iniciativa do MIN. Há pessoas tanto de governos municipais e estaduais, membros de organizações ambientalistas, professores universitários, pesquisadores, advogados etc. Só quem parece defender a proposta é o governo federal. “Essa adesão em massa demonstra a conscientização do grave impacto ambiental que ocorrerá caso esta obra faraônica vá em frente e dos malefícios que trará”, avalia Henri Clay Andrade, da Seccional da OAB de Sergipe, que está encabeçando a Frente Nacional em Defesa do Rio São Francisco.
Os argumentos
Os argumentos a favor apontados pela administração Lula dizem que somente uma pequena parte das águas disponíveis será desviada – 26m/s, normalmente, mais um excedente médio de 63m³/s sempre que a represa de Sobradinho estiver cheia ou vertendo – em um rio que tem volume outorgável [que pode ser retirado]total de 360m³/s. Os opositores do projeto lembram, entretanto, que 330m³/s já estão outorgados, restando 30m³/s. Dessa forma, o volume a ser transposto ultrapassaria a quantidade passível de uso.
Outro ponto defendido pelo projeto do MIN é que “há um grande desequilíbrio entre a oferta de água e a população residente no Polígono das Secas: a bacia do São Francisco tem 70% da água e 21% da população do Polígono; já as bacias dos rios intermitentes nos diferentes estados oferecem apenas 20% da água, mas concentram 70% da população da região”, segundo as informações institucionais do Ministério da Integração Nacional.
Este argumento, no entanto, é rapidamente rebatido pelas organizações que protestam contra a obra. Elas lembram que não é questão de presença dos recursos hídricos em uma determinada bacia, mas de distribuição dessa água. “Há pessoas sofrendo com falta d’água a poucos quilômetros do São Francisco. E a transposição não chegará a elas, por exemplo. Além disso, nas bacias que seriam as receptoras das águas desviadas, há recursos hídricos suficientes para abastecer os habitantes dessas regiões. É só questão de distribuir racionalmente. A obra só se justificaria se houvesse escassez do recurso, mas o que há é má distribuição”, defende Fontes.
Para o professor Apolo Lisboa, coordenador do Projeto Manuelzão, ligado à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), “não se pode levar um fator que já é escasso em uma região” – no caso, a água na bacia do São Francisco – “para ser fator de propulsão do consumo e do desenvolvimento econômico de outra região”. O Manuelzão é um dos signatários do manifesto “A transposição das águas do Rio São Francisco – Riscos Previsíveis, Conseqüências Incalculáveis”, lançado em 29 de novembro de 2004 por 210 organizações indignadas com o assunto. Mais adesões estão sendo aceitas desde então.
Um dos pontos nevrálgicos da questão, porém, é a percepção de que o desvio das águas não vai ter como meta principal o consumo humano, mas sim a chegada das águas para a irrigação de grandes áreas privadas e o privilégio do cultivo em larga escala de camarão para exportação. “Podemos perceber esses interesses escusos na própria leitura do EIA/Rima [Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto no Meio Ambiente], que está mal feito. Estão querendo migrar as águas do São Francisco para assuntos privados. Dessa forma, essa transposição seria um golpe fatal no Velho Chico”, enfatiza Andrade. “Isso está tão claro que o próprio governo já está admitindo isso”, diz.
Para ele, existem três pontos que precisam ser analisados: a transposição só é justificável se for para consumo humano. Mesmo que seja para consumo humano, a bacia “doadora” precisa ter água suficiente para que seja retirada uma parte disso – “e já há estudos que demonstram que não há”, diz. Além disso, mesmo que a transposição seja para consumo humano e haja água suficiente para tal na bacia doadora, a obra só deve ser feita se a bacia receptora não tiver água para satisfazer as necessidades, inclusive a de consumo humano, dos seus habitantes. “E não podemos afirmar isso. O EIA/Rima está inconclusivo. E há dados que indicam que as bacias que seriam receptoras neste projeto têm águas suficientes para abastecer para sua população, se melhores distribuídas”. “Mais de 70% da água transposta iriam para irrigação de grandes projetos agrícolas. Além disso, querem começar a obra logo, pois acreditam que, uma vez iniciada, será mais difícil parar, sob o argumento de que dinheiro público teria sido jogado fora. É a obra pela obra. A impressão que se tem é que o governo está querendo, ao privilegiar as elites e fazer a farra de empreiteiras, garantir verba para a reeleição. Parece que a racionalidade não vale nada”, diz Lisboa.
Iraque, Transamazônica e estelionato
No entanto talvez o mais repetido argumento, que os representantes da sociedade civil neste debate lembram à exaustão, é a necessidade de fazer a recuperação do leito do Velho Chico antes de pensar em retirar suas águas. É a já famosa revitalização. O raciocínio é simples: se o leito já está ruim, retirar água só fará piorar – ou, ainda, acabar com o rio. “O São Francisco já está degradado, existe um problema grave de vazão. Independentemente de ser feita ou não a transposição, existe algo mais urgente: a revitalização”, defende Andrade.
Os críticos do projeto mencionam os valores separados para a transposição, nem superiores ao necessário para a revitalização. Para início das obras de transposição, seriam investidos R$ 600 milhões. No total, a obra custaria R$ 4,5 bilhões. Há quem acredite que o valor real passará dos R$ 10 bi, em virtude de gastos a serem feitos depois de a infra-estrutura estar pronta. Para a revitalização – que o governo afirma já estar fazendo – foram destinados R$ 26 milhões em 2004. Neste ano, serão R$ 100 milhões.
“A revitalização precisaria de R$ 5,2 bilhões ao longo de dez anos”, diz Fontes, do Comitê de Gestão da Bacia do São Francisco. “Não negamos a transposição de forma sumária, total. O que criticamos é ela ser feita deste modo, nesse processo” – diz - “Se for feita assim, vai se confirmar como a versão tecnológica, atualizada, da indústria da seca. É o maior estelionato das águas que o Brasil já viu”, continua.
Lisboa, do Projeto Manuelzão, acredita que o orçamento apresentado pelo governo seja inferior ao que de fato será gasto. “Estão omitindo custos conseqüentes ao início das obras. Se o governo insistir em fazer do modo como está, será uma segunda Transamazônica. É capaz de os gastos ultrapassarem os U$ 5,5 [cerca de R$ 13 bilhões]. Será o Iraque do governo Lula”.
A intenção do Executivo era iniciar as obras da transposição já em maio, tendo sido realizadas as sessões públicas de debates do EIA/Rima. Como metade das que estavam previstas não aconteceu, a expectativa é de que o governo recue e paralise o processo. “Tem que paralisar. É necessário que recue mesmo”, diz Lisboa. O representante da OAB Sergipe e da Frente Nacional em Defesa do SF também acredita que o caminho será esse. “Nosso primeiro objetivo com as manifestações nas audiências públicas do Ibama foi comprido: não ocorrer o andamento deste processo. O segundo é promover o debate nacional sobre o assunto e sensibilizar para que haja realmente um recuo”, afirma Henri Clay Andrade.
No entanto, na quinta-feira, 3 de fevereiro, um dia após o cancelamento da última audiência (que aconteceria em Maceió, AL), o coordenador do Projeto do Rio São Francisco no MIN, Pedro Brito, afirmou que o cronograma não deverá ser modificado. Do outro lado, Andrade avisa: “Estamos mobilizados, em compasso de espera, aguardando a próxima ação do governo”.
Ou seja: até maio, muitas águas vão rolar.
Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer