Autor original: Fausto Rêgo
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Os ventos do Fórum Social Mundial sopram em direção ao mundo árabe. E Marrocos é uma provável escala da próxima edição, que será realizada simultaneamente em países e continentes diferentes. Membro do Conselho Internacional do FSM, o sociólogo Cândido Grzybowski falou com exclusividade à Rets para fazer um balanço do evento e revelou o que está por trás dessa aproximação: "Hoje a questão árabe, o choque de civilizações, tudo isso está no centro. Precisamos, responsavelmente, dar uma cara civil a esse debate, não deixar guerreiros tratarem disso. Nem terroristas fundamentalistas, de um lado, nem Estados fundamentalistas terroristas, de outro".
Em relação à candidatura venezuelana para sediar um dos fóruns paralelos do ano que vem, Cândido conta que o Conselho Hemisférico tem autonomia para decidir - e já teria decidido. "Vai sair algo na Venezuela", garante, embora outro integrante do Conselho, Francisco Whitaker, tenha dito que nada ainda está confirmado. A questão, na verdade, é polêmica – e Grzybowski admite: "É um tema quente, controvertido, não vou esconder isso. Mas é legítimo ser controvertido e é legítimo fazer na Venezuela".
A decisão definitiva sobre as sedes do próximo Fórum será tomada em abril, na reunião que o Conselho Internacional fará na Holanda. Certo mesmo é que em 2007 o FSM volta a ser unificado e terá sua sede na África.
Sobre este quinto Fórum Social Mundial realizado em Porto Alegre, a opinião de Cândido Grzybowski é que foi vibrante e grandioso. Os números oficiais contabilizam um total de 155 mil participantes de 135 países, dos quais 35 mil estiveram no espaço do Acampamento da Juventude. Quanto a comparações recorrentes com Woodstock [célebre festival de rock realizado nos Estados Unidos, em 1969], reage tranqüilamente. "Não me incomodo", afirma. "Há várias formas de fazer ação política, e é bom que resgatemos esse lado de festival no Fórum, mas é preciso entrar aqui pra saber que não é isso. Agora, nada como fazer política com alegria".
Rets – Que balanço você faz deste 5º Fórum Social Mundial e das críticas feitas ao evento? Houve, por exemplo, uma comparação recorrente com Woodstock.
Cândido Grzybowski – Não me incomodo que seja até parecido com Woodstock. Woodstock é uma marca de mudança de comportamento fundamental na minha geração. Há várias formas de fazer ação política, e é bom que resgatemos esse lado de festival no Fórum, mas é preciso entrar aqui pra saber que não é isso. Mesmo dentro do Acampamento [da Juventude], tem coisas incríveis que aconteceram. Mas, é claro, aparentemente é festa. Agora, nada como fazer política com alegria.
Fizemos um esforço de distribuir palcos por todo o espaço do território e ter eventos simultâneos quase todo o tempo. Estimulamos o lado cultural porque é uma forma de expressão, de afirmação da identidade. Os indígenas não têm o nosso discurso, então é difícil participarem de um debate sobre multilateralismo. Mas a questão do multilateralismo é dos povos indígenas também, então como é que você faz? Tem que dar vazão a essas expressões todas, então acho que acertamos na dose este ano. A gente aprendeu com Mumbai [cidade indiana onde se realizou a edição anterior do FSM] que valia a pena recuperar a cultura e demos esse caráter um pouco mais festivo. Mas é uma afirmação de direitos e de identidade, tem que ser olhado por esse lado. Nós somos assim, as sociedades humanas são assim.
Foi um Fórum vibrante, de muito mais gente, grandioso em termos de números. É difícil organizar uma universidade aberta, ainda mais de forma autogerida. Agora, isso estimulou mais a participação na discussão. Estimulou muito a acreditar na idéia de Paulo Freire, que dizia: "Todos sabem. Vamos trocar". Não tem "os que sabem" e "os que não sabem", isso é a velha cultura.
Rets - E o que ainda pode ser melhorado?
Cândido Grzybowski – O déficit que temos, e aqui ficou evidente, é quanto à memória viva disto. A memória viva é a maneira de ver onde se encaixa o que você fez aqui dentro, pra sentir a importância do que fez. Vamos avançar, vamos recuperar coisas, mas não vamos recuperar a riqueza que tem aqui. Isso vai ficar para as pessoas que voltam com as baterias recarregadas e vão levar adiante. Difundimos via satélite ao menos uma atividade de cada turno, difundimos por Internet tudo que tinha tradução simultânea, mas não é suficiente. É mais rico ainda do que isso, muito mais rico.
Rets - O Fórum Social Mundial, no próximo ano, será realizado simultaneamente em vários países.
Cândido Grzybowski – Por enquanto, só no ano que vem. A decisão para 2007 é um Fórum concentrado.
Rets – Certo, mas não está consolidado ainda em que países. A Venezuela apresentou oficialmente a sua candidatura?
Cândido Grzybowski – A candidatura mais forte, até agora, para um Fórum descentralizado é de Marrocos, que já tinha sido feita antes. Eles formularam uma proposta de ter um Fórum Mundial. E, dada a nossa decisão, vão fazer um dos regionais – chamemos assim – que ocorrem nas mesmas datas de Davos. O que houve com a Venezuela foi o seguinte: o Conselho tem uma dinâmica regional, eles já fizeram um Fórum no ano passado. E como temos o Conselho Internacional, temos o Conselho Hemisférico. Algumas das entidades que estão no Conselho Internacional são parte do Conselho Hemisférico, que incorpora o Comitê Organizador, incorpora outras organizações. Desse Conselho eu não participo, então não sei os debates que houve. Porque é um tema quente, é um tema mais controvertido, não vou esconder isso. Mas é legítimo ser controvertido e é legítimo fazer na Venezuela. E o Conselho Hemisférico tomou a decisão, eles têm autonomia pra fazer isso. Então vai sair algo na Venezuela. E eles propõem não só fazer na Venezuela, mas fazer nas mesmas datas, seguindo a orientação que o Conselho deu. Então já tem um regional que assumiu fazer na mesma data. Seria bom se o Europeu também fizesse assim: as dinâmicas regionais se somam ao mundial, nós teríamos um Fórum em vários lugares. Mas não sei se vai acontecer isso.
Rets – Atualmente já se realizam fóruns regionais. Eles vão continuar, portanto? Não há risco de perderem impacto?
Cândido Grzybowski – Nós não queremos intervir. O Europeu se realiza quase deste tamanho e tem a dinâmica dele, não intervimos em nada. Somos comunicados, informados, participamos, muitos do Conselho daqui são do Conselho de lá. Eles, agora, vão pra Grécia, é uma decisão que já tinha sido tomada. É autônomo esse processo. A única coisa em comum é a Carta de Princípios. Cada um pode decidir, aqui podem decidir fazer um Fórum local. O Fórum Social Nordestino é uma decisão de organizações brasileiras. Fizeram um Fórum no Nordeste, não foram pedir autorização pra ninguém. Claro que gostaríamos de tornar evidente pro mundo. Acho que mais de cem fóruns foram realizados nesse último ano, mas, se você me perguntar onde, eu não saberia chegar aos cem. Nos Estados Unidos se realizou um Fórum, em Boston. Mas quem sabe disso?
São processos muito autônomos, e é bom que seja assim. O Conselho Internacional lida com a facilitação do Fórum Mundial. E a sua decisão é de que esse Mundial tem de se expandir para áreas em que não estamos. O esforço por trás disso é que estamos querendo entrar no mundo árabe. Nós assim interpretamos Marrocos. Claro que gera tensão com os africanos, porque ao mesmo tempo nós, ocidentais, chamamos aquilo de África. Só que é uma imposição ocidental, a história não é assim. Aquilo é parte da cultura árabe, inclusive em termos de religião. Mas hoje a questão árabe, o choque de civilizações, tudo isso está no centro. Precisamos, responsavelmente, dar uma cara civil a esse debate, não deixar guerreiros tratarem disso. Nem terroristas fundamentalistas, de um lado, nem Estados fundamentalistas terroristas, de outro – e é assim que está o debate. É a destruição de toda uma história, de uma civilização, que está em jogo. Esse é um desafio.
Quanto ao Caribe, tem uma dinâmica de sociedade civil, mas são países pequenos, pobres. Eles vêm aqui, mas é longe, é caro. Então fortalecer o processo ali é bom. Venezuela é uma opção pra eles.
Rets – O sociólogo português Boaventura Santos disse aqui no FSM que os países pobres do Sul, que mais precisam do Fórum, não conseguem participar. Essa mudança poderia resolver o problema?
Cândido Grzybowski – É essa a idéia. O Leste Europeu, você viu alguém de lá aqui? E o fundão lá da Ásia, que é metade da humanidade? Está faltando! Temos os países mais ricos: Austrália, Coréia, Japão... e China? Vimos quantos chineses aqui? No nosso horizonte, temos de entrar na China, que é a sociedade mais desigual que estamos produzindo hoje. Temos que fortalecer o processo lá.
Tomamos a Índia, por exemplo: ela, sozinha, é o dobro da América Latina toda, em população. Sair de Mumbai pra [Nova] Déli é como ir daqui pra Venezuela – em termos de população, não em termos de território. Não é um novo Fórum? Só que pra nós fica: “Ah, é de novo na Índia!”. São desafios que não dá pra tratar como aqui. Pra nós, no Brasil, ir pra Recife é ficar no mesmo. Não é o mesmo num país como a Índia. Ou ir a Bangladesh... quantos de Bangladesh tem aqui? Alguns, porque os indianos têm contatos, nos ajudaram, tínhamos um fundo de solidariedade pra trazer.
A gente tinha planejado fazer um ano aqui, um ano fora. Mas os africanos não querem fazer em 2006, e isso criou um buraco. Daí tentamos nos dar um bom desafio.
Rets – Este ano, o Fórum Econômico de Davos, que é o contraponto do Fórum Social Mundial, decidiu discutir a pobreza. Você vê isso como uma conseqüência do FSM?
Cândido Grzybowski – Claro! A nossa presença como movimento ascendente no mundo fez mudar a agenda dos governantes do Fórum Econômico Mundial. Eles têm de considerar os problemas. Há poucos anos, só falava-se em negócios, em investimentos, em crescimento da economia. Agora estão sendo obrigados a discutir pobreza, terrorismo. Eles são “anti”, hoje. Não nós.
Rets – Os participantes do Fórum enfrentaram um certo desconforto com o calor e alguns aspectos da estrutura deixaram a desejar. É certo que existem dificuldades de financiamento e também depende-se muito do trabalho voluntário, mas há como evoluir um pouco em relação a isso?
Cândido Grzybowski – É uma preocupação, só que El Niño [fenômeno climático que provoca alterações nas temperaturas habituais do planeta] foi contra nós. Normalmente Porto Alegre é quente, sim, mas pode haver chuvas nessa época do ano, o que facilitaria um pouco. E, claro, nós aqui tivemos que inventar tudo. Então vários problemas surgiram sem a gente imaginar. Isso dificulta.
O que vamos conseguir depende de uma engenharia financeira. Estou muito engajado em comissões de Temática e Metodologia e na Comissão de Finanças – sempre levantei fundos para o Fórum. E há uma idéia que a gente vem discutindo e agora vai tentar transformar em prática, que é fazer uma campanha para doar o valor de um dia de trabalho de todos que até agora participaram para dar autonomia financeira ao nosso Fórum Social Mundial.
Rets – Seria nos moldes do que fez o Ibase para levar gente das comunidades do Rio de Janeiro a Porto Alegre?
Cândido Grzybowski – É. Porque é uma iniciativa justa. O salário é desigual, então quem ganha R$ 2 por dia dá R$ 2. Quem ganha U$ 200 vai dar U$ 200, essa seria a proposta. Numa estimativa preliminar, se 100 mil pessoas se engajassem, nós levantamos o custo desse Fórum, o que mudaria nossa relação pra chegar num governante só precisando de um complemento – o que não foi o caso aqui. Tivemos que ir lá no Lula e dizer: “Estamos precisando. Você é sensível e tem de nos ajudar”. E nos ajudou.
Claro que a cooperação internaiconal cresceu. Tivemos muito mais dinheiro da cooperação internacional do que da outra vez, porque nossos custos cresceram muito mais.
Rets – Você mencionou há pouco o caso dos povos indígenas. Houve aqui algumas manifestações de líderes indígenas que reivindicavam participação no Comitê Organizador, não se sentiam representados. Há possibilidade de rever a composição desse comitê?
Cândido Grzybowski – Sim. Na medida em que eles são uma rede regional, têm uma Coordenação dos Povos Indígenas, devem apresentar uma candidatura, são eles quem têm de tomar a iniciativa. Eu não sabia dessa reivindicação. Se os encontrasse, diria isso: apresentem candidatura, porque eles têm dez vezes mais chance do que, por exemplo, uma rede do Norte que ainda não está e reivindica também. Porque o Conselho ainda está muito desequilibrado, ainda reflete muito o que foi o Fórum até aqui, muito mais latino-americano, menos indígena e mais outros tipos de movimentos e entidades e muito europeu. E ele é menos africano, menos asiático.
Rets – Um dos comentários mais freqüentes antes deste Fórum era de que ele seria mais propositivo. Isso, na prática, já ocorria, já havia formulação de propostas. O que mudou, então, na prática?
Cândido Grzybowski – Uma coisa é tornar visível a proposta, talvez a gente consiga avançar um pouco. Cabe a quem propôs desenvolver a proposta. Só que umas são grandes campanhas, envolvem muita gente, então vão se tornar mais visíveis. Aqui, por exemplo, está se propondo uma grande mobilização no dia 10 de setembro contra a guerra e a pobreza e por um novo sistema multilateral mais democrático. Será um dia antes do aniversário do 11 de Setembro e quatro dias antes da Cúpula das Nações Unidas, que começa no dia 14.
Uma coisa é esse tipo de proposta, outra é o cara dizer assim: vamos estimular a eco-construção. Isso vai ser, muito provavelmente, de grupos engajados nessa coisa específica. Não vira campanha, não fica tão visível.
Rets – Tivemos, neste ano, as participações do presidente Lula e do presidente Hugo Chávez, da Venezuela. Essa presenças de chefes de Estado deve se repetir nas próximas edições? E acrescentaria: é possível que venham governantes que tenham posições não alinhadas com as propostas do Fórum?
Cândido Grzybowski – Governantes, ministros, responsáveis por instituições multilaterais ou partidos, só por convites do Comitê ou de organizações. Depende da capacidade. Em termos de ministros, estava cheio aqui – até mesmo de outros países, inclusive, que não se tornaram visíveis, não são nossos conhecidos. Em termos de organizações multilaterais também a presença foi ampliada – inclusive, e acho que pela primeira vez participando de debates concretos, Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional.
Agora, o que os governantes têm de entender é que não são eles que fixam a nossa agenda. Eles têm de entender que, se nós os convidamos, é porque nós queremos que se transforme em política o que estamos fazendo. E pra se transformar em política nós temos de conversar, ou vamos na rua "quebrar o pau" pra que eles nos escutem e daí respondam. Portanto governantes sensíveis a esses processos serão visados por nós e pelas organizações que participam para tentar que se implementem as propostas. É essa a intenção.
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