Autor original: Fausto Rêgo
Seção original:
O mundo depois de 2005
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Com a criação da Organização Mundial de Comércio (OMC) em 1994, os países membros assinaram diversos acordos e se comprometeram a alterar as legislações nacionais a fim de adequá-las às regras de comércio internacional. Entre esses está o Trips, que legisla sobre os direitos de propriedade intelectual relativos ao comércio. Alguns países em desenvolvimento de renda média tinham até janeiro de 2005 para ficar em conformidade com as disposições desse acordo e reconhecer patentes para produtos e processos farmacêuticos. O Brasil promulgou a sua lei de patentes em 1996, não se beneficiando do prazo de 10 anos. A Índia, principal fabricante de medicamentos genéricos e matéria-prima para aids, está finalizando o processo de adequação de suas leis às regras de Trips. Isto representa, em termos globais, o mesmo impacto que a indústria brasileira sentiu após a aprovação da lei de patentes. Ou seja, a cópia de moléculas, que permitia a produção de medicamentos genéricos e que constituiu a base do desenvolvimento da indústria farmacêutica indiana, agora se torna quase impossível.
Além disso, esse país passa a patentear os novos produtos farmacêuticos, inviabilizando a compra por países sem capacidades produtivas de fórmulas genéricas desses medicamentos com preços mais acessíveis. Existe também o risco de que alguns medicamentos de marca, patenteados depois de 1995 em outros países e com versões genéricas já comercializadas pela Índia, sejam patenteados nesse país retroativamente, a partir de 2005. Se no passado foi possível conseguir a redução de preços para os tratamentos de aids de mais de US$ 10.000 por paciente/ano para menos de US$ 250 por paciente/ano, graças à produção de genéricos, principalmente da Índia, o atual cenário mundial certamente representará um retrocesso nessas conquistas. Como a patente é concedida por um prazo mínimo de vinte anos, segundo exige o acordo Trips, a indústria farmacêutica de genéricos terá que esperar muito tempo para oferecer seus produtos a preços muito mais baixos, quando comparados com os medicamentos de marca.
Acordos de livre comércio e saúde pública
Para piorar ainda mais a situação, há o efeito negativo das cláusulas dos capítulos de propriedade intelectual dos vários acordos de livre comércio, que se mostram favoráveis apenas aos detentores de patentes. Esses capítulos de propriedade intelectual têm sido quase que impostos pelos países ricos aos países em desenvolvimento. Há todo um movimento internacional, liderado pelas companhias farmacêuticas transnacionais, para fazer com que organismos multilaterais, tais como a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (Ompi) e a própria OMC, estabeleçam regras que reforcem ainda mais os direitos de propriedade intelectual, aumentando o seu monopólio sobre a comercialização dos produtos farmacêuticos.
Por que a Declaração de Doha está sendo aniquilada?
O cenário acima descrito aponta para o retrocesso dos tímidos avanços nas negociações que visam o equilíbrio entre comércio e saúde, entre os países da OMC, que culminaram com a Declaração de Doha sobre a saúde pública e acesso a medicamentos, de 2001. Com a assinatura dessa Declaração, esses países concordaram que a saúde pública deve ter primazia sobre os interesses comerciais, recomendando o uso, entre outros mecanismos, do licenciamento compulsório (conhecido como quebra de patentes), para que os países em desenvolvimento consigam suprir suas necessidades de medicamentos com preços acessíveis.
Com vistas a minimizar os impactos negativos desses níveis altíssimos de proteção patentária sobre o acesso a medicamentos em todos os países em desenvolvimento a partir de janeiro de 2005, foi negociada, no âmbito da OMC, a “Resolução de 30 de agosto de 2003”, como uma tentativa de implementar a Declaração de Doha. Por meio dela, pretendeu-se viabilizar a Licença Compulsória em países em desenvolvimento. Mas tal resolução é tão imbricada, que mais parece uma forma de coibir a re-importação de fármacos, risco muito temido pelas transnacionais, do que uma solução para evitar abusos de monopólios e ampliar o acesso. Dada a sua complexidade, é pouco provável que a maioria dos países, que necessitam de medicamentos mais baratos, consiga implementar essa resolução. Além disso, ela não terá como resultado uma queda significativa de preços.
O papel da OMS na pré-qualificação dos genéricos para aids, TB e malária
Como se não bastasse este cenário sombrio, a Organização Mundial da Saúde (OMS) está falhando na sua missão de ampliar e fortalecer o mecanismo de pré-qualificação dos medicamentos. Por meio desse mecanismo, a qualidade dos medicamentos produzidos pela indústria de genéricos é assegurada de acordo com os padrões internacionalmente estabelecidos. O projeto de pré-qualificação da OMS foi criado para auxiliar os governos de países vítimas de endemias e os organismos internacionais que compram medicamentos. Com verdadeira vontade política, a OMS poderia contribuir significativamente para que os medicamentos genéricos estejam menos expostos aos constantes ataques com relação à sua suposta baixa qualidade, feitos pela indústria transnacional disposta a tudo para a manutenção dos monopólios. Mas os atrasos no projeto de pré-qualificação evidenciam, claramente, a falta de decisão política por parte da OMS, que tem a obrigação de contribuir para um melhor acesso de todas as pessoas aos medicamentos que podem salvar suas vidas.
A saúde e a vida não estão à venda!
Esse mundo de monopólios, no qual o lucro tem primazia sobre a vida não é o mundo possível pelo qual a sociedade civil internacional vem lutando. A saúde deve ser reconhecida como direito universal e fundamental e as políticas públicas precisam ser elaboradas para promover acesso aos medicamentos, com qualidade e preços justos. Os genéricos de medicamentos novos estão agonizando lentamente, e sua morte vem sendo respaldada pelos acordos internacionais assinados por todos os dirigentes do planeta. Soluções criativas e radicais devem ser negociadas em todos os níveis de poder, para assegurar o interesse público e a dignidade humana.
Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip)
Articulação “Um mundo, uma luta”
Conselho Latino-americano e Caribenho de Serviços e Organizações de Aids (Laccaso)
Rede dos Grupos de Apoio e Prevenção à Aids (Rede Gapas)
Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia)
Action Aid Brasil
Ação Cidadã Contra Sida (Venezuela)
AVE de México
Apoio: Oxfam International
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