Autor original: Mariana Loiola
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Difundida nos últimos Fóruns Sociais Mundiais, a idéia da água como um direito humano, e não um produto a ser comercializado, ganhou nesta edição de 2005 um plano de ação. Durante o debate "Estratégias para aglutinação das redes e organizações em uma plataforma global de água", realizado no último dia do evento (31 de janeiro), diversos grupos – entre eles, a Rede Vida, uma aglomeração interamericana de organizações e pessoas que lutam contra a privatização da água e se dedicam à sua defesa como um direito humano – elaboraram a "Plataforma Global de Luta pela Água". O objetivo principal do debate foi reunir o maior número possível de organizações em uma plataforma comum, adotando princípios e propondo ações conjuntas para 2005 e 2006.
As organizações apontaram as empresas transnacionais, as instituições financeiras internacionais e a Organização Mundial do Comércio (OMC) como principais responsáveis por essas políticas excludentes e de privatização nos países em desenvolvimento e identificaram a necessidade de articulação em escala mundial para reagir contra essas políticas.
"Com a gestão concentrada nas mãos de grandes empresas internacionais, orientadas pelo Banco Mundial, a água tem se tornado cada dia mais um serviço privado e indisponível para a população", alerta o coordenador da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental (capítulo nacional da Rede Vida) e presidente nacional da Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae), Silvano Silvério da Costa.
Trabalhar para que a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheça a água como direito humano, evitar que a água seja discutida na OMC, tentar influenciar a política do Banco Mundial e manter a água nas mãos de empresas públicas são algumas das prioridades apontadas pela plataforma. Uma campanha global contra as empresas transnacionais, como a francesa Suez, que detém parte do comércio de água no mundo, também foi definida como prioridade nos debates.
"Faremos frente a essas empresas, promovendo plebiscitos para definir se a água deve ficar nas mãos delas, mostrando as conseqüências desastrosas de suas ações pelo mundo, acompanhando e denunciando suas ofensivas para promover mais privatizações", afirma a plataforma.
No Brasil, segundo Silvano, a maior ameaça à água pública são as parcerias público-privadas, "uma forma refinada de os setores privados apropriarem-se do mercado do saneamento, sem as responsabilidades inerentes à gestão".
Nesta entrevista, Silvano fala sobre essas questões, cita ainda alguns casos de tentativa de privatização da água nos países em desenvolvimento e de resistências vitoriosas da população e sustenta que "a luta deve se dar no cotidiano, do micro para o macro." O presidente da Assemae acrescenta que não basta pregar contra a privatização da água – "é fundamental alicerçarmos serviços públicos eficientes, que atuem sob o controle da sociedade".
Rets - A Plataforma Global de Luta pela Água não concorda com o termo "recurso hídrico" pelo fato da expressão sugerir que a água seria um recurso a ser apropriado. Você pode explicar melhor essa visão?
Silvano Silvério da Costa - É indispensável que a água seja entendida em todas as suas dimensões: utilitária, cultural, simbólica. A relação da água com o homem, com a sociedade, é indispensável para qualquer tipo de planejamento. Gosto muito da reflexão do professor espanhol Pedro Arrojo, hidrólogo, da Universidade de Zaragoza. Ele é o criador da Fundação por Uma Nova Cultura da Água. Ele salienta que ninguém contempla uma floresta pensando na madeira. Assim funciona com o rio. É preciso vê-lo não como um depósito de água, mas sobretudo como um rico ecossistema, como uma paisagem. O Poder Público muitas vezes banca o desperdício da água, colocando mais recursos de toda a sociedade em novas obras de captação. Concordo com o professor Arrojo quando ele afirma que gerir recursos hídricos não é repartir toda a água que tem no rio. Dessa forma matamos a saúde das águas, rompemos o ciclo hidrológico e o ecossistema.
Rets - No V FSM, representantes de diversas organizações denunciaram as ameaças ao direito de todos à água e aos serviços de saneamento nos países em desenvolvimento e apresentaram casos de resistências vitoriosas das populações contra a privatização da água. Você pode citar alguns destes exemplos?
Silvano Silvério da Costa - Não vivemos somente de denúncias e resistências, mas também de vitórias muito consistentes e significativas. Temos vários exemplos, como o plebiscito convocado pela sociedade civil realizado em outubro de 2004 no Uruguai e que, com 65% de apoio nas urnas, aprovou uma reforma constitucional defendendo a água como bem público e dando um basta às privatizações do setor no país. Em nossa assembléia da Rede Vida, o boliviano Oscar Oliveira, líder da revolta popular conhecida como a "guerra da água" de Cochabamba, uma região carente e com sistema de abastecimento baseado na extração de poços e lagoas, falou sobre os meses de protestos, bloqueios de estradas e muitas manifestações que fizeram em 2000, fazendo com que o governo rompesse o contrato com a empresa norte-americana Bechtel. Julian Peres, da Rede Vida, também contou que a partir de uma nova manifestação popular em El Alto, uma das mais pobres regiões da Bolívia, foi possível reverter outra concessão. Lá não houve a invasão às instalações da Suez, nem mortes ou violência. Foi um protesto pacífico, com a participação da maioria de um milhão de habitantes. Os palestrantes da Rede Vida falaram sobre os impactos da privatização dos serviços de água no Chile e na Argentina, com o aumento das tarifas aos consumidores, piora na qualidade da água e dívidas das empresas que o Estado teve que absorver.
Rets - A privatização, segundo a plataforma, não é a solução para ampliar os serviços de água e saneamento para a população, como defende o Banco Mundial, e sim a gestão pública. Quais são as vantagens da gestão pública da água e que ações práticas deveria haver no Brasil nesse sentido?
Silvano Silvério da Costa - Com a gestão concentrada nas mãos de grandes empresas internacionais, orientadas pelo Banco Mundial, a água tem se tornado a cada dia mais um serviço privado e indisponível para a população. É prioridade da Plataforma atuar pela manutenção da água em mãos públicas e pela criação de uma rede com boas experiências de serviços públicos. Para a população, não basta mais pregar contra a privatização da água. É fundamental alicerçarmos serviços públicos eficientes, que atuem sob o controle da sociedade. No Brasil atual, a maior ameaça à água pública são as parcerias público-privadas, uma forma refinada de os setores privados apropriarem-se do mercado do saneamento, sem as responsabilidades inerentes à gestão. Nós da Assemae, através de estudo contratado do economista João Batista Peixoto [disponível no site da organização, cujo endereço está disponível na área de Links Relacionados, ao lado], conseguimos demonstrar que as PPPs devem aumentar em até 40% as tarifas de saneamento praticadas. Felizmente, o governo do presidente Lula voltou a investir no setor de saneamento e, depois de mais de quatro anos com o setor público impedido de acessar recursos do FGTS, temos agora estes recursos descontingenciados. Nossa estratégia é preservar o aspecto da integralidade do saneamento, conservando sob gestão pública todos os serviços de saneamento, lucrativos ou não, provando que a população precisa da totalidade desses serviços para preservação da saúde, do meio ambiente do desenvolvimento econômico. É possível ter recursos para investimento em saneamento com a melhoria da gestão dos serviços.
Rets - Vocês afirmam que a água deve ser excluída das negociações comerciais a nível mundial. Se não for excluída, que implicações pode haver?
Silvano Silvério da Costa - É fundamental entendermos o conceito de hidropolítica, desenvolvido pelo sociólogo alemão Karl Wittfogel. Como ele, entendemos que o domínio da água é elemento essencial do poder. Os países se organizam a partir da água, desde o seu uso mais básico que é a dessedentação humana, até a irrigação de culturas, a navegação, a produção industrial. A água não está dividida no mundo de modo homogêneo e é distribuída de forma muito desigual em termos socioeconômicos. Por isso, a Plataforma da água quer evitar que a água seja discutida na OMC, para que não se transforme em moeda de troca entre os países. O objetivo é excluir a água de qualquer convenção internacional comercial, como as firmadas pelos blocos econômicos Acordo de Livre Comércio Norte-Americano (Nafta, da sigla em inglês) e Área de Livre Comércio das Américas (Alca). É fundamental retirar todas as relações comerciais que possam existir e retirar a água de qualquer acordo que venha a ser firmado entre países. A água deve contribuir para a solidariedade entre comunidades. O que discutimos é a segurança alimentar, a saúde, a paz e a estabilidade.
Rets - Qual é a importância de a ONU reconhecer a água como um direito humano?
Silvano Silvério da Costa - Em um mundo permanentemente em guerra, a ONU tem um papel fundamental como árbitro de conflitos, especialmente aqueles focados em questões importantes, como segurança alimentar, direitos da infância, moradia e saneamento. A ONU também está ligada à questão do acesso à água desde que estabeleceu, entre as Metas do Milênio, a de reduzir pela metade o número de pessoas que não recebem abastecimento de água até o ano de 2025. Acreditamos que o reconhecimento da ONU é um modo de institucionalizar nossa luta pela água como um direito humano fundamental e divulgá-la como princípio e bandeira em todos os países que têm assento na organização. Importante dizer também que, em outubro de 2003, a Assemae recebeu o Pergaminho de Honra do Programa de Assentamentos Humanos da ONU, o UN-Habitat pela sua luta pela promoção do saneamento nos municípios brasileiros.
Rets - Que instrumentos e instâncias deverão ser utilizados para promover a articulação e mobilização de organizações de todo o mundo em torno dos princípios da plataforma e envolver as populações no assunto?
Silvano Silvério da Costa - Acreditamos ser fundamental tornar cada vez mais públicas as experiências de êxito e dificuldades de todos aqueles que lutam pela água pública. Há uma articulação de intelectuais, acadêmicos e a sociedade civil em torno de uma rede, para sistematizarem as lutas da população contra as iniciativas de privatização do nosso setor, dando ainda mais consistência aos movimentos. Democratizar a imprensa é fundamental para que se torne um importante fórum de discussão sobre o assunto. No Brasil, é preciso arregimentar possíveis aliados como o Ministério Público, associações de bairro, igrejas. A luta deve se dar no cotidiano, do micro para o macro.
Rets - As organizações participantes da plataforma pretendem verificar possibilidades e vantagens em participar ou não do Fórum Mundial da Água em 2006. Quais são as perspectivas para esse Fórum?
Silvano Silvério da Costa - Por princípio, acreditamos que devemos ocupar todos os espaços, falando até mesmo para os públicos e organizadores mais hostis à idéia da água como um bem comum da humanidade. É preciso levar a informação de que o mundo se mobiliza contra a mercantilização da água. Por isso, acho que nossa função é colocar a controvérsia na mesa, provocar o debate, participando do Fórum. Não queremos um Fórum Mundial da Água que simplesmente valide o que defendem as grandes transnacionais da água no mundo, que querem vender a idéia de que, para atingirmos as Metas do Milênio, é fundamental o fomento da participação da iniciativa privada na prestação dos serviços de saneamento. Precisamos, com independência, mostrar alternativas que vão indicar a possibilidade do atingimento de tais metas com o fortalecimento e melhoria dos serviços públicos, com qualidade e com controle social.
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