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Conformismo. Pragmatismo. Mediocridade

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Artigos de opinião

Athayde Motta*

Tenho acompanhado o noticiário e as reações dos diversos setores da sociedade brasileira às atividades dos movimentos negros, especialmente às políticas de cotas para negros no ensino superior. Até um certo ponto, o debate parecia estagnado pela recusa de parcela dos intelectuais brasileiros em perceber as cotas como algo mais do que um simples americanismo por parte de negros incapazes de entender ou aceitar o arranjo racial brasileiro.

Pouco a pouco, a recusa fez-se acompanhar por uma alta dose de fantasia sobre a natureza e o atual estágio do racismo institucional brasileiro. São tantas fantasias sobre este Brasil tão trigueiro... todas ditas com uma linguagem acadêmica pseudo-intelectual que provavelmente está sendo utilizada para dotá-las de “objetividade científica”. A minha favorita? Aquela que diz que as cotas contrariam o “a-racismo” e o “anti-racismo” tradicionais (?!?!) em nossa sociedade e que estariam presentes na Constituição de 1988, onde as palavras raça e racismo aparecem apenas três vezes, sempre no sentido de repudiar a diferença. O que dizer então sobre os sentidos e significados daquilo que não está descrito em palavras de maneira tão... “objetiva”?

E, de repente, vemos o ProUni! A resposta do Governo Lula às demandas dos movimentos negros por acesso à educação de nível superior. Um programa de bolsas de estudo para candidatos carentes que aproveita os assentos vagos das universidades particulares. Ou, em tradução aproximada, “mantenha a negralhada fora das sacrossantas universidades públicas e transfira dinheiro público para a iniciativa privada pelo serviço de concessão de diplomas universitários”. Que tal idéia tenha saído de dentro de um governo petista dá a exata medida do quanto o Brasil está prisioneiro de equívocos e princípios pseudo-democráticos.

Para complicar, o ProUni causa um tipo de reação ainda mais conservadora do que se podia esperar. O artigo “Universidade para poucos” (Hélio Schwartsman, Folha de São Paulo, 13/01/2005) não deixa dúvidas. Enviar os negros e carentes para as péssimas universidades privadas brasileiras e pagar a conta com dinheiro público são problemas principalmente porque se baseiam na idéia “populista” de que a universidade é, ou deveria ser, para todos. Temos que nos conformar, portanto, com a idéia de que a universidade é necessariamente elitista.

Como o governo reage a isto? Com o pragmatismo do presidente Lula, que, em declaração à imprensa (O Globo, 14/01/05), dá um passo para a frente, ao questionar o princípio esquerdista equivocado de que o Estado deve pagar tudo indiscriminadamente para todos, e dez para trás, ao celebrar um programa em que o Estado paga tudo indiscriminadamente para todos e ainda reembolsa a iniciativa privada em um setor onde seus serviços são historicamente ruins.

O resultado da soma do conformismo dos setores formadores de opinião com o pragmatismo equivocado do governo será, obviamente, a mediocridade. Não aquela que seria criada ao desconsiderar-se a meritocracia para permitir a invasão da universidade (pública ou privada) pela negralhada despreparada, mas a manutenção daquela que já existe no ensino superior brasileiro, principalmente no setor público, com suas noções e práticas ultrapassadas de elitismo, meritocracia e excelência acadêmica.

Noções e práticas ultrapassadas, sim, porque encobrem o verdadeiro problema do ensino superior do país: o Brasil precisa de um ensino superior de qualidade comprometido com o desenvolvimento social e econômico do país. Isto não quer dizer instituições elitistas aprisionadas a uma idéia de mérito determinada, na prática, mais pela origem social de professores e alunos do que pela inovação intelectual ou compromisso social. Ao invés deste tipo de universidade, o Brasil precisa de instituições de ensino superior públicas e privadas comprometidas com a busca da qualidade no ensino e na pesquisa combinados à democratização do acesso ao ensino superior. Acima de tudo, o Brasil precisa de uma universidade que acredite que o conhecimento emana de vários lugares na sociedade e deve ser sempre estimulado e compartilhado. E isto o Brasil não tem.

Aceitar e repetir que a instituição “universidade” é necessariamente elitista é uma visão conformista que falha em reconhecer que o a meritocracia atualmente existente no ensino superior não apenas é equivocada, mas é a principal responsável pelo atual “estado da arte” no setor. Portanto, e ao contrário do que Schwartsman escreve, é do interesse do país que o “escol” a constituir a “vanguarda” na universidade seja não apenas o melhor possível, mas também o mais justo e socialmente representativo. É o que fará a diferença entre uma universidade conformada com sua própria mediocridade e uma universidade comprometida em enfrentá-la.

A criação do ProUni pelo governo do PT não ajuda a resolver este problema. Não pelo erro colossal de repassar recursos para a iniciativa privada no setor, mas por praticar um (falso) jogo de dois pesos e duas medidas, no qual a idéia de meritocracia que aleija a universidade pública sequer é considerada para a universidade privada. Que fique bem claro: a questão principal aqui não é negar a presença da iniciativa privada na educação, mas questionar porque não há nem nunca houve uma universidade privada de excelente qualidade na história do país. O debate torto iniciado por Schwartsman provocou a ira de membros de universidades privadas que, obviamente, colocaram a culpa por sua má qualidade nos alunos que sobram após os “bons alunos” das escolas privadas serem absorvidos pelas universidades públicas.

No fim das contas, o maior indicativo da mediocridade dominante no ensino superior é esta forma conformista e pragmática de se relacionar com o alunado. O que a universidade pública acaba por fazer é servir (mal) aqueles que já devem chegar preparados às suas salas, conferindo-lhes apenas legitimidade para manter a desigualdade social. As universidades privadas, em sua maioria, lidam com o “resto” e cobram (bem) por isto. Atribuir sua qualidade precária ao seu alunado é confirmar a visão dominante de que negros e pobres brasileiros são incapazes de aprender e, portanto, não merecem mesmo ir à universidade. Esta universidade que aí está não está preparada para dar ao Brasil condições para educar sua população e promover o desenvolvimento. E o que é pior: não parece estar interessada neste desafio.

Qual será o resultado de um programa como o ProUni em alguns anos? Os indicadores, sem dúvida, irão mostrar um aumento de negros e pobres com diplomas de nível superior. Qualquer previsão além disto é desconsiderar a imensa capacidade da sociedade brasileira em “culturalizar” suas desigualdades. Um exemplo? Por que o ProUni não concede bolsas de estudo para negros e pobres que são cotistas da Uerj ou alunos de universidades públicas? Um resultado imediato do ProUni será o aumento de negros e pobres em universidades privadas ruins e a sua diminuição nas universidades públicas, ou seja, a piora do problema atual. Para conformistas e pragmáticos, medíocres em geral, isto se chama meritocracia. Aos meus ouvidos soa como segregação.

*Athayde Motta é coordenador de Comunicação da organização não-governamental Afirma (www.afirma.org.br), em cuja revista online este artigo foi publicado originalmente.





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