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Em becos e vielas, jornais e criatividade

Autor original: Marcelo Medeiros

Seção original: Os mais interessantes e ativos projetos do Terceiro Setor





Em becos e vielas, jornais e criatividade


“Cadê a merda do meu ônibus?”. A manchete do jornal não esconde seu caráter de inconformismo. Ele é feito por jovens moradores do Jardim Ângela, uma das áreas de renda mais baixa da zona sul de São Paulo (SP). A reportagem revela a precariedade do transporte público na região e a falta de investimentos em melhorias. Outro título alerta: “Salve-se quem puder – a zona sul está cheia de áreas de risco. Morar aqui pode ser perigoso”. A matéria mostra que muitas casas no entorno do bairro podem desabar se nenhuma medida for tomada. São temas recorrentes a quem habita áreas pobres, mas que poucas vezes aparecem na grande imprensa. No jornal Becos e Vielas, entretanto, são sempre tema central. O veículo de comunicação, de cuja terceira edição foram retirados os títulos acima, é um projeto da Ação de Incentivo à Comunicação Papel Jornal, que atua na zona sul paulistana desde 1999.

A entidade ministra oficinas de produção jornalística e outras para incentivar a criatividade dos jovens e melhorar seu nível educacional. As aulas são dadas por profissionais voluntários, que contam com uma infra-estrutura razoável para seus trabalhos. Atualmente, o número de alunos gira em torno de 35. O dado não é exato, pois alguns não conseguem freqüentar todas as aulas durante o curso, que dura dois anos. A seleção é feita sempre ao fim de uma turma e envolve redação, entrevista pessoal e uma dinâmica de grupo para atestar a disposição de participar dos envolvidos.

Há três oficinas voltadas diretamente para o jornal: de reportagem e texto, de diagramação e de fotografia. Cada uma conta com pelo menos um responsável, que dedica três a quatro horas por semana às atividades. Alguns são jornalistas profissionais, que trabalham em grandes jornais da capital, como a Folha de São Paulo. No total, são 11 professores.

Os mestres têm à disposição 16 computadores nos quais são digitados os textos e diagramadas as páginas da publicação. Parte da apuração, quando necessário, também é feita com o auxílio das próprias máquinas, todas conectadas à internet. Para as fotografias, 15 câmeras não-profissionais estão disponíveis. Há ainda um laboratório de revelação de fotos em preto e branco, mas a maioria das imagens é colorida, revelada fora da entidade.

Com esse material já foram produzidas cinco edições, com média de 15 páginas cada em formato A4 e em cores. Não há periodicidade definida. Os jornais são editados de acordo com a disponibilidade de pautas, repórteres e dinheiro para impressão. O primeiro número foi publicado em 2000 e o segundo, apenas no ano seguinte. Em 2002 não houve edição, só retomada em 2003 e em 2004, quando foram lançadas duas publicações. A tiragem tem crescido. O número de estréia teve três mil cópias, ao passo que a última foi distribuída com sete mil exemplares.

Além do Becos e Vielas, também é editado um jornal mural, fruto de uma parceria com o programa Paz nas Escolas, do Ministério da Justiça. Ele tem tiragem de 800 cópias e é colado nos estabelecimentos de ensino da zona sul de São Paulo desde 2002.

As pautas de ambos os veículos são decididas pelos repórteres. Os professores apenas orientam a apuração e a redação, dando dicas de fontes e abordagem de entrevistados e assuntos. Como o jornal pretende ser local, as matérias sempre giram em torno dos problemas que os alunos do curso enfrentam e de soluções para eles. Também há espaço para manifestações culturais, como grafite e dança. A linguagem é leve, para facilitar a leitura, e a diagramação é moderna, para atrair visualmente.

Na edição de 2003, por exemplo, a matéria de capa trata de “consumo consciente”. Diz o editorial: “Vivemos em um mundo capitalista e somos condicionados a ser consumistas. Por isso precisamos usar a inteligência para lutar contra os males do sistema”. Todas as matérias são ilustradas.

Criatividade

Para fazer todas as atividades, é necessário ter criatividade. O estímulo fica por conta do publicitário Glauco Ciasca e do artista Luiz Roberto Rodrigues, o Lopreto, que, interessados pela oficina de jornalismo, decidiram começar uma de história da arte e criatividade. “Há uma necessidade, não só nessas áreas de baixa renda, de criar e saber mais sobre a história da arte”, diz Ciasca. No meio do ano passado, ele começou a dar aulas de três horas de duração, uma vez por semana, para os interessados.

A metodologia justifica o nome da oficina. O publicitário guarda para si alguma das frases produzidas em uma aula em que pediu para os alunos participarem de uma “maratona de escrita”. Cada um tinha que escrever sem parar durante 15 minutos em um rolo de papel higiênico. “Surgiram temas importantes, como violência, amor, música”, lembra Ciasca, que afirma que o maior ganho dessa atividade foi a integração entre os jovens.

Outra aula que chamou atenção foi a de “bagagem cultural”, na qual havia uma mala onde os alunos depositavam objetos pessoais. Antes, porém, eles precisavam contar uma história na qual aquele objeto estava envolvido. Ciasca afirma que um dos momentos marcantes dessa aula foi quando ele próprio narrou a história de um amigo escocês que havia vivido até a adolescência sem luz elétrica. O fato criou rebuliço na classe, que não imaginava ser possível algo do tipo acontecer. O professor lembrou que uma das presentes tinha vindo de um cidade no interior do Nordeste onde também não havia eletricidade e pediu para ela contar como era viver naquela situação. “A menina tinha vergonha do passado, mas com o diálogo passou a se orgulhar. Começou a se ver como vencedora”, comemora.

As aulas não agradam só aos professores. “Achei que o curso de Criatividade foi bem importante, aprendi como se escreve uma poesia, como são as propagandas etc. As aulas eram descontraídas, sempre tinha algo diferente, como se fosse uma brincadeira, e tudo parecia mais fácil. Acho que com esse curso deu para perceber se tenho talento para poesia, por exemplo. Fui me descobrindo. Adorei a proposta da 'bagagem cultural', foi superlegal", diz Elisangela da Silva, de 23 anos.

Ampliação

A Oficina de Criatividade foi a última a ser criada. A idéia da Papel Jornal surgiu quando uma fotógrafa da Folha de São Paulo foi cumprir uma pauta no Jardim Ângela. Enquanto trabalhava, alguns jovens pediam para mexer na câmera. A jornalista disse, então, que poderia ensiná-los a fotografar se reunissem mais alguns amigos. Ela contou a história a alguns colegas, que gostaram da idéia e decidiram ampliar o foco. Assim criaram as oficinas de jornalismo e o próprio jornal.

Além das aulas de jornalismo, há também a de cidadania e a de português – esta em uma parceria com a Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Ambas também são ministradas por voluntários. A idéia agora, porém, é atender mais pessoas, bem como aumentar o acervo da biblioteca local, que possui 800 títulos.

Até 2002, uma parceria com o Instituto Ayrton Senna garantiu as atividades e a compra de equipamentos. Quando o acordo chegou ao fim, a empresa de assessoria de comunicação Máquina de Notícias passou a colaborar financeiramente para que as contas fossem pagas. Esse apoio permanece até hoje, mas não é suficiente para atender o crescimento desejado. A publicação do jornal só está garantida até a metade deste ano, quando termina o apoio da Petrobras ao programa.

“Até agora, sempre dependemos do trabalho voluntário, mas queremos começar a profissionalizar nossas atividades”, diz Alessandro Nery, coordenador-executivo da Papel Jornal. A idéia é atender 150 jovens em todas as oficinas, mas a capacidade física do local onde trabalham é de apenas 40 pessoas. Seria necessário ampliar o espaço e comprar mais equipamentos.

O custo anual das oficinas de jornalismo chega a R$ 90 mil, enquanto a de criatividade é de R$ 40 mil, mas consumiria R$ 10 mil a mais se todos os materiais fossem comprados e os profissionais, remunerados.

Nery afirma estar esperando o resultado de algumas seleções das quais participou para conseguir atender a demanda da comunidade do Jardim Ângela, mas não teme pelo fim do programa. Todos os professores já se comprometeram a manter as atividades, mesmo sem pagamento.

Marcelo Medeiros

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