Você está aqui

PPP: tábua de salvação nacional?

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Artigos de opinião

Selene Peres Nunes*


No início de 2004, o governo federal encaminhou ao Congresso Nacional o projeto de lei da PPP, fazendo uma transposição de modelos adotados em outros países, com precária adequação à legislação nacional.


Na Câmara dos Deputados, o texto foi aprovado ainda em março, com alterações, mas sem a correção de impropriedades como a inadequação a regras constitucionais e legais e a presença de expressões sem eficácia legal ou que remetiam a decisão para contratos ou editais, sujeitando o processo à discricionariedade do gestor público.

Depois de uma torrente de críticas, várias audiências públicas e muitas emendas, chegou-se a um acordo no Senado Federal, sendo o texto aprovado, em dezembro de 2004, e sancionado pelo presidente da República, com vetos. Portanto, a lei já está em vigor.

O governo brasileiro empreendeu todos os esforços para aprovar a lei da PPP e só aceitou discutir o texto no Congresso Nacional quando não houve alternativa. Ainda assim, orientou para que fossem rejeitadas várias emendas.

A PPP tem sido apresentada como tábua de salvação nacional, capaz de alavancar investimentos e gerar crescimento econômico e empregos, sem que os governos federal, estaduais e municipais precisem desembolsar recursos que não têm, nem alterar as metas de superávit primário.

Seguindo a lógica do “tudo pelo fiscal”, pela qual comprometeu-se com metas de superávit primário exageradas, o governo federal pretende delegar à iniciativa privada funções que historicamente têm sido desempenhadas pelo Estado.

Trocando em miúdos

Parceria público-privada (PPP) pode ser traduzida como contrato de concessão envolvendo pagamento da administração pública a um parceiro privado (concessão patrocinada) ou combinação entre prestação de serviços e execução de obras para uso direto ou indireto da administração pública (concessão administrativa). Nos dois casos, pode haver cobrança de tarifas de usuários.

A PPP pode abranger tanto investimentos em infra-estrutura como prestação de serviços na área social: educação, saúde, assistência social, segurança pública e justiça. Na prática, trata-se de delegar à iniciativa privada funções antes exercidas pelo Estado.

A Lei 11.079/04 estabeleceu normas gerais para a União, os estados, os municípios, as empresas públicas e as sociedades de economia mista. Vários estados que haviam aprovado leis próprias deverão modificá-las caso apresentem conflito com a legislação federal.

A PPP já foi adotada em vários países – Espanha, Inglaterra, Irlanda, Portugal, Canadá, África do Sul etc – com o apoio de organismos internacionais, principalmente Bird e BID, que têm tradição no seu financiamento. Os modelos divergem tanto quanto ao volume de recursos privados, como às áreas abrangidas e os próprios projetos.

Existem alguns exemplos bem-sucedidos na adoção da PPP, envolvendo organizações voluntárias e políticas de significado local. Os casos de insucesso podem ser creditados basicamente a cinco fatores: falhas legais e regulatórias; inadequação do processo de seleção das empresas privadas; má avaliação de custos e investimentos; falta de agentes regulatórios adequados ou de controle das parcerias; e menosprezo a possíveis desvantagens e riscos (ambientais, modificações unilaterais pelo concedente).

Perguntas incômodas

Já que o governo Lula alega não investir mais por enfrentar restrições fiscais, cabe perguntar de onde viriam os recursos públicos para financiar a PPP e de onde viria a complementação, ainda que pequena, da iniciativa privada?

Na verdade, não há mágica que crie recursos adicionais para a PPP. O governo não conseguirá convencer a iniciativa privada a aumentar investimentos, a menos que crie um ambiente de expectativas favoráveis. E isso depende de uma gama de fatores, como marcos regulatórios claros, perspectivas de ampliação da demanda agregada, redução da carga tributária e da taxa de juros. Se essas condições não se realizarem, em vez de aumento poderá haver, no máximo, migração dos recursos privados já aplicados.

O mesmo pode se dizer em relação aos recursos públicos. Se os recursos provêm do orçamento, a realização de investimentos afeta a meta de resultado primário, com ou sem PPP. Se os recursos ainda não existem, ao contrair uma obrigação de pagamento para o futuro, o governo estaria realizando uma operação de crédito e aumentando a relação dívida/PIB.

A principal vantagem que o governo vislumbra na PPP consiste, portanto, em não registrar os empréstimos nas contas públicas, isto é, em empurrar pelo menos uma parte da conta “para debaixo do tapete”. Trata-se de um segundo round na reinvenção da contabilidade pública, muito semelhante à tentativa de convencer os técnicos do FMI de que investimento não é despesa. Dessa forma, compromisso para pagamento futuro não seria dívida.

No caso da União, a pergunta que não quer calar é: se a restrição que se deseja romper é a meta de resultado primário, porque não reduzir a meta? E, mais, se o crescimento da relação dívida/PIB incomoda tanto, porque não reduzir a taxa de juros, que vem consumindo tentativas vãs de amortizar a dívida?

No caso dos estados e municípios, a grande vantagem da PPP parece ser a de alargar concretamente os limites que foram estabelecidos pelo Senado Federal por determinação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

O não-registro da PPP como operação de crédito é uma forma de driblar limites, pois equivale a uma margem adicional para endividamento. É bem verdade que depois de uma torrente de críticas, a Lei da PPP melhorou muito: onde antes havia ausência de limites, com desrespeito total à LRF, agora há desrespeito que fica limitado a 1% da Receita Corrente Líquida (RCL).

A pergunta que não quer calar, neste caso, é: se há, de fato, o entendimento de que os limites são rígidos demais, por que o próprio Senado não os altera? Constitucionalmente, o Senado possui competência para tanto. Por outro lado, se os limites são adequados, não seria melhor cumpri-los em vez de descobrir as conseqüências da flexibilização daqui a 35 anos?

A PPP não é um caminho mágico. Além de exigir grande esforço de implementação, não garante crescimento, desenvolvimento econômico, eqüidade ou justiça social. Ao contrário, é grande a tentação de atropelar as conquistas sociais históricas e os direitos universais.

*Selene Peres Nunes é assessora de Política Fiscal e Orçamentária do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

Alguns riscos da PPP:

Licitações dirigidas

A lei prevê que poderá ser adotado o critério da melhor combinação entre as propostas técnica e econômica. A comissão julgadora ficará diante da difícil tarefa de comparar preços diferentes relativos a objetos também diferentes. Quem garante que a escolha não será favorável à proposta mais cara sob a alegação de que a mesma apresenta a melhor proposta técnica?

Contabilidade paralela

Se prevalecer a interpretação que vem sendo sugerida pelo governo de que as obrigações contraídas pela administração pública são despesas obrigatórias de caráter continuado, e não operações de crédito, a contabilidade oficial não refletirá o verdadeiro montante de dívida. A PPP tende a reduzir a transparência das contas públicas.

Capitalismo sem risco

Os pagamentos da PPP poderão ser assegurados por vinculação de receitas, fundos especiais, seguro-garantia, fundo garantidor ou garantias prestadas por organismos internacionais, instituições financeiras não-controladas pelo Poder Público ou empresa estatal criada para essa finalidade. Na União, a Lei limitou a R$ 6 bilhões os recursos para o Fundo Garantidor de Parcerias Público-Privadas (FGP), que terá natureza privada e patrimônio próprio separado do patrimônio dos cotistas. O texto original era pior: não previa qualquer limite para o FGP, nem a repartição de riscos entre a administração pública e o parceiro privado, muito menos a participação da administração pública nos ganhos econômicos decorrentes da redução do risco de crédito dos financiamentos utilizados pelo parceiro privado.

Cheque em branco para privatização

Na prática, a PPP é um grande “guarda-chuva” para a privatização em quase todas as áreas, sem necessidade de autorização legislativa específica, exceto no caso de concessão patrocinada, quando mais de 70% do contrato for pago pela administração pública. A idéia em si é questionável, principalmente, sem uma discussão aprofundada do modelo de Estado (e de desenvolvimento) que queremos.

Arroubos autoritários

A lei tem um viés autoritário: prefere criar limites e formas de controle novos, delegando à Secretaria do Tesouro Nacional (STN) a análise de riscos fiscais de todas as parcerias firmadas pelo setor público. Estados, Distrito Federal e municípios precisarão pedir autorização a um órgão do Poder Executivo Federal para contratar PPP, o que fere o princípio federativo. Em outras palavras, além de controlar a si mesma, a União pretende controlar também estados e municípios.

Contribuinte lembrado, consumidor esquecido

Num país onde a carga tributária já beira os 37%, seria difícil imaginar solução para as contas públicas que fuja ao padrão histórico. A concessão à iniciativa privada freqüentemente implica a cobrança de tarifas dos usuários pelos serviços anteriormente prestados pela administração pública. Como o governo não anunciou redução da carga tributária, deduz-se que isso implica maior ônus ao contribuinte. Em resumo, para os mesmos serviços, o consumidor arcará com os mesmos impostos, acrescidos por tarifas adicionais.






A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados.

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer