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Aborto: mortes preveníveis e evitáveis

Autor original: Maria Eduarda Mattar

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A pesquisa realizada para a elaboração do Dossiê Aborto – Mortes Preveníveis e Evitáveis teve como área de concentração a análise de informações epidemiológicas que pudessem ajudar a traçar, de modo mais explícito, o quadro de morbimortalidade das brasileiras em decorrência do aborto inseguro, com vistas a contribuir para retirar o “manto de vergonha” que recobre estes episódios no âmbito familiar e a evidenciar a crueldade que significa, no contexto de um Estado separado das religiões, negar às mulheres um procedimento médico seguro.

A nossa contribuição, como feministas e pesquisadoras de saúde da mulher, ao debate em curso no Brasil sobre o direito ao aborto legal e seguro, buscou desvendar a realidade na qual as mulheres abortam e, sem dúvida, os dados nos dizem que a negação de um procedimento médico seguro permite que as mulheres adoeçam e até morram quando há meios médicos de evitar tais desfechos, resultando em grandes impactos negativos na saúde física e mental das mulheres, levando-as inclusive à morte. Entre os principais problemas decorrentes do aborto clandestino e inseguro, destacam-se: perfuração do útero, hemorragia e infecção, que podem acarretar diferentes graus de morbidade, seqüelas e morte.

Considerando que os direitos reprodutivos integram os direitos humanos e que o direito de decidir sobre o próprio corpo precisa ser aceito e respeitado, na medida em que o Estado nega proteção aos direitos reprodutivos, incluindo o acesso ao abortamento seguro, contribui, deliberadamente, para que as repercussões sobre a saúde mental feminina (culpa, depressão, etc.) sejam maximizadas e para que os impactos da morbidade e da mortalidade por aborto na organização familiar e na vida social em geral sejam também ampliados.

Uma morte decorrente do aborto clandestino tem o poder de impedir que as famílias vivenciem o processo de luto sem o peso da vergonha e que, sobretudo, familiares mais próximos, como mãe, irmãs e filhos(as) da vítima possam andar de cabeça erguida em seu meio social. Além disso, o aborto constitui importante causa de discriminação e violência institucional contra as mulheres nos serviços de saúde: retardo do atendimento, falta de interesse em escutar as mulheres, e discriminação explícita por meio de palavras e atitudes condenatórias.

Devido à supervalorização da maternidade em muitas culturas na construção da identidade feminina, o abortamento pode, equivocadamente, sugerir uma recusa ou repulsa à maternidade. Tal imaginário é, em geral, o alicerce cultural que leva muitos profissionais de saúde à adoção de posturas discriminatórias para com as mulheres que abortaram, tanto espontaneamente quanto de maneira insegura. Explica, também, as restrições para a realização de procedimentos de abortamento seguro.

É necessário ressaltar que a ilegalidade condena todas as mulheres. Tanto faz o aborto ser ou não provocado, ao chegar a um serviço de emergência obstétrica com abortamento em curso ou com complicações decorrentes do aborto, as mulheres são tratadas como criminosas, as últimas a serem atendidas, até que muitas fiquem seqüeladas ou morram.

Além disso, considerando os casos de mulheres que morreram, foram presas ou respondem a processos por terem abortado, é urgente apoiar, de forma sistemática, mães, famílias e amigos(as) de tais mulheres e as sobreviventes do aborto clandestino e inseguro. Assim como, no Brasil, há necessidade de esforços expressivos no sentido de ampliar a discussão e o ensino, de atenção médica qualificada ao abortamento inseguro e de práticas de abortamento seguro.

Gravidez e aborto

Festejados ou repudiados, a gravidez e o aborto, como parte do ciclo da reprodução da vida, estão presentes em todas as sociedades humanas conhecidas e estudadas até os dias atuais. Mas, o que aparecia, muitas vezes, como uma fatalidade da natureza, seja destino ou castigo, foi sofrendo a intervenção humana, ditada pela política, direcionada pela religião ou influenciada pela ciência. Sacerdotes ou chefes políticos podiam ordenar o infanticídio ou o sacrifício de crianças aos deuses.

A temática da reprodução nunca foi um assunto privado e, menos ainda, um segredo só das mulheres, embora sobre o corpo delas tenha pesado a maioria das obrigações e interdições, pois o papel masculino na fecundação só foi elucidado no século XIX.

O ritmo de crescimento da população foi muito lento, durante milhares de anos, devido à fome, às guerras e às pestes. O equilíbrio demográfico era assunto de grande preocupação para os governantes cujo poder dependia, em parte, da extensão do território e do tamanho de sua população.

Relata-se que após a Guerra dos Trinta Anos no século XVII, que devastou parte central da Europa, a Igreja Católica chegou a permitir que os homens possuíssem mais de uma esposa, com o objetivo de repovoar os territórios castigados pelo conflito.

O crescimento populacional só se tornou realidade – e seria visto como um problema por Malthus e muitos depois dele – com o avanço das técnicas agrícolas e a colonização das terras da América, que passaram a garantir alimentação mais abundante e maior expectativa de vida aos europeus a partir dos séculos XVII e XVIII.

O aborto espontâneo – a interrupção de uma gravidez antes da vigésima semana de gestação sem a intervenção humana – é uma das possibilidades para toda mulher que engravida. Estima-se que 10 a 15% de todas as gestações terminam em aborto por razões variadas, relacionadas ao zigoto ou às condições da mãe.

O aborto intencional também tem registro nas civilizações antigas da Europa e entre os nativos da América, com a utilização de ervas ou objetos pontiagudos. As sanções sobre a prática abortiva voluntária variam enormemente em todo o planeta e mesmo no interior de uma mesma religião.

Importa aqui ressaltar o que é próprio do século XX e deste em relação ao aborto: (a) as conquistas do movimento feminista, consubstanciadas em documentos nacionais e internacionais, no sentido de a mulher ser considerada como capaz de tomar decisões éticas sobre sua sexualidade e reprodução; e (b) os avanços da medicina e da genética relacionados ao processo de fecundação, desenvolvimento do feto e embrião e à segurança dos métodos para interromper uma gravidez.

Esses conhecimentos vêm servindo de fundamento para políticas de saúde que assegurem menor risco de doenças, complicações e morte, para as mulheres exercerem sua função reprodutiva se e quando o desejarem.

Além disso, é necessário que prevaleça a separação constitucional entre Estado e Igreja e o respeito à pluralidade de convicções presente na sociedade, assegurando-se às pessoas o acesso a todos os métodos anticoncepcionais e também o direito de fazer ou não um aborto, caso ocorra uma gravidez indesejada.

*Este é o texto introdutório do dossiê "Aborto: Mortes Preveníveis e Evitáveis", produzido pela Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (www.redesaude.org.br). A íntegra está disponível na área de Downloads, no alto desta página.






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