Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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No dia 21 de março, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Koffi Annan, anunciou que, 60 anos depois de sua criação, a entidade passará por uma reforma geral – a maior de sua história. A intenção é adaptar a instituição aos novos tempos, tornando-a mais democrática e forte em suas ações e seus chamados.
As mudanças, segundo Annan, pretendem “cicatrizar as feridas da comunidade internacional deixadas pela Guerra do Iraque e restaurar a credibilidade das Nações Unidas como líder na luta mundial pelos direitos humanos”. Ao apresentar a proposta de reforma, contida no relatório “Por maior liberdade – desenvolvimento segurança e direitos humanos para todos” (leia a íntegra no link ao lado), o secretário-geral convocou os líderes dos 191 países que fazem parte das Nações Unidas a agir. “Esse salão já ouviu declarações de grande impacto suficientes nas últimas décadas. Sabemos quais são os problemas e o que prometemos alcançar. O que é preciso agora não são mais declarações, mas ação para realizar as promessas já feitas”, afirmou. O documento possui 101 sugestões de mudanças para o órgão internacional.
O fortalecimento das Nações Unidas, de acordo com Annan, será conseguido por meio da revitalização da Assembléia Geral, da expansão do Conselho de Segurança de 15 para 24 membros, e pela substituição da Comissão de Direitos Humanos por um Conselho de Direitos Humanos. A troca aconteceria porque a Comissão, de acordo com o secretário-geral, teve sua capacidade "afetada por sua declinante credibilidade e profissionalismo”.
Apesar de ficar um pouco encoberto pela discussão sobre quem ficará com as vagas do Conselho de Segurança, o tema do fortalecimento dos direitos humanos é de grande importância. A proposta de Annan ainda tem indefinições, mas seu objetivo é deixar os direitos humanos em discussão permanente. “A criação do Conselho situaria os direitos humanos em uma posição de maior autoridade, de acordo com a primazia que se atribui a eles na Carta das Nações Unidas”, diz o relatório.
Organizações ligadas à defesa dos direitos humanos aplaudiram a iniciativa, assim como diplomatas, mas lembram que há muito por fazer. “O secretário-geral está propondo uma estrutura que pode fazer muito mais para proteger os direitos humanos do que a ONU tem feito nos último 50 anos”, disse o diretor executivo da ONG Human Rights Watch, Kenneth Roth.
O Conselho de Direitos Humanos ficaria em sessão durante todo o ano e se reuniria sempre que as circunstâncias pedissem. A atual Comissão senta à mesa apenas durante seis semanas por ano, em março e abril, o que faz a agenda se acumular e muitas decisões deixarem de ser tomadas.
Menos países fariam parte do novo órgão. Atualmente, a comissão é composta por 53 Estados-membros. Seu caráter, porém, ainda não está definido. Na Assembléia Geral de setembro, os países decidirão se o Conselho será um órgão principal, como são o de Segurança e o Social e Econômico (Ecosoc) ou se permanecerá submetido à assembléia e ao próprio Ecosoc. Seja qual for a opção, seus membros serão escolhidos por votação dos membros da assembléia. Ganharão aqueles que obtiverem ao menos dois terços dos votos. Os Estados-membros deverão determinar a composição do conselho e a duração do mandato.
“É um pacote de medidas que precisam ser postas em prática. Vai desde a escolha dos membros até a forma de implementação de projetos. A reforma vai harmonizar os princípios da ONU com a prática", explica o representante das Nações Unidas no Brasil, Carlos dos Santos.
A escolha dos membros do novo órgão promete ser polêmica. De acordo com Santos, o ideal seria que a Comissão fosse formada por países “com alto padrão de respeito aos direitos humanos”. Isso, contudo, poderia afetar o equilíbrio de forças regionais, uma vez que boa parte dos países em desenvolvimento sofrem acusações de violações a esses princípios. “Cabe aos países se defenderem e votarem”, diz o diplomata.
A decisão de alterar a estrutura de defesa dos direitos humanos na ONU se deve à falta de ação da Comissão. “Há Estados que têm feito parte da Comissão não para afiançar os direitos humanos, mas para se proteger contra as críticas ou para criticar outros”, diz o relatório escrito por Annan. O resultado dessa prática, continua o documento, é a “acumulação de um déficit de credibilidade que põe uma sombra na reputação no sistema das Nações Unidas como um todo”.
Há diversas críticas em relação à atuação da Comissão mundo afora. “Ela só olha para o próprio umbigo”, reclama dos Santos. Para ele, a entidade está engessada por falta de dinheiro e vontade política de seus membros. “Deveríamos ter escritórios em vários países para fiscalizar o respeito aos direitos humanos, mas eles praticamente não existem”. Caso seja aprovada a reforma, esperam-se mais ações de fiscalização. O orçamento das agências de direitos humanos da ONU em 2004 foi de US$ 7,1 milhões.
Entre os casos mais atuais de desrespeito aos direitos humanos está o do aprisionamento, pelos EUA, de suspeitos de participação em atos de terrorismo, na prisão de Guantánamo, em Cuba. Os detentos não têm direito a advogados e são mantidos em condições precárias, como falta de banho de sol. Entidades de defesa dos direitos humanos acusam o governo norte-americano de terem seqüestrado alguns dos presos, pois teriam sido capturados em seus países sem que houvesse acusação formal. “O direito e o dever dos Estados de usar todos os meios legais para proteger seus cidadãos contra a morte e a destruição trazidas por terroristas precisam ser exercidos conforme a lei internacional”, afirmaram em fevereiro especialistas da Comissão ao analisarem as condições dos presos.
Outro caso é o do Sudão, cuja guerra civil pelo controle do poder já matou 300 mil pessoas. O país faz parte do órgão das Nações Unidas e possui, inclusive, uma vaga no grupo. “Se o voto da comunidade internacional for ‘nunca mais’ para os crimes contra a humanidade e tiver algum significado, é hora de uma ação decisiva”, afirmaram os especialistas das Nações Unidas em 16 de março.
Repercussão
A proposta de uma reforma foi bem vista por organizações de defesa dos direitos humanos. Para a ONG Human Rights Watch (HRW), a decisão foi acertada e corajosa. “O secretário-geral está certo em concluir que o espetáculo de governos infratores aderindo à Comissão a desacreditou tanto que é hora de simplesmente começar de novo”, afirmou a entidade em comunicado. “Os Estados-membros precisam entender que ser membro de um órgão de direitos humanos é um privilégio, não um direito, e que isso vem com a responsabilidade de viver de acordo com os parâmetros apoiados”, diz Kenneth Roth.
A Anistia Internacional vai pelo mesmo caminho. Em carta, a entidade desafia todos os Estados-membros da Comissão a superarem os interesses nacionais para restabelecer a credibilidade da ONU e proteger os cidadãos do mundo de abusos. “Todos os membros têm a obrigação de evitar o emprego de critérios seletivos e a falsidade. Cada membro que insta a Comissão a se ocupar de alguma situação concreta e se omite de outras, cada membro que apóia uma moção de ‘não ação’ ou se abstém em relação a ela contribui para minar a credibilidade da comissão e descumpre sua obrigação de fazer frente aos desafios aos direitos humanos do momento”, diz a diretora da entidade, Irene Khan. Segundo ela, o tipo de conduta que tem sido adotado tem impedido ações humanitárias no Zimbábue, no Iraque e na Chechênia. O país africano faz parte da Comissão. “Outros casos, como o de Guantánamo, nem sequer chegam a entrar na ordem do dia”, reclama.
Para a Human Rights Watch, um órgão permanente poderia dar respostas mais eficazes a crises, fazer melhor uso dos procedimentos de monitoria da ONU, como os grupos de trabalho e a participação de ONGs nas atividades, e fazer recomendações mais rápidas.
A Anistia afirma que, independentemente do nome e da forma que o órgão-chefe de defesa dos direitos humanos venha a ter, ele deve possuir algumas características. Entre elas estão as já citadas pela HRW. Completam a lista a checagem do cumprimento de compromissos por todos os que os assumam, a profissionalização e a despolitização das deliberações, a possibilidade de ONGs e especialistas participarem de todas as etapas decisórias.
Brasil
No Brasil, a reação foi semelhante. O governo brasileiro ainda está analisando o relatório de Koffi Annan para tomar posição, mas a princípio apóia o conteúdo do documento. “Nossa reação inicial é simpática, mas a ONU ainda precisa divulgar mais detalhes, entre eles as atribuições que o Conselho terá”, afirma Achiles Zaluar, secretário da Divisão das Nações Unidas do Itamaraty. “Colocar os direitos humanos em uma posição mais central é uma boa idéia. O problema será a negociação para fazer isso se concretizar”, alerta.
O diplomata acredita que a intenção do secretário-geral das Nações Unidas, ao divulgar o documento, tenha sido a de gerar discussão para que propostas concretas sejam apresentadas até setembro. Por isso afirma que ainda é cedo para dizer se o Brasil vai pleitear uma vaga no Conselho de Direitos Humanos, da mesma forma que pede assento permanente no Conselho de Segurança.
Funcionamento atual
A Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas foi criada em 1946 e atualmente se reúne durante seis semanas, nos meses de março e abril, em Genebra, Suíça. Ela é composta por 53 Estados, entre eles o Brasil. Aproximadamente três mil delegados de países membros e observadores, além de representantes de organizações não-governamentais participam das reuniões.
Em casos de urgência humanitária a Comissão pode se reunir, desde que a maioria de seus integrantes concorde. Até hoje, isso aconteceu cinco vezes. A última foi em 2000, para discutir as acusações de violação dos direitos humanos dos palestinos por parte das forças militares de Israel. As demais foram para verificar por duas vezes a situação da ex-Iugoslávia, em 1992; de Ruanda, em 1994, e do Timor Leste, em 1999.
Ao longo do ano, diversas resoluções são deliberadas pela comissão. Elas geram mecanismos que devem ser fiscalizados pelos integrantes do órgão para que as regras gerais das Nações Unidas sejam respeitadas. Há duas formas de monitoramento: uma é chamada de “convencional” e observa a implementação das normas pelos países integrantes. As ações são feitas pelos comitês de Direitos Humanos, de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de Eliminação da Discriminação Racial, de Eliminação da Discriminação contra as Mulheres e os comitês contra a Tortura e pelos Direitos das Crianças. A outra, chamada de “procedimentos especiais”, é composta por especialistas independentes. Há ainda grupos de trabalho em temas como comunicação e mandatos "especiais”.
Atualmente, 20 países estão sendo monitorados de perto, entre eles Afeganistão. Haiti, Iraque e Sudão. Há ainda um comitê especial dedicado a investigar as práticas de Israel contra os direitos humanos dos palestinos e outros povos árabes nos territórios ocupados.
Conselho de Segurança
Dependendo do relatório da Comissão de Direitos Humanos sobre a situação de algum país, o Conselho de Segurança pode ser acionado para votar uma ação militar. As recomendações de intervenção humanitária, porém, nem sempre se transformam em ação. O Conselho de Segurança tem autonomia para votar intervenções sem que haja pedido da Comissão. O problema atual, de acordo com Annan, é a falta de credibilidade de ambas instituições. Depois de meses de discussões no Conselho na tentativa de obterem autorização para atacarem o Iraque, em 2003, os EUA decidiram invadir o país árabe, acusado de possuir armas de destruição em massa, sem o aval dos demais integrantes do órgão. A atitude minou a credibilidade da ONU, que sempre defendeu a negociação antes da intervenção.
Reagindo a isso, ainda no fim de 2003, Koffi Annan afirmou ser necessário realizar mudanças nas formas de decisão relativas à segurança mundial. Suas idéias estão contidas no relatório “Um mundo mais seguro: nossa responsabilidade compartilhada”, publicado apenas em dezembro de 2004. “É o caso de um conceito mais compreensivo de segurança coletiva: um que derrube novas e velhas ameaças e que abarque as preocupações de segurança de todos os Estados. Acredito que esse conceito possa interligar a brecha entre visões divergentes de segurança e nos guiar para enfrentar os dilemas de hoje”, escreve Annan no relatório “Em maior liberdade”. Os “dilemas de hoje” são a ação de terroristas e do crime organizado.
O secretário-geral propõe a ampliação do número de assentos permanentes. São duas possibilidades: uma é a adição de seis assentos permanentes, sem poder de veto (atualmente, EUA, China, Inglaterra, França e Alemanha possuem essa prerrogativa) e três novas vagas para os mandatos de dois anos. A outra não prevê novos assentos permanentes, mas cria uma nova categoria de participação. Seriam criadas oito novas vagas, com mandato de quatro anos e possibilidade de renovação, e mais um assento de dois anos, não renovável. Em ambas as hipóteses, países do hemisfério sul teriam mais representantes do que atualmente.
O objetivo maior de Annan com a reforma é aumentar os esforços para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, conjunto de metas estabelecidas pelas Nações Unidas em 2000 que devem ser atingidas até 2015. Entre elas está a redução à metade da pobreza em todo o mundo e a busca da sustentabilidade ambiental. E, além disso, a redução do número de conflitos.
“O que pedi até agora é possível. Está a nosso alcance. De começos pragmáticos pode surgir uma mudança visionária da direção de nosso mundo. Essa é nossa oportunidade e nosso desafio”, declarou o Annan à Assembléia Geral da ONU, quando apresentou suas propostas de mudança.
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