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Mais Estado, menos polícia

Autor original: Marcelo Medeiros

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets





Mais Estado, menos polícia
Anahit

Noite de quinta-feira, 31 de março, por volta de 20 horas. Um grupo conversa em frente a um bar no bairro da Posse, em Nova Iguaçu, cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro. Um carro prateado que vinha pela rua pára. Dele saem homens encapuzados armados com revólveres que começam a atirar em direção às pessoas. Dezoito morrem. Alguns minutos depois, a cena se repete na vizinha Queimados. Dessa vez, 12 são mortos. No total, 30, incluindo crianças (sete dos mortos tinham menos de 18 anos).

Esses episódios acima, de acordo com moradores da Baixada Fluminense, são incomuns apenas pela quantidade exagerada de vítimas. Na semana anterior, uma família inteira fora assassinada na porta de casa. A área é a mais violenta do estado do Rio de Janeiro, com taxas de homicídio próximas a 50 mortes por 100 mil habitantes, de acordo com dados do Núcleo de Estudos de Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Muitos desses assassinatos decorrem da ação de grupos de extermínio, que atuam nas grandes cidades fluminenses há pelo menos meio século. Sobre eles recai a principal suspeita de autoria do que vem sendo conhecido como Chacina da Baixada, que já repercute no exterior e gera pânico entre os moradores. Seu objetivo é “limpar” um determinado local da ação de criminosos. Os “esquadrões da morte” são formados, em geral, por policiais que atuam fora de serviço de forma criminosa e que geralmente estão envolvidos em corrupção. Agem na ausência do poder público e se aproveitam da indignação local com a presença de bandidos e a lentidão da Justiça e da própria polícia. Fazem proteção de comerciantes e praticam extorsão contra quem não colabora.

Uma surpresa na matança do dia 30 foi a ausência de envolvimento das vítimas com o crime. Apenas duas possuíam antecedentes criminais, mas já haviam cumprido suas penas. “Porém, mesmo que todos estivessem envolvidos com o crime, algo desse tipo não pode acontecer”, enfatiza Marcelo Freixo, da ONG Centro de Justiça Global.

O clima de insegurança deixa toda a população temerosa em relação ao que pode acontecer. “As crianças têm chegado mais nervosas por causa das notícias que vêem na televisão e por causa do estado de nervos dos próprios pais”, relata Marcos Paulo da Silva, gerente-executivo da Casa da Cultura da Baixada. A entidade atende 200 crianças e adolescentes de Mesquita, município que também faz parte da Baixada Fluminense. Eles participam de atividades de conscientização para não desenvolverem raiva ou desejo de vingança em relação a esse tipo de acontecimento. O trabalho é necessário, dado o medo dos moradores da região.

O prefeito de Nova Iguaçu, Lindbergh Faria, admite que a população está temerosa e que as ruas da cidade, principalmente nas proximidades do bairro da Posse, têm ficado desertas à noite. Todos temem que o acontecido se repita. E reclamam da falta de respostas ao crime. “Esse tipo de coisa acontece por falta de confiança na polícia como instituição e na demora da Justiça”, reclama Silva.

O governo estadual reage às críticas pressionando por uma solução rápida. No dia seguinte à chacina, a governadora Rosinha Garotinho determinou à Secretaria de Segurança Pública que o caso fosse tratado como prioridade. Marcelo Itagiba, responsável pela pasta, mandou aumentar o policiamento ostensivo na região. "Foram crimes bárbaros, praticados por bárbaros que não respeitam os direitos humanos de quem quer que seja. Nós já tomamos todas as medidas para iniciar uma caçada sem precedentes a estes criminosos. Seremos implacáveis na punição, caso se confirmem as suspeitas de envolvimento de policiais nesse fato", afirmou o secretário na ocasião. O prefeito de Nova Iguaçu já afirmou que, se for comprovada a participação de policiais no caso, pedirá indenização ao Estado para parentes das vítimas.

Brigas políticas à parte, a polícia tem feito seu trabalho e já prendeu alguns suspeitos, todos policiais em atividade. Um deles já foi reconhecido por testemunhas. Eles prestarão depoimento e aguardarão o fim das investigações dentro de seus batalhões.

Repercussão

A rapidez policial se deve à pressão da mídia e dos governos estadual e federal, além de organizações não-governamentais. Referindo-se à prisão dos assassinos, o presidente Luis Inácio Lula da Silva afirmou em seu programa de rádio, no dia 4, que “isso é o mínimo que o Estado pode oferecer para essas pessoas que estão sofrendo tanto. Nós não podemos deixar isso passar, não pode cair no esquecimento, não pode demorar muito. Nós temos que ser tão precisos quanto fomos no caso da irmã Dorothy [missionária assassinada em fevereiro, no Pará], ou seja, colocar o que a gente tiver de potencial de ação da nossa polícia para que a gente possa prender essas pessoas".

A Anistia Internacional revelou que levará o caso à Organização das Nações Unidas para que ele seja conhecido mundialmente e se torne emblemático. "É preciso focar na investigação do caso, nos rumos judiciais e na proteção das testemunhas, possivelmente fragilizadas com a tragédia e com a lentidão do sistema judiciário. A chacina na Baixada Fluminense é um registro contundente do abuso de poder e desrespeito à raça humana", disse Tim Cahill em reunião na Assembléia Legislativa do Rio, no dia 5.

Não é de hoje que a entidade reclama da atuação de grupos de extermínio no país. No informe anual de 2004, a Anistia denunciava a ação de esquadrões da morte no Rio e em São Paulo e criticava a ação do poder público. De acordo com o documento, existem grupos de extermínio em 15 dos 26 estados brasileiros, mas eles são mais ativos nesses dois estados do Sudeste. “As medidas de segurança adotadas pelos governos estaduais para combater os elevados níveis de criminalidade urbana continuaram a resultar num aumento das violações de direitos humanos”, afirma o relatório, que também reclama da falta de punição dos envolvidos em massacres como os de Vigário Geral e da Candelária, ambos ocorridos em 1993.

No ano passado, uma outra ONG, o Centro de Justiça Global, publicou o relatório “Rio: violência policial e insegurança pública”, no qual expõe problemas da política de segurança e relembra diversos casos que até hoje esperam solução. Em todos, o perfil das vítimas era semelhante: homens negros, pobres e moradores de zonas periféricas. “O conceito de ‘criminoso’ acaba por dilatar-se, estendendo sua aplicação a todos os integrantes das camadas desfavorecidas, constituindo uma verdadeira criminalização da pobreza, através de sua determinação geográfica”, afirma o documento. De acordo com a ONG, esse procedimento faz com que muitos inocentes morram por serem tomados como bandidos por grupos de extermínio.

A Justiça Global também está denunciando a chacina à ONU e à Organização dos Estados Americanos (OEA), acusando o governo brasileiro de descumprimento de acordos de respeitos aos direitos humanos.

Os diretores da regional Sudeste da Associação Brasileira de ONGs (Abong), Tatiana Dahmer e Ricardo Mello, em artigo [que pode ser lido no link "A Baixada Fluminense, chacinas cotidianas e a morte da cidadania" ao lado], alertam para outro problema: a naturalização da violência na Baixada Fluminense. “Apesar da indignação pública que tal fato causou, há, por parte dos governantes e de parte expressiva da sociedade, um ideário permanente de naturalização da morte e da violência nessa região conhecida como Baixada Fluminense. Há um mês, na mesma região da chacina, no bairro da Posse, uma família inteira fora dizimada – fato registrado em pequenas notas nos jornais que atingem formadores de opinião. E este é o triste e corriqueiro retrato da Baixada”.

Soluções possíveis

Marcos Paulo Silva concorda e diz que há uma cultura de violência na região causada pela inoperância do setor público. O diretor da Casa da Cultura da Baixada diz conhecer diversos casos nos quais a comunidade, cansada de esperar por soluções da polícia, resolveu agir por conta própria. “Grupos se organizam, avisam os vizinhos e ‘caçam’ um criminoso”, revela. Silva, porém, não vê esse procedimento como solução. “A vida social não pode ser baseada no troco. As coisas só pioram quando se tenta resolver problemas sem apoio da lei. Isso acaba justificando a ação de grupos de extermínio”, lamenta. A Casa da Cultura, quando procurada, orienta os moradores a procurarem o Ministério Público e a Ouvidoria da Polícia Militar para reclamarem da falta de ação ou mesmo fazerem campanhas públicas. O diretor, porém, reconhece que esse tipo de atitude só traz resultado a médio prazo. “É preciso ter paciência. O problema é que as pessoas estão tão desesperadas com o estado de violência, a falta de serviços, o desemprego, que querem respostas para ontem e acabam agindo por conta própria”, diz.

Esses fatores acabam contribuindo para a naturalização da violência na área, o que deve ser evitado, diz a Abong. A entidade sugere que espaços públicos sejam utilizados para relembrar não só esse como outros acontecimentos. “Precisamos construir espaços permanentes de denúncia e constrangimento das autoridades em relação às mortes violentas cotidianas que ocorrem nesse território. Entre ações mais incisivas, para dar visibilidade à violência tratada como corriqueira e quebrar essa naturalização, deveríamos ter em cada praça principal das cidades que compõem a Baixada painéis-calendário contabilizando cotidianamente quantas pessoas foram assassinadas até aquele dia do mês naquelas localidades”, sugerem os diretores da entidade.

A Justiça Global, por sua vez, pede mudanças no conceito de segurança pública por parte dos governantes. “É preciso pensar melhor quem está comandando os batalhões, por exemplo”. A medida é necessária, segundo Freixo, para melhorar a concepção de boa atuação policial, que está muito ligada à quantidade de mortos. A quantidade de pessoas mortas pela polícia tem crescido com rapidez nos últimos anos. Em 1998, 397 pessoas foram vitimadas pela polícia. Em 2000, 427. Em 2002, 900. E em 2003, 1.195 – dados da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Mas o número real pode ser maior, pois os registros por vezes são alterados ou desconsiderados pelos policiais.

“Segurança, hoje em dia, é política educacional, de saúde e de lazer, entre outros itens. É uma questão de Estado, e não de polícia”, afirma Marcelo Freixo. Para ele, e os demais concordam, é necessário que haja mais investimento nas áreas sociais e mais planejamento na atuação policial.


Marcelo Medeiros

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