Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
Tatiana Dahmer e Ricardo Mello*
Durante três horas no último dia 31 de março a Baixada Fluminense foi palco de um ato encenado por um velho e conhecido ator da região – os grupos de extermínio – deixando um rastro de terror e morte e contabilizando de uma só vez trinta corpos. Poderia ser apenas mais uma chacina naquele cotidiano de miséria, caso não tivesse como resultado um número mais expressivo de mortos e o claro envolvimento de policiais na sua autoria. É sobre esse aspecto que a Associação Brasileira de ONGs (Abong) gostaria de tecer algumas considerações públicas.
Antes de tudo é preciso que debatamos o problema honestamente, indo além da óbvia constatação da falência da segurança pública no estado do Rio de Janeiro e de atos simbólicos de baixa ou nenhuma eficácia para mobilização permanente do poder público – os quais em geral servem para expiar nossa consciência da necessidade de um envolvimento maior e permanente no enfrentamento das desigualdades sociais, geradora da violência urbana.
Apesar da indignação pública que tal fato causou, há, por parte dos governantes e de parte expressiva da sociedade, um ideário permanente de naturalização da morte e da violência nessa região conhecida como Baixada Fluminense. Há um mês antes, na mesma região da chacina, no bairro da Posse, uma família inteira fora dizimada – fato registrado em pequenas notas nos jornais que atingem formadores de opinião. E este é o triste e corriqueiro retrato da Baixada.
Há mais de meio século grupos de extermínio, muitos deles contando com a presença de policiais corruptos, atuam com toda liberdade – com braços nos parlamentos locais, conivência e mesmo apoio de segmentos de elite da região metropolitana.
Essa naturalização da violência para com a população da Baixada vincula-se a outras banalizações vividas na nossa sociedade, tais como a segregação urbano-territorial, a privação no acesso a direitos sociais e civis fundamentais à cidadania, a discriminação sexual e racial, e a reprodução permanente da desigualdade social nas cidades. Tais elementos formam um caldo fértil para toda a sorte de violência impune imposta aos/as anônimos/as que vivem na Baixada. Suas mortes apenas são enquadradas nas frias e irreais estatísticas oficiais e rapidamente esquecidas em nome de novas que ocorrem todo o mês.
A indignação que nos causa esse fato precisa alimentar uma ação política cotidiana a qual não deixe cair na indiferença – até a próxima chacina de maior vulto – a ação das redes criminosas na região e o descaso do poder público para com aquela população. Precisamos construir espaços permanentes de denúncia e constrangimento das autoridades em relação às mortes violentas cotidianas que ocorrem nesse território.
Entre ações mais incisivas, para dar visibilidade à violência tratada como corriqueira e quebrar essa naturalização, deveríamos ter em cada praça principal das cidades que compõem a Baixada, painéis-calendário contabilizando cotidianamente quantas pessoas foram assassinadas até aquele dia do mês naquelas localidades.
Se pretendemos construir um país efetivamente democrático, com cidadania ativa e participação social, precisamos debater abertamente quais são as condições que precisam ser construídas para a afirmação de direitos, principalmente em regiões vulneráveis como a Baixada Fluminense.
Dezenas de entidades não-governamentais, de associações de moradores, de movimentos sociais organizados atuam na região com baixa ou nenhuma visibilidade na mídia, em esforços de fortalecer a população para que se exija do poder público o que lhes é de direito. Não têm a pretensão de substituir o Estado, de viver dos holofotes de ações midiáticas, nem tampouco de atuar pautados pela lógica da caridade. São organizações que acreditam que a cidadania só pode ser edificada sobre as bases da dignidade, da redistribuição de renda, da justiça social e da ausência do medo. E tais bases precisam ser asseguradas pelo poder público não por ações bem intencionadas, porém limitadas – por conta da sua própria natureza – da sociedade civil organizada.
A capacidade de mobilização das pessoas na luta por direitos e políticas públicas que promovam a melhoria na região ou a simples manifestação contra a violência sempre acaba partida, calada pela própria violência.
A Abong defende a construção de uma agenda social assegurada através de políticas públicas universalistas, intersetorialmente integrada, construída com participação social, implementada paralelamente a ações governamentais firmes no campo da segurança as quais desmontem redes criminosas nestas cidades, punindo severamente os responsáveis pelas ações de violência.
Os governos estadual e municipais precisam ser pressionados a mudar suas prioridades de investimentos, a debater com transparência como investem em assistência social, saúde, saneamento, educação, habitação e segurança pública.
A Baixada Fluminense não pode mais continuar sendo cenário de chacinas nem o Estado pode se fazer presente apenas nos períodos pré-eleitorais. Não é a sociedade civil organizada que irá frear os “bondes do terror” – muitos deles capitaneados por aqueles que deveriam assegurar nossa integridade – nem tampouco garantir segurança a partir de pedidos de paz ou de exclamações de “basta”. Criminalidade, abandono e violência se resolvem com ações responsáveis, transparentes e democráticas do Estado em diálogo com a sociedade.
* Tatiana Dahmer e Ricardo Mello são diretores regionais da Abong.
A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados. |
Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer