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Comemos o mundo?

Autor original: Marcelo Medeiros

Seção original: Artigos de opinião

Ferran Garcia*






Comemos o mundo?


A pergunta pode parecer um exagero, mas a resposta, sem dúvida, é afirmativa se considerarmos algumas situações atuais pelas quais, vivendo em países situados no centro econômico mundial, somos claramente responsáveis.


O principal problema a partir do qual tudo se origina é a implantação na agricultura de países e regiões da periferia econômica (como é o caso do Brasil) de monoculturas de exportação. Essa é a raiz dos problemas. Uma vez instalados esses cultivos, desencadeiam-se em todos os casos estudados os mesmos efeitos negativos sobre a sociedade rural e o meio ambiente. As monoculturas de exportação (a soja, por exemplo) são altamente seletivas.

Selecionam quem as produz, como são produzidas, o que se produz e quem fica com o lucro. Os pequenos e médios camponeses não podem fazer parte desse sistema, os únicos que podem produzir para exportação em grande escala são as grandes corporações de alimentos. As pequenas e médias empresas nacionais não podem exportar esses produtos. Os únicos com capacidade para fazê-lo nos níveis atuais são as grandes corporações agroalimentares, as mesmas que produzem a matéria-prima alimentar ou outras.

Para exportar a esse nível não servem os modelos de produção agroecológicos, diversificados, locais, camponeses e sustentáveis. Para a função macroexportadora necessitamos da Revolução Verde e da Nova Revolução Verde (com os organismos geneticamente modificados que têm sido otimizados justamente para essa função).

Nos monocultivos exportadores não podemos produzir uma grande quantidade de alimentos sadios, nutritivos, culturalmente apropriados, diversificados e que atendam à dieta básica de uma população. Devemos obrigatoriamente pensar no mercado do Norte e produzir aquilo de que ele necessita, na quantidade de que necessita e na forma e sabor de que necessita.

Na verdade, quem dita quem, como e o quê do setor agrário brasileiro não são os brasileiros e, menos ainda, os camponses e os pobres rurais do Brasil. Nós, europeus e espanhóis, por exemplo, ditamos. O Brasil não é soberano alimentarmente nem será enquanto seguir aumentando as monoculturas exportadoras. E isso é grave. Evidentemente, a administração local tem suas responsabilidades, mas, dada a distância dos países enriquecidos, o que aparece como realmente importante é a nossa responsabilidade.

A responsabilidade do Norte nisso é clara. Nós somos os motores da importação desses produtos (que, verdade seja dita, boa parte deles se destina a uma produção agropecuária altamente contaminante e antissocial). Em muitas ocasiões, são nossas empresas que produzem, exportam e ficam com o lucro do modelo. São nossos governos que firmam acordos comerciais bilaterais e multilaterais que criam os moldes políticos e econômicos ideais para criar esses modelos e assegurar sua sobrevivência.

Aparece então o conceito de dívida. Dívida ecológica e dívida social associadas à perda de soberania alimentar.

A dívida ecológica como conseqüência da contaminação de terras e águas por excesso de fertilização química e pela abusiva utilização de pesticidas, a erosão do solo agrícola pela adoção de modelos não sustentáveis, a exportação de recursos não-renováveis sem pagar nada por eles, o desflorestamento, a perda de biodiversidade e ecossistemas são, entre muitos outros aspectos, parte dessa dívida. E tudo isso parece associado aos monocultivos exportadores.

E se, além disso, adicionarmos aos agricultores deslocados de suas terras a perda de criações e produções locais, a insegurança alimentar e a pobreza que geram a substituição de uma agricultura local, diversificada, camponesa e orientada a alimentar a população local por outra que pensa exclusivamente na Bolsa de Chicago, então a dívida aumenta.

Quem deve a quem? Os países do Sul econômico aos do Norte no conceito de dívida externa ou os do Norte aos do Sul em relação à dívida ecológica e social? Se fizermos as contas, a resposta é clara: nós devemos.

Qual é a alternativa? Por um lado, reconhecer e reparar a dívida; por outro, eliminar os mecanismos que a criam e, finalmente, nossa proposta passa pela soberania alimentar dos povos, pelo direito de produzirem seus alimentos com modelos produtivos apropriados que assegurem a sustentabilidade do sistema e clara vontade de potencializar os circuitos locais de produção e comércio.

Todos esses temas fazem parte de uma campanha impulsionada na Espanha por quatro organizações (Veterinários sem Fronteiras, Xara de Consum Solidari, Observatório da Dìvida na Globalização e Ação Ecologista), que, sob o lema “Não coma o mundo – campanha pelo reconhecimento da dívida ecológica e a soberania alimentar”, pretendem repercutir na sociedade e nos governos do Norte suas co-responsabilidades nos efeitos sociais e ambientais dos cultivos agroexportadores. Faremos isso com base em quatro estudos de caso: o salmão, no Chile; a soja, na Argentina e no Brasil; as flores, na Colômbia, e a cana-de-açúcar, em diferentes partes do mundo.

* Ferran Garcia é coordenador da campanha "Não coma o mundo - pelo reconhecimento da dívida ecológica e pela soberania alimentar"






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