Autor original: Marcelo Medeiros
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Ao lado do rapper MV Bill, o produtor cultural Celso Athayde, coordenador da Central Única das Favelas (Cufa), do Rio de Janeiro, percorreu favelas de todo o Brasil entrevistando jovens envolvidos com o tráfico de drogas. O objetivo era pesquisar quem estava se envolvendo com a criminalidade e por quê. O trabalho foi facilitado pelo que Athayde chama de identificação dos jovens com eles, que também moram em comunidades pobres. “A mim, tratavam como um irmão”, orgulha-se. Esse tratamento fez com que ouvisse depoimentos sinceros, alguns dos quais foram gravados em vídeo.
O resultado das conversas já rendeu um videoclipe para MV Bill e agora virou livro. “Cabeça de Porco”, lançado na semana passada, foi escrito a seis mãos e conta a história de alguns dos entrevistados, cuja maioria já está morta. Além do rapper e de Athayde, o antropólogo e ex-secretário estadual de Segurança do Rio Luís Eduardo Soares está entre os autores. Soares, de acordo com Athayde, é um dos poucos acadêmicos que possuem um trabalho digno de respeito, pois conhece a realidade das favelas.
A mesma realidade faz o produtor cultural afirmar não ver solução para o problema da violência que domina diversas áreas do Rio de Janeiro e outros estados. O pessimismo é justificado pela dependência de outros fatores, como o fim da corrupção e mais vontade política, entre outros. “O grande problema é perceber que a solução está atrelada a pessoas sem credibilidade alguma”, lamenta.
Athayde, porém, admite entrar em contradição por causa de seu trabalho. Ao lado de MV Bill, procura levar mensagens positivas para jovens e mostrar solução. Mas diz ser difícil pedir para alguém largar a arma enquanto não pode oferecer um bom emprego em troca. Mesmo assim, não joga a toalha.
Nesta entrevista à Rets, Athayde fala sobre a pesquisa, o livro e a violência que se espalhou por todo o país.
Rets - A expressão “cabeça de porco”, que dá título ao livro, é usada para designar um problema sem solução. É essa a situação real dos jovens moradores de favelas?
Celso Atahyde - A expressão é usada em vários sentidos, não só nesse que você citou. Também significa favela, labirinto ou uma situação muito embaraçosa. É como dizer “trem” em Minas Gerais, pode ser algo bom ou ruim. Por isso a expressão aparece em diversos momentos no livro. Nós a utilizamos também por causa da confusão causada pelo fato de não citarmos nomes.
Mas tudo isso, e o que vimos durante nossa pesquisa, nos inclina a fazer essa pergunta que você fez. E, de alguma maneira, é isso mesmo. Não há solução.
Rets - Por que você diz isso?
Celso Atahyde - Realmente, eu sou cético em relação à situação dos jovens. São poucas as pessoas que viram o que vimos. Aquela é a realidade não só de uma pesquisa, mas também de nossa vida, minha e do Bill. São situações de nosso dia-a-dia. Aquelas são pessoas com quem convivemos toda a vida. Portanto, quanto mais me aproximo, mais acho que o problema é sem solução.
Eu diria que há solução a longo prazo, caso entendamos que outros fatores também podem ser melhorados. A violência dos jovens e o envolvimento com o crime não podem ser resolvidos por si sós. Sinceramente, não acredito no fim da corrupção, por exemplo. São problemas que dependem de melhorias sociais, econômicas e de alteração da cultura. O que me torna descrente é a dependência de outros fatores.
Por outro lado, também sei que dizer isso não basta, e não jogo a toalha. Reconheço que há uma contradição nisso. Mas pense bem: como vou dizer para um jovem largar o fuzil para procurar emprego? Eles estão nessa porque não querem o emprego dos pais, não querem ser caixa de supermercado ou empregada doméstica.
As favelas são um bolsão do que há mais de miséria e ignorância. Não estou falando das exceções, mas da maioria. Quem está lá não fez faculdade, não teve oportunidade para nada. São os piores seres humanos, no aspecto social. Por isso chamamos de favela.
Por isso ser bandido não é desvantagem. Não podemos resolver a situação sem mudarmos a realidade. E não falo só do Rio de Janeiro. Se a violência está do jeito que está em São Paulo, uma cidade grande, que bem ou mal oferece uma estrutura, imagina quem mora numa favela no Piauí.
O grande problema é perceber que a solução está atrelada a pessoas sem credibilidade alguma.
Rets - Mas se não é possível ver solução, todo o esforço que se faz atualmente para convencer jovens a não entrar para o crime é inútil?
Celso Atahyde - Não é inútil, é contraditório. Meu papel é alertar, dar contribuição à vida dos jovens, mostrar exemplos e alternativas. Mas dizer que vou recuperar alguém é estranho. Só vou dizer para alguém sair do crime se tiver algo para oferecer em troca. Não estou falando dos jovens com quem trabalho, mas de uma questão geral. Afinal, por mais desenganada com a vida, por mais desesperançosa, a pessoa sempre vai procurar sobreviver o máximo possível.
A situação na qual esses jovens se encontram é como um câncer. Depois de procurar um médico, temos duas opções: jogar a toalha ou procurarmos a cura.
Quem pensa diferente é porque não conhece a cena como eu. Poucas pessoas tiveram acesso ao que eu vi. Viajamos por diversos estados e tivemos total abertura dos entrevistados para conversar com eles. O resultado é bem diferente do que o que seria obtido por um sociólogo, por exemplo. A mim, tratavam como um irmão, como um igual. É a mesma diferença da conversa entre um preso e sua visita e entre ele e o juiz. Com a visita, ele fala de peito aberto, sem medo. Com o juiz, abaixa a cabeça, põe a mão para trás e não fala tudo o que sabe.
Rets - Você falou que o trabalho de um antropólogo é bastante diferente e não tão completo quanto o seu. Como foi, então, a relação com o Luís Eduardo Soares para escrever esse livro?
Celso Atahyde - O Luís Eduardo é uma das poucas pessoas da academia que eu respeito. Reconheço que meu conhecimento não é grande, mas ele é um dos poucos que merecem respeito, pelo trabalho que já fez. Juntar as idéias dele com as minhas e as do Bill foi uma provocação. Ele oferece uma compreensão mais racional sobre o tema, mas o que nos diferencia é a vivência.
É como eu escrever sobre ser mulher. Por mais que eu tente entender o assunto, nunca fiquei grávido, nunca fui mãe de ninguém, logo não vou poder dar um retrato mais detalhado sobre isso. A pesquisa segue a mesma linha.
Rets - E como surgiu a idéia de fazer o livro e o filme?
Celso Atahyde - Não foi uma idéia, é nossa vida. Não optei por trabalhar com isso, nosso envolvimento é natural. O livro, o filme, tudo é desdobramento. Isso faz parte da música do Bill e do meu trabalho.
Rets - Vocês filmaram algumas das entrevistas que fizeram. Isso vai virar um documentário? Como está o trabalho em cima do material?
Celso Atahyde - Não há um filme a ser feito. Você fala isso por causa do “Soldado do Morro” [clipe da música de MV Bill que mostra cenas de jovens armados em favelas brasileiras] e do "Falcão" [documentário feito por Athayde e MV Bill sobre jovens envolvidos com tráfico, ainda inédito]. As entrevistas estão filmadas, mas não há compromisso de tornar isso um filme ou um documentário. É hora de esperar o resultado do livro para ver que caminho tomar. Não há nenhuma prioridade, o livro não foi uma prioridade.
Rets - Você acredita que os jovens das favelas e seus entrevistados vão ler o livro?
Celso Atahyde - Só se uma pequena parte tiver interesse, pois a maioria morreu. Outros não vão ler porque não lêem nada mesmo – nem livro, nem jornal, nem revista... O preço também dificulta o acesso. Em relação à linguagem, não vejo problema, pois escrevemos do jeito que falamos, então o texto está fácil.
Ainda assim, não acredito que leiam. Ao mesmo tempo, algumas das pessoas que podem ler são as mesmas que podem resolver o problema. Precisamos interagir com o poder – e o poder vai ler, com certeza. Tanto que a primeira tiragem já está esgotada.
Rets - Vocês viajaram por vários estados entrevistando jovens envolvidos com o tráfico de drogas. Foi possível perceber diferenças entre eles?
Celso Atahyde - Falar sobre comportamento abrange muitas coisas. Cada cidade possui um comportamento diferente e oferece motivações diferentes para os jovens entrarem no crime. Se um antropólogo perguntar por que entraram, o jovem vai responder o chavão de que precisava comer. Vai dizer isso porque é verdade, mas não é tudo. Por exemplo: o que justifica um seqüestro? Nada além da vontade de ficar rico no dia seguinte. Ou seja, eles não sabem dar resposta a essa pergunta, pois são várias as respostas.
A entrada para o crime é como o cigarro: você compra por causa do vício, de vaidade, por ambição. Não existe uma razão específica, mas razões variadas. Em linhas gerais, a causa é financeira, sempre. A necessidade do dinheiro é que varia. Podem querer dinheiro para comer, para se vestir legal, para ter acesso à felicidade. Esses jovens querem o mesmo que os filhos da elite, no fim das contas.
Rets - E em relação às comunidades? Há alguma diferença no relacionamento deles com os locais onde moram?
Celso Atahyde - A relação é sempre de morador. Ao mesmo tempo em que protege um lugar, aterroriza-o quando quer ganhar espaço. Quando ganha, distribui afeto. É como um trabalho qualquer. Quando se quer subir de posição, é preciso ser mais agressivo. Depois que ela foi conquistada, é preciso mais carinho com os outros para mantê-la.
Rets - Em que cidade a situação é pior?
Celso Atahyde - Em nenhuma a situação é mais dramática do que no Rio, mas outras também são muito preocupantes. O Rio possui muita mídia ao seu redor. Há estados maiores que recebem menos atenção. No Piauí, por exemplo, o crime é intenso, mas como não é organizado, a situação se torna caótica. É o crime pelo crime, ninguém sabe o que pode acontecer em nenhum momento.
Rets - Então a organização do crime no Rio facilita a vida das pessoas que convivem com ele?
Celso Atahyde - Sim. Da mesma forma que o jogo do bicho precisou se organizar para não acabar, dado o tamanho das brigas entre eles, o tráfico faz o mesmo. É preciso delimitar espaços de atuação.
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