Você está aqui

Meio ambiente na prateleira

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets





Meio ambiente na prateleira


Foram sete anos de idas e vindas, disputas e acordos políticos, nuvens e tempestades. Até que, em 16 de fevereiro deste ano, entrou em vigor o Protocolo de Quioto e, com isso, tornou-se oficial um mercado que vinha se desenhando há alguns anos, desde que o acordo internacional foi criado, em 1997: o de créditos de carbono. É a concretização do que prevê o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), presente no Protocolo, e, ao mesmo tempo, o nascimento de um mercado concorrido que pode tanto revigorar a realização de projetos ambientalmente limpos quanto decepcionar aqueles que acreditarem que esta é a única estratégia a ser adotada no esforço de frear as mudanças climáticas.

O Protocolo de Quioto prevê que os países industrializados (especificamente aqueles listados no Anexo 1 da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, que, ao contrário do que o nome parece indicar, não é um evento, mas um tratado internacional; o Protocolo de Quioto funciona como um termo aditivo a este tratado) reduzam suas emissões de gases que causam o efeito estufa em pelo menos 5% em relação aos níveis registrados em 1990. As nações signatárias do documento devem cumprir a exigência até o fim do primeiro período de compromisso do Protocolo, que termina em 2012.

Pelo MDL – uma sugestão brasileira ao processo - países industrializados podem “comprar” certificados de redução de emissão de gases, certificados que são emitidos para projetos implementados em países em desenvolvimento. O órgão que faz esta certificação é o Comitê Executivo do MDL, vinculado à Convenção-Quadro das Nações Unidas para Mudanças Climáticas. O projeto, tendo recebido o certificado, pode vendê-lo, permitindo que o país comprador possa emitir a quantidade de gás (dióxido de carbono, metano etc.) que o projeto conseguiu evitar que fosse jogada na atmosfera.

Na prática, o Mecanismo permite que países não tenham que reduzir suas atividades industriais, o que poderia ser desastroso para a economia dessas nações. O princípio do MDL é simples: a atmosfera é uma só. Assim, tanto faz que a redução aconteça no Brasil ou no Japão. O planeta será igualmente beneficiado. Atualmente, existem no mundo apenas quatro projetos certificados – o nome correto da certificação é Reduções Certificadas de Emissão -, um deles no Brasil.

“Um estudo feito pelas Nações Unidas identificou 90 projetos sendo elaborados dentro das regras do MDL. No Brasil, seriam 23, mas já há a expectativa de que este número esteja em torno de 30”, explica Marcelo Rocha, pesquisador do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da Esalq-USP e consultor no tema.

O Comitê Executivo do MDL estabeleceu que cada país deve ter uma Autoridade Nacional Designada para avaliar projetos apresentados e emitir um parecer dizendo se eles estão de acordo com os critérios de desenvolvimento limpo. No Brasil, esta autoridade é a Comissão Interministerial de Mudanças Climáticas, instituída em 1999 e cuja Secretaria Executiva fica no Ministério de Ciência e Tecnologia. Os projetos devem ser apresentados à Comissão – que então os aprova – e, assim, podem ser submetidos ao Comitê Executivo do MDL, da ONU.

Até hoje, apenas dois foram aprovados pela comissão brasileira: o NovaGerar, de geração de energia a partir de gases de aterro sanitário no município de Nova Iguaçu (RJ), e o projeto Vega Bahia, que pretende realizar atividade semelhante em aterro na cidade de Salvador (BA). O NovaGerar é um dos únicos quatro no mundo já aprovados pela ONU.

Mero comércio ou compromisso?

Mas o tom excessivamente comercial adotado para tratar do assunto pode comprometer os motivos e a ideologia que estão por trás dos esforços de redução de emissão de gases que causam efeito estufa? É a pergunta que se coloca em uma situação na qual projetos estão sendo criados nos países em desenvolvimento apenas com a intenção de atrair recursos dos países que precisam comprar créditos de carbono (projetos que, de fato, podem trazer algum benefício ao meio ambiente, mas sua motivação primária não é essa) e em um contexto no qual os certificados já estão até sendo considerados uma “nova moeda”. Além disso, o MDL resolverá até que ponto o problema das emissões de gases poluentes?

“Mercado é mercado. A atividade é comercial mesmo. Não se pode ter escrúpulos ao falar disso”, defende Délcio Rodrigues, técnico associado da Vitae Civilis – Instituto para o Desenvolvimento, Meio Ambiente e Paz, ONG que acompanha ativamente os assuntos relacionados com mudanças climáticas, participando, inclusive, de fóruns e redes nacionais. “Mas é preciso ter em mente que a existência desse mercado não é uma política que possa ser executada sem sequer se entender o que motiva tudo isso. Ou seja, as iniciativas têm de saber o que significa o esforço, que é o de buscar a estabilização do clima”, enfatiza.

Segundo Rachel Biderman Furriela, uma das coordenadoras do Observatório do Clima - Rede Brasileira de Organizações Não-Governamentais e Movimentos Sociais em Mudanças Climáticas, “houve uma grande discussão ética sobre se seria correto comercializar créditos relacionados à redução de emissão de gases. Acabou vencendo essa tese economicista que defende a criação de um mercado em torno disso. É um fato e não deixa de ser uma das formas possíveis para se caminhar para um abrandamento dos efeitos das mudanças climáticas”. Segundo ela, está havendo uma “enorme procura” por projetos que possam vender seus certificados de redução de emissão, já havendo mercados articulados. “O mercado europeu é um exemplo. Além disso, há mercados alternativos sendo criados, Chicago já tem uma Bolsa de Carbono”.

O Brasil segue pelo mesmo caminho, e ainda neste ano a Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F) colocará em operação, em parceria com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, o Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE) - um mercado eletrônico de títulos de diminuição de lançamentos atmosféricos de carbono. Toda a movimentação gira em torno da redução de gases. O mercado estimado é de U$ 13 bilhões até 2007, segundo estimativa do ministro Luiz Fernando Furlan, na ocasião de lançamento do MBRE.

O processo de entrada em operação dessa bolsa virtual encerra duas etapas: a primeira é de criar um mercado primário, criando-se um banco de projetos que se encaixem nas regras do MDL. “Esta etapa pretendemos concluir até o final do primeiro semestre”, diz Jorge Galvão, chefe do escritório do Rio de Janeiro da BM&F. Na segunda etapa, a intenção é promover a criação de um mercado secundário de créditos de carbono e o desenvolvimento de um mercado futuro. “A criação do banco de projetos e a operação através da BM&F ajuda a conferir transparência às negociações”, opina Galvão. Rachel concorda neste ponto: “A presença de um mercado de carbono no âmbito da BM&F é positiva, ajuda a garantir a qualidade à comercialização”.

Um exemplo do quanto as pessoas estão vendo oportunidades nesse mercado é o perfil de quem participa do curso sobre Mercado de Carbono, oferecido pelo Instituto de Pesquisas Ecológicas (Ipê), com duração de três anos. “Atendem ao curso predominantemente advogados que querem entender como funcionam os trâmites do processo de concessão dos certificados e pessoas de empresas”, explica Patrícia Paranaguá, da coordenação do Centro Brasileiro de Biologia da Conservação, a unidade de capacitação do Ipê. E o objetivo do curso é exatamente este: atualizar pessoas que têm interesse em trabalhar com Mercado de Carbono e abordar como as atividades de reflorestamento e de energia limpa podem obter benefícios do MDL e participar desse mercado.

Uma outra janela de oportunidade é para as próprias ONGs que já têm entre as suas atividades a criação e implementação de projetos de estímulo às energias limpas, seqüestro de carbono, manejo de resíduos sólidos, reflorestamento etc. Essas organizações, por causa de sua experiência, teriam facilidade de formular projetos factíveis e em concordância com as regras.

“Há alguns desafios dos quais as ONGs precisam estar cientes. A organização precisa ter credibilidade, ser séria e estar ciente de que, ao vender os créditos de carbono, está se comprometendo seriamente, assumindo um contrato que vai ter de respeitar, manter. As regras respeitam uma relação comercial”, alerta o consultor Marcelo Rocha.

O próprio Ipê já está desenvolvendo uma proposta que apresentará à Comissão Interministerial, a ser implementada na região do Pontal do Paranapanema (SP). Eduardo Ditt, pesquisador da instituição, explica que “a intenção é atrair recursos de créditos de carbono para beneficiar pequenos agricultores - por meio de atividades de sistemas agroflorestais e práticas não-convencionais - e, ao mesmo tempo, realizar uma ação de reflorestamento, com plantio de árvores nativas, com intuito ainda de restauração da paisagem”.

Apenas mais uma forma

As promessas desse novo mercado são tantas na interpretação das pessoas, que muitas se esquecem de que ele está longe de resolver por completo a questão das mudanças climáticas. “Para solucionar, é preciso uma combinação de coisas: leis, incentivo (ou desincentivo) econômico - é aí que entra o mercado de carbono - e educação. É a somatória desses fatores que pode conseguir influenciar positivamente a questão das mudanças climáticas”, pondera Rachel, do Observatório do Clima. “Não existe um remédio só. Somar iniciativas econômicas, legais e educacionais é a única alternativa”, completa.

Para Marcelo Rocha, “o mercado facilita, não resolve. O problema é muito mais amplo e só será solucionado se houver uma série de ações, algumas através do mercado, outras de obrigações legais, outras que visem à troca de matriz energética etc. Não é só o comércio de créditos de carbono que dará conta desse grande problema”.

Délcio Rodrigues segue a mesma linha de pensamento: “Os recursos que o MDL endereçará para projetos podem ser bem utilizados, mas não são uma arca do tesouro. Não acredito que servirão para promover mudanças estruturais, como as que devem e precisam ser feitas – por exemplo, o abandono de uma cultura fóssil e a adoção de uma cultura renovável. Mas acredito que fomentará o surgimento de projetos inovadores. Ou seja, os recursos são poucos para uma política de Estado. Isso tem que ser feito de outras formas e em outras frentes. As mudanças devem se dar de diversos modos”, afirma o técnico do Vitae Civilis. “O MDL - e o mercado de carbono que ele criou - é a menor das iniciativas possíveis para se chegar à estabilização do clima. É uma coisa menor – e tem que ser executada de maneira holística, pensando-se e entendo-se o todo”, conclui.

Maria Eduarda Mattar

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer