Autor original: Italo Nogueira
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A imagem de grandes orfanatos repletos de crianças esperando uma família adotiva não condiz mais com a realidade dos abrigos infantis. Muitas das que ali estão esperam seus pais e suas mães naturais, que não têm como manter os filhos em casa por causa da pobreza e da carência material.
É o que revela estudo produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que dá origem ao livro “O direito à convivência familiar e comunitária – os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil”. A pesquisa faz um mapeamento da situação dos abrigos nos país – foram analisados 589 estabelecimentos da Rede de Serviços de Ação Continuada (SAC) do Ministério do Desenvolvimento Social – e das condições em que crianças e adolescentes ingressam e permanecem nessas instituições. A pesquisa aponta para uma mudança na estrutura dos abrigos, em que é necessário criar Centros de Atenção Diária (CADs), capazes de receber crianças somente durante o dia para que os pais, que não têm onde deixar seus filhos, possam ir para o trabalho.
A pesquisa mostra que 87% das crianças abrigadas não são órfãs e que 58,2% mantêm vínculo com a família natural. Estes dados indicam que o abrigamento de muitas dessas crianças extrapola os motivos que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece. A publicação indica que a “violência estrutural” - estado de pobreza e de falta de apoio às famílias - é a grande culpada pelo inchaço dos abrigos. Reestruturado, o abrigo poderia promover a reintegração da criança à sua família original, quando for possível a volta para casa. Atualmente, apenas 14,1% utilizam todos os meios para que isso ocorra [ver tabela abaixo da matéria].
Em entrevista exclusiva à Rets, Enid Rocha, coordenadora da pesquisa, argumenta que é necessário repensar a função dos abrigos para que a convivência familiar e comunitária, direitos básicos garantidos pelo ECA, sejam mantidos, caso o abrigamento seja necessário. Atualmente, de acordo com a pesquisa, apenas 5,8% utilizam todas as formas para manter o vínculo com a família durante o abrigamento.
A coordenadora da pesquisa destaca também que programas de apoio às famílias também devem ser intensificados para que o abrigamento não seja feito de forma indiscriminada.
Rets - Você aponta no livro a “violência estrutural” como um dos fatores principais do inchaço dos abrigos. O que seria essa violência estrutural?
Enid Rocha - A violência estrutural são as condições de precariedade em que a família vive hoje: condições insalubres, moradias precárias, desemprego. A gente mostra no estudo que não dá para dissociar essa condição estrutural da violência que ocorre no âmbito da família. A violência estrutural é a falta de aplicação de direitos sociais fundamentais, problema que grande parte das famílias brasileiras sofre hoje. E isso faz com que uma criança oriunda de famílias das camadas mais pobres da sociedade tenha mais chances de viver em um abrigo, receber uma medida de abrigamento, do que outras.
Rets - Tendo em vista esta situação, a aplicação de mais recursos em políticas que evitassem essa violência estrutural ao invés de se aplicar o que hoje é investido em abrigos seria uma solução viável?
Enid Rocha - Não, os abrigos não podem ser considerados vilões da história. Pelo contrário, ele é uma instituição necessária. Há situações, que não a de pobreza e de carência material - como a de violência, por exemplo - em que a criança tem que ficar, ao menos temporariamente, afastada daquela família. Nós mostramos no estudo que é necessário regular a porta de entrada do abrigo, porque a Legislação Brasileira tem como regra a convivência da criança com a família natural e veta o afastamento do convívio familiar por motivos de carência material e pobreza. Nesse caso, também segundo a legislação, o Estado precisa apoiar aquela família para que ela consiga cumprir adequadamente a sua função. Isso pode acontece, por exemplo, inserindo-a em programas sociais, como o Bolsa-Família. E exige também que o afastamento das crianças de sua família, tanto para abrigo como para família substituta, seja a última medida. Antes delas existem uma série de outras, como, por exemplo: a criança que tem vivência de rua é entregue aos pais sob termo de responsabilidade de obrigatoriedade de freqüência à escola. No caso de violência na família, quem deve sair é o agressor, e não a criança. O estudo mostra que os abrigos, por estes problemas estruturais, vêm suprindo uma carência de políticas de apoio voltadas à família, que acaba colocando, por proteção, a criança nestas instituições.
Rets - O abrigo acaba cumprindo papéis que não seriam dele?
Enid Rocha - Exatamente. Nosso estudo analisa, uma vez que o pior já aconteceu, que a criança foi parar em um abrigo, como esta instituição deve ser, o que ela deve fazer para contribuir para a promoção dos direitos de convivência familiar e comunitária. Ao abrigo cabe a função de não deixar o vínculo familiar ser rompido. Então ele deve promover visitas da criança a sua família, oferecer apoio social, servir de ponte entre a família e um órgão executivo para a inserção em programas sociais de auxílio.
Rets - A violência estrutural, no curto e médio prazo, não tem previsão para solução. Não seria o caso de realmente repensar a função destes abrigos?
Enid Rocha - Acho que sim. Se a gente identifica que crianças e adolescentes estão nos abrigos por motivos relacionados à pobreza, acho que tem que ter, e isso o Secretário [Especial de Direitos Humanos] Nilmário [Miranda]também disse em entrevistas, um grande mutirão para fazer a revisão da pertinência da medida que está sendo aplicada. Se é um problema estrutural, a gente não pode cruzar os braços e esperar resolver. O que cabe agora são os programas emergenciais, tais quais os de transferência de renda (como o Bolsa Família), e tantos outros promovidos pelos estados. Uma família que chegasse ao abrigo por esse motivo deveria, cumprindo-se a legislação, ser inscrita nesses programas.
Rets - Mas o abrigo teria que ter uma estrutura para receber estas pessoas...
Enid Rocha - Sim, as instituições de abrigo precisam se reordenar. Foi-se o tempo em que elas deveriam ser aquelas instituições massificadas, como eram grandes orfanatos. Desde 1990, com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), já existe um processo de mudanças destas instituições. Eles têm que primar pela promoção do direito de convivência familiar e comunitária, fazer atendimentos personalizados em pequenos grupos, não desmembrar grupos de irmãos, ser o mais semelhante possível a uma residência, a uma rotina familiar. Isso deve ser feito. E para isso precisa-se de política pública de apoio.
Rets - Existem também os Centros de Atenção Diária (CADs), certo?
Enid Rocha - Sim. Em nosso estudo eles nem eram, inicialmente, objeto de pesquisa. Mas como apareceu este tipo de instituição, resolvemos considerá-las, pois prestam grande serviço para a comunidade. Muitas mães ou responsáveis deixam seus filhos nos abrigos por pura falta de opção, porque precisam trabalhar. Como a partir dos sete anos não existe a possibilidade de deixar na creche, então no desespero, por pura falta de opção, abandonam as crianças nos abrigos. Se a gente tivesse uma política pública que investisse em mais instituições desta natureza, onde a mãe pudesse deixar o filho pela manhã e buscasse à noite, quando volta do trabalho, seria de grande apoio à família. Existe um movimento de reorientação dos abrigos, que permita que a instituição ofereça este apoio à comunidade. Quanto mais flexível for um abrigo, melhor.
Rets - Neste contexto, qual a importância dos abrigos não-governamentais?
Enid Rocha - Eles têm toda a importância, pois são a maioria, representando 68,3% do universo que pesquisamos. São profissionais voluntários, com a maior dedicação para proteger e acolher a criança. Em nossa pesquisa, 59% dos dirigentes deste tipo de entidade são voluntários, não recebendo nada como remuneração. No entanto, não há uma política pública que coloque o abrigo como centro. Por isso, eles carecem de financiamento, sendo sustentados, em grande parte, por recursos próprios, como doação. Precisam capacitar seus quadros de funcionários e necessitam contar muito com o trabalho voluntário.
Rets - O estudo indica que cerca de um terço da arrecadação dos abrigos não-governamentais vem de recursos públicos. Seria o caso desta verba ser direcionada para instituições públicas?
Enid Rocha - Acho que não. A gente pretende mostrar que a contribuição dos recursos públicos deveria ser maior para os abrigos não-governamentais. Deveria existir uma política de financiamento para essas instituições porque a criança em situação de risco é público prioritário do Estado. A criança é por excelência o público da Política Nacional de Assistência Social (PNAS). A própria Constituição diz que é dever da família, do Estado e da sociedade cuidar do bem-estar da criança e do adolescente. Esse não é um problema só do governo ou só da sociedade. E o que a gente vê é que quem mais cuida é a sociedade, como as instituições não-governamentais. O que se mostra importante é que o governo também cumpra sua parte, com políticas de financiamento.
Rets - A senhora acredita que alguns destes abrigos, tanto governamentais como não-governamentais, não contribuem como poderiam, a fim de que seja mantida uma demanda constante de investimentos no setor?
Enid Rocha - Não, acredito que não. Acho que esse não é o fator mais importante do problema. Toda a história de proteção à criança e ao adolescente no Brasil esteve sempre ligada à Igreja, a um atendimento da sociedade. O Estado demorou a entrar nesta área. Se a gente tem hoje esse quadro de mais abrigos não-governamentais, é reflexo de um descuido, uma desatenção do Estado. É uma questão que tem muito apelo na sociedade, que acabou assumindo uma função que é mais do Estado.
Rets - A senhora indica que outro fator do afastamento da criança da convivência familiar seria o excesso da prática da adoção, ao invés de se usarem outros recursos que não quebrem de vez o vínculo da criança com sua família natural...
Enid Rocha - O que nós indicamos é que existem outras modalidades de abrigamento. Quando a criança vai para a instituição de abrigo, nós chamamos de abrigamento institucional. Existem formas alternativas, que a gente chama de acolhimento familiar. Ao invés de a criança ficar em uma instituição, existe a opção de famílias voluntárias acolherem essa criança durante o período que for necessário. Mas aqui no Brasil estas medidas ainda são muito incipientes. Existem em alguns estados, mas não existe uma política, um apoio para que isso seja mais freqüente.
A questão da adoção é ao contrário. No senso comum, as pessoas acreditam que os abrigos estão lotados de crianças para serem adotadas, que são órfãos, que não têm famílias. No entanto, a nossa pesquisa indica que 87% das crianças abrigadas têm família, e metade tem vínculo com a família, que visita e se faz presente. Das crianças abrigadas, só 10,7% poderiam ser adotadas. A criança para ser adotada precisa ser totalmente destituída do poder da família natural.
Rets - O centro da questão seria então a reorientação do trabalho dos abrigos?
Enid Rocha - Do trabalho dos abrigos e do apoio à família. Mas não só dos abrigos, mas também do Judiciário e das autoridades responsáveis pela aplicação da medida de abrigo. Em um questionário da nossa pesquisa em que os representantes dos abrigos selecionavam três instituições que mais intermediavam o abrigamento, o Conselho Tutelar aparecia em 88% das listas, e as Varas de Família, em 85%. Existe uma utilização indiscriminada dessa medida.
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