Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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No Dia do Índio, comemorado em 19 de abril, o governo federal homologou a criação de cinco reservas indígenas, que totalizam 224,8 mil hectares e estão localizadas nos estados de Roraima, Tocantins, Maranhão e Pará. Uma boa notícia para os povos indígenas, cuja saúde não anda muito bem - e é um dos principais pontos de manifestação no contexto do Abril Indígena*. Recentemente, crianças das tribos Guarani Nhandeva e Kaiwoa, ambas em Mato Grosso, morreram de desnutrição. Os casos serviram de alerta - trágico - para um problema antigo: a desatenção com o bem-estar dos indígenas em várias partes do país.
De acordo com a Fundação Nacional do Índio (Funai), existem no Brasil atualmente cerca de 345 mil indígenas, o equivalente a 0,2% da população nacional, divididos em 215 sociedades. Seus maiores problemas de saúde, segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), são diarréias e infecções respiratórias, como a pneumonia. Também são comuns casos de desnutrição, verminoses, anemia, tuberculose e afecções dermatológicas, sobretudo a escabiose, além de malária e hepatite. De acordo com o livro “Epidemiologia e saúde dos povos indígenas no Brasil”, editado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), há ainda aumento de casos de “doenças sociais” como alcoolismo e depressão. Todos esses males fazem com que a taxa de mortalidade dos índios brasileiros seja de três a quatro vezes maior do que a média nacional, dependendo do estado.
Os problemas não param por aí. A publicação revela que o abandono de hábitos alimentares tradicionais por outros ricos em gorduras e açúcares repercute de forma negativa na saúde bucal e nutricional. O alcoolismo, por sua vez, agrava doenças como cirrose, diabetes, hipertensão arterial, doenças do coração, do aparelho digestivo, depressão e estresse. Ele ainda aumenta o número de mortes causadas por fatores externos como acidentes, brigas, quedas, atropelamentos etc.
Dados do Ministério da Saúde mostram, entretanto, melhora na saúde, apesar dos números ainda serem preocupantes. A incidência de tuberculose segundo o Ministério, por exemplo, caiu de 108,6 casos para cada grupo de 100 mil habitantes, em 2002, para 64,32, em 2004. A mortalidade infantil despencou de 112 por mil nascidos vivos em 1998, para 47,4 por mil crianças nascidas vivas, em 2004.
Mesmo com a queda, o que mais preocupa ainda é a mortalidade infantil. Para efeito de comparação, em 2004 a taxa nacional registrada foi de 26 mortos a cada mil nascidos. Quase metade das mortes registradas em aldeias, de acordo com Fundação Nacional de Saúde (Funasa), é de crianças com menos de cinco anos de idade. As causas são desnutrição, infecções respiratórias e parasitoses. Foram esses males que levaram à morte crianças de Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul, por exemplo. O guarani Rafael Nunes, de dois anos, morava na aldeia Piraquá, em Antonio João, a 274 Km de Campo Grande, e foi a décima-sexta criança indígena a morrer em decorrência de leishmaniose e desnutrição desde março. Nunes faleceu em 1º de abril em um hospital da capital mato-grossense. Depois dele, houve mais cinco mortes com o mesmo perfil.
Os 21 casos registrados fizeram com que o assunto viesse à tona, críticas aumentassem e o governo anunciasse providências. Uma comissão externa de investigação foi formada na Câmara para apurar responsabilidades. Alexandre Padilha, coordenador da Comissão de Saúde Indígena da Funasa, um dos integrantes da comissão, afirmou, durante audiência da comissão na Câmara, ser necessário ter mais cuidado na hora de apontar culpados. Para ele, o Hospital da Mulher, para onde a maioria das vítimas foi encaminhada tem sua quota de responsabilidade, pois outras 38 crianças indígenas desnutridas foram internadas no Centro de Recuperação Nutricional de Dourados, administrado pela Funasa e pela Missão Evangélica Caiuá, e nenhuma morreu.
Disse também ser necessário investigar melhor as causas do índice de desnutrição entre os guaranis-caiuás, atualmente próximo de 15%. Segundo o coordenador, outras etnias apresentam índices bem menores, de cerca de 2%, apesar de estarem submetidas às mesmas políticas e condições. Padilha afirmou também, ainda em audiência na Câmara, que uma “verdadeira operação de guerra” foi montada para resolver esses problemas. A Funasa está padronizando condutas hospitalares, avaliando a alimentação de diversas aldeias e adotando medidas de saneamento básico.
A Fundação Nacional do Índio (Funai) aponta a alta concentração populacional nas aldeias guaranis como um dos fatores que têm causado desnutrição. Não há áreas de plantio suficientes para alimentar toda a população. Das 22 terras indígenas guaranis, 13 estão sendo contestadas na Justiça, o que impede a homologação.
O governo já liberou R$ 4,1 milhões para melhoria da rede de abastecimento das aldeias das aldeias Bororó, Jaguapiru e Amambaí, todas no Mato Grosso do Sul. Este ano o órgão já investiu R$ 400 mil na instalação de caixas d´água e remanejamento da rede de abastecimento existente. A meta é levar água potável para todas as áreas indígenas do estado, beneficiando 53 mil pessoas. Também serão distribuídas cestas básicas e de multimistura (preparado com reforço nutricional). Os índios sul-matogrossenses receberão ainda orientação nutricional e suplementos de vitamina A.
Política de Saúde
As medidas são bem-vindas, mas parecem não agradar totalmente a quem está envolvido com o dia-a-dia dos índios. “Não existe uma política indigenista que contemple a integridade dos problemas”, afirma Saulo Feitosa, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Feitosa critica a implementação do modelo de saúde diferenciado para os índios. “Ele foi assimilado só em parte”, reclama. Entre os problemas apontados estão a localização dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), que, em sua avaliação, foi decidida de forma aleatória, sem levar em conta aspectos étnicos.
Os DSEIs fazem parte do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena e estão vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS). Seu objetivo era oferecer um serviço de saúde específico para as populações indígenas, contando, inclusive, com os seus saberes tradicionais e sendo organizado por membros do governo e dos povos. Eles começaram a ser implementados quando a política de saúde indígena passou a ser responsabilidade da Funasa em decorrência da aprovação da “Lei Arouca”, em 1999, e hoje existem 34 unidades. Cada uma possui um agente indígena de saúde, que acompanha pacientes e campanhas de vacinação. Eles têm autonomia financeira e administrativa.
A localização, de acordo com o site da Funasa, “se pautou não apenas por critérios técnico-operacionais e geográficos, mas respeitando também a cultura, as relações políticas e a distribuição demográfica tradicional dos povos indígenas, o que necessariamente não coincide com os limites de Estados e/ou Municípios onde estão localizadas as terras indígenas”. O Ministério da Saúde afirma que 3,6 mil aldeias possuem serviços de saúde especializados.
Outro problema apontado por Feitosa é a qualidade da terceirização implementada nos DSEIs. Para facilitar o atendimento e respeitar as peculiaridades de cada povo, a Funasa decidiu firmar convênios com ONGs. “Em alguns casos”, reclama o coordenador do Cimi, “as parcerias geraram problemas graves”. Sem citar casos específicos, ele aponta o desrespeito às tradições e a má aplicação de recursos como exemplos. Além disso, reclama do pouco tempo de duração dos convênios (dois anos), que estaria gerando uma rotatividade muito alta de profissionais, o que prejudicaria a atuação dos médicos e agentes de saúde.
O coordenador médico do Conselho Indigenista de Roraima, Paulo Daniel Moraes, em artigo na página do Cimi, reclama da culpabilização das ONGs por uma série de problemas que, na verdade, são responsabilidade do Estado, cujo comportamento em 2003 e 2004 estaria marcado pela falta de diálogo e erros administrativos. “Os avanços que se esperavam, com a gradual retomada da capacidade gestora do órgão responsável e a redefinição dos mecanismos e parâmetros das parcerias, de forma a assegurar a continuidade da assistência e os inegáveis progressos obtidos em muitos setores, definitivamente não aconteceram. A deterioração da situação de saúde nas comunidades é a conseqüência natural, e só não é mais grave devido à extraordinária dedicação e espírito de sacrifício demonstrado por um grande número de profissionais que se dedicam à causa indígena, independente das mazelas ideológicas e administrativas”, escrevia Moraes em junho do ano passado.
A Funasa afirma que está em fase de implementação da assistência permanente. Na saída de um seminário sobre saúde indígena realizado no dia 19 de abril na Câmara, o ministro da saúde, Humberto Costa, declarou a jornalistas que todas as instituições envolvidas com desvio de dinheiro público foram afastadas do programa. “Substituímos todas as instituições que tinham denúncias de desvios de recursos. Fizemos uma reestruturação desse trabalho", afirmou Costa.
Outras pastas
O ministro ainda tocou em um assunto considerado vital por líderes indígenas: a interligação da questão da saúde com outras. “De fato, o problema deles é muito mais complexo e, para ser resolvido, é preciso envolver uma ação de governo, na qual a saúde faz parte", declarou Humberto Costa. De acordo com Feitosa, do Cimi, esse é um ponto fundamental, pois os problemas de saúde muitas vezes decorrem de fatores alheios aos índios. “São poucas as tribos que habitam seu território original. Geralmente ficam em reservas fora de sua terra tradicional ou, quando estão nelas, já houve tantas modificações no ecossistema que não é possível mais reconhecê-las”, lamenta.
Reconhecendo a necessidade de investimentos não só na área de saúde para melhorar a situação dos indígenas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva homologou cinco terras indígenas e ainda anunciou medidas que integram um “pacote de cidadania”. Entre elas, a eletrificação de aldeias e a abertura de escolas e postos de saúde. Estão envolvidos no pacote os ministérios da Educação, Saúde, Cultura, Desenvolvimento Agrário e Justiça, por meio da Funai. “Todos os esforços estão sendo feitos para nos aproximar cada vez mais dessas comunidades. Há uma dívida social imensa com a população indígena e o governo tem somado todos os seus esforços para resgatar essa dívida”, discursou a secretária-executiva do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), Márcia Lopes, durante a cerimônia de lançamento das ações.
O MDS, por exemplo, afirma já estar fazendo bastante para melhorar a vida dos indígenas. O Ministério lembra ter distribuído, em 2004, 35,7 mil cestas e fixou a entrega de 75 mil para este ano. Também disponibilizou R$ 7 milhões por intermédio do programa Carteira Indígena, que financia projetos de implantação de lavouras comunitárias, artesanato e extrativismo apresentados por associações indígenas.
Mais uma vez, os líderes indígenas não ficaram satisfeitos e pediram mudanças na política indigenista. Eles querem que a educação e a saúde voltem a ser responsabilidades da Funai, órgão, que, segundo eles, lida melhor com a diversidade dos povos e conhece mais sua realidade. “A reivindicação é pelo controle social. Eles querem acesso direto a quem pode resolver seus problemas”, diz Gilberto Azanha, antropólogo do Centro de Trabalho Indigenista. Segundo Azanha, na época em que a Funai era responsável pela saúde, era mais fácil fazer reclamações. Hoje, os distritos nem sempre estão próximos da aldeia e as reclamações devem ser repassadas a coordenadores de áreas, que, por sua vez, repassam o pedido a seus superiores no SUS. Porém, ressalta, isso não significa que a Funai ainda tenha estrutura para realizar esse tipo de trabalho. “O caminho é melhorar o funcionamento dos distritos e a capacidade de fiscalização da Funasa”, analisa.
Com a saúde em risco e ainda lutando por muitos de seus direitos, os indígenas brasileiros, tendem a concordar com o que disse o presidente Lula em seu discurso do dia do índio: “Vai levar muitos anos para que a gente consiga devolver aquilo que foi tirado de vocês.”
*O Abril Indígena consiste em uma série de eventos e protestos programados para o mês de abril. Realizadas por diferentes instituições indígenas, muitas das manifestações estão sendo articuladas pelo Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas – que reúne diversas organizações, entre elas o Cimi. Um exemplo destas atividades é um grande acampamento indígena em Brasília, do dia 25 de abril a 3 de maio, na Esplanada dos Ministérios. O Abril Indígena foi convocado pelo Manifesto de Abril, lançado em 31 de março, em Brasília, e assinado por uma série de organizações. (O manifesto pode ser lido no endereço que se encontra na área de Links Relacionados.)
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