Autor original: Italo Nogueira
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Os passos das pesquisas para a vacina anti-HIV podem não estar conseguindo alcançar o avanço da epidemia de aids no mundo, que infecta cerca de 14 mil pessoas por dia, o que pode gerar uma crescente expectativa e, às vezes, desilusão. No entanto esta suposta lentidão é parte do desafio científico, que tem como adversário um vírus mutante e de difícil compreensão.
Com o objetivo de esclarecer dúvidas e discutir sobre as pesquisas na área, a International Aids Vaccine Initiative (IAVI), ONG voltada para pesquisa de vacinas anti-HIV, e o Grupo de Apoio à Prevenção à Aids do Rio Grande do Sul (Gapa-RS) promoveram um ciclo de seminários para jornalistas em diferentes cidades. No último dia 18, foi a vez do Rio de Janeiro. Mônica Barbosa, coordenadora do Projeto Praça Onze, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), criado em 1995 e que também faz testes desde 2001, e Ronaldo de Lima, diretor sênior da IAVI, apresentaram, respectivamente, um panorama dos protocolos que estão sendo desenvolvidos no Brasil e no exterior.
A vacina estimula o organismo a produzir anticorpos para que, caso tenha contato com o HIV, já esteja protegido. Para isso, através do produto é inoculada uma imitação do vírus da aids, inofensiva ao corpo humano, para que estimule a produção dos glóbulos brancos – responsáveis pela proteção contra organismos estranhos.
Um dos maiores problemas da produção vacinal contra a aids é a quantidade de tipos e subtipos do HIV, o que praticamente impossibilita a produção de uma vacina universal. Além disso, o meio científico ainda não sabe de que tipo de resposta o organismo precisa para se imunizar. No entanto sabe-se que a futura vacina deverá produzir dois tipos de defesa contra o vírus: anticorpos, para combatê-lo diretamente, e células T, que eliminam as células infectadas, que são usadas para a criação de mais HIV.
Atualmente estão sendo testadas 26 candidatas a vacinas e, até hoje, somente uma atingiu a Fase III de testes – em um processo com quatro etapas –, na Tailândia. No entanto só avançou até a terceira etapa para que a logística de um teste do tamanho da Fase III fosse testada para futuras candidatas a vacinas, pois já se sabia que não era um produto promissor. Ninguém arrisca oferecer garantias sobre quando surgirá uma vacina eficaz para iniciar a prevenção, mas, para Ronaldo de Lima, antes de 2010 não se pode esperar muita coisa.
Durante o seminário, Mônica Barbosa comentou que as pesquisas governamentais sobre vacinas são essenciais para que não se repita a experiência dos medicamentos – “que da noite para o dia surgiram na nossa cabeça”, nas palavras da coordenadora do Projeto Praça Onze. A aparição repentina dos anti-retrovirais (ARVs) provocou a batalha pela quebra de patentes, que dificulta e atrasa o acesso a esses remédios.
Após o evento, o diretor sênior da IAVI, Ronaldo de Lima, falou com exclusividade à Rets.
Rets - No Brasil, o Programa Nacional de DST/aids tem priorizado mais a questão dos medicamentos, da quebra de patentes. O senhor acha que falta um investimento estatal na pesquisa de vacinas?
Ronaldo de Lima - O Brasil está envolvido com a questão de vacina para o HIV há muito tempo. O investimento político, o investimento das ONGs, já data de 1990. O que aconteceu neste histórico na questão da epidemia no Brasil foi que em 1996, por exemplo, quando os inibidores de proteases [uma variedade de medicamentos antivirais] chegaram, houve pressão das ONGs para que houvesse distribuição universal dos medicamentos para a aids. Ao mesmo tempo, um teste de vacina já tinha ocorrido no Brasil sem muito sucesso. Tudo isso contribuiu para que o foco fosse para o medicamento. Outras tentativas para criar a vacina ocorreram no mundo inteiro, inclusive a IAVI [International Aids Vaccine Initiative] foi criada nessa época. Fazíamos uma jornada de vacinas a cada dois anos, e eu me lembro bem de que a jornada de 1996 não teve o peso que nós esperávamos por causa da questão dos medicamentos.
Quando a distribuição se estabilizou e as pessoas ficaram mais tranqüilas em relação a isso, o tema das vacinas voltou. Em paralelo, um número maior de testes estava sendo feito no mundo inteiro, inclusive no Brasil. Eu diria agora que a discussão de medicamentos, até por causa da falta que está acontecendo, está sendo priorizada em relação à de vacina.
Eu não diria que falta engajamento, mas a questão prioritária do governo e das ONGs em um determinado período de tempo são os medicamentos. Agora, é inevitável que o tema da vacina avance, porque o Brasil já está envolvido e a gente tem feito um trabalho de parceria para que o governo não deixe de dar a devida importância ao tema.
Rets - A pesquisa em vacina tem maior participação de governos, ONGs ou de indústria farmacêuticas?
Ronaldo de Lima - Não seria de indústrias farmacêuticas e também não é das ONGs. Pelo que eu sei, posso estar errado, só existem duas ONGs específicas para a questão das vacinas no mundo, que são a Iavi e a Avac [Aids Vaccine Advocacy Coalition], também nos Estados Unidos. No Brasil é muito diversificado. As ONGs trabalham com tudo, inclusive com as vacinas.
Na parte farmacêutica, eu não sei se há um grande interesse, porque hoje a mentalidade ainda é de que a vacina vai demorar muito tempo para eles terem o lucro, e medicamento dá um lucro mais imediato.
Eu diria que organizações privadas e alguns governos estão priorizando, se for comparar com o resto. E ONGs, é claro, porque elas têm o interesse de que a epidemia acabe. Mas os medicamentos gritam mais alto na hora que tem uma crise.
Rets - O senhor, então, não acredita que possamos ter algum problema semelhante ao dos remédios em relação às patentes?
Ronaldo de Lima - Depende de quem conseguir a vacina mais eficaz. Se for uma instituição privada, como a Iavi, pode ter certeza que este não será o grande problema, porque não há fins lucrativos, o objetivo é distribuir o máximo que puder. Se for um laboratório a sintetizar a vacina que realmente seja eficaz, todos ficaremos nas mãos deles.
Rets - E no caso de um governo alcançar esta vacina, é garantido que a tecnologia será distribuída?
Ronaldo de Lima - Depende da política do governo. Acredito que, por ser governo, não vai haver questão de patente para lucro. A tendência vai ser que seja distribuído e fabricado no mundo inteiro. Ia ser muito ruim para qualquer país dizer que em uma pesquisa com investimento de dinheiro público foi descoberta uma vacina que será vendida para países em desenvolvimento. Não consigo imaginar um país fazendo isso.
Rets - O senhor acha que está sendo vendida uma ilusão de que a vacina sairá agora e que ela seria a nova solução?
Ronaldo de Lima - Sobre a realidade brasileira eu não sei, porque não tenho acompanhado muito. Sinceramente, acho um pouco difícil. O Brasil, especificamente, tem uma experiência na questão do ativismo, na visão de como as coisas acontecem. Eu não vejo necessariamente as pessoas com a ilusão de que estará pronta daqui a dois anos.
Mas são duas coisas: uma é o ativismo, com pessoas engajadas, politizadas e informadas; e outra é a maioria da população, que não está informada. Aí entendo que pudesse estar sendo iludida em relação a isso. Mas o brasileiro é um pouco pé atrás e não compraria essa idéia. Caso essa idéia exista, ela está errada. Mas o investimento na vacina tem que acontecer, independentemente de qualquer coisa.
A vacina não será uma nova solução, mas uma das grandes soluções que têm sido discutidas durante muito tempo. É bom destacar que o medicamento é extremamente importante. Mas o medicamento não vai parar nem controlar a epidemia de aids. Ele vai tratar quem já está infectado. Um dos únicos e mais poderosos mecanismos para conter a epidemia é a vacina. É lógico que, quando existir uma vacina, se não for 100% eficaz, ela vai ter de estar associada a outros mecanismos de prevenção, como microbicidas, preservativos e outros.
Rets - O senhor falou em eficácia. Qual o mínimo de eficácia que a vacina deve ter para ser usada? Estão sendo discutidos na ONU os conceitos de “mais alto nível atingível” e “método mais adequado no momento”. Qual seria a eficácia mínima desejável?
Ronaldo de Lima - Como você falou, está sendo discutido e ainda não há uma opinião clara para todo mundo. A minha é a seguinte: hoje a gente não tem nenhuma vacina, então não tem nem 0,1% de eficácia. Se a gente tiver uma de, por exemplo, 30%, não ajuda muito. Mas essa primeira de 30% já vai poder ser usada como comparativo em futuros testes, em vez de usar placebo. A gente usa placebo porque não tem um outro medicamento para a gente comparar. Quando tivermos uma de 30%, podemos comparar o produto que alguém esteja propondo com a que já se tem.
Eu diria que de 50% poderia ser usada. Pode-se dizer que também não é o ideal. Mas em países da África, onde mais de metade da população está infectada, isso é importante. Vai diminuir muito a epidemia naquela população. Tem um uso? Tem. É o uso que a gente espera que será disseminado pelo mundo inteiro? Não. Vai ser um uso específico para países que estão mais afetados. Eu diria que a eficácia ideal seria de, no mínimo, 70%, para começar a fazer isso em larga escala.
Rets - Existe uma certa preocupação de que, ao mesmo tempo em que a África vive uma situação emergencial, ela pode estar sendo usada como laboratório para testes. Como fica essa relação?
Ronaldo de Lima - Quando se fala sobre cobaia, algumas coisas devem ser analisadas. Quando se usa essa expressão, geralmente está implícito que o país ou a pessoa não estão de acordo com aquilo. Não tem como injetar uma vacina em alguém sem, primeiro, a autorização do governo do país para fazer aquele teste. Segundo, tem o nível individual de aprovação disso. Quando a gente faz um recrutamento de voluntários, existe o consentimento informado. É um documento escrito para cada protocolo, que é revisado por médicos, geralmente da ala comunitária, pelos comitês de ética do país – no Brasil são vários. Passa por todas essas instâncias até o protocolo ser aprovado. O consentimento informado é apresentado para cada voluntário, que é incentivado a levar para casa para ler tudo. Quando volta, ainda há uma rodada de conversas para que as dúvidas sejam esclarecidas. Depois a pessoa avalia as conseqüências de participar de um teste como este.
Então, voltando à questão de ser cobaia, se o país está aprovando a pesquisa, e se a pessoa está se tornando voluntária, assinando o consentimento informado, não tem como a gente pensar nessa expressão.
Rets - Sobre as pesquisas na África, as pesquisas são lideradas pelas ONGs, pois a indústria farmacêutica não investe, já que não vê possibilidade de lucro, e os governos da região não conseguem promover pesquisas científicas. Como os subtipos do vírus HIV têm certa ligação com a região, você acha que a África, área mais afetada pela aids, tem sido menos privilegiada nas pesquisas?
Ronaldo de Lima - Até há alguns anos, eu diria que sim, era muito pouco. Esse foi um dos motivos pelos quais a Iavi foi criada: para focar nos países africanos e em desenvolvimento. Mas agora está crescendo. O governo americano, através do NIH [National Institute of Health] – o instituto de saúde dos EUA –, e do HVTN [HIV Vaccine Trials Network], tem investido muito mais grana, e alguns laboratórios também. A pesquisa na África está crescendo. Ainda está pouco, aquém do necessário, mas seria injusto dizer que ninguém está investindo na África.
Rets - Existe alguma proteção aos voluntários, principalmente da Fase I, caso eles contraiam a aids?
Ronaldo de Lima - Não existe chance de o voluntário se contaminar com a vacina. A pessoa pode se contaminar durante o período de teste tendo, por exemplo, relações sexuais sem preservativos durante o período em que participava da pesquisa. Ela se contamina pela relação sexual ou por outro meio, mas não pela vacina.
Se fosse garantido este tratamento por parte das instituições que pesquisam, nenhum protocolo ia ser feito. O orçamento que deveria ser feito para isso seria tão alto que inviabilizaria qualquer tipo de teste. No caso do Brasil, essa pessoa seria encaminhada direto para o centro de saúde local para receber os medicamentos necessários. Se fosse, por exemplo, nos EUA, onde tudo é privado, seu plano de saúde cobriria os medicamentos.
Há situações, como na África, em que não há nada. Alguns países têm distribuição de medicamentos, como Ruanda, mas ainda é muito tímida comparada à demanda que eles têm. Neste caso, a iniciativa para conseguir medicamentos seria mais individual, até mesmo de pessoas ligadas à pesquisa, para conseguir importar, ou mesmo pedir doação de remédios. Mas seria uma iniciativa mais pessoal.
Rets - O senhor teme que, a partir do momento que surja uma vacina contra aids, outras DSTs tenham um crescimento?
Ronaldo de Lima - Essa é a questão: mesmo que a gente tenha uma vacina com perto de 100% de eficácia, a gente vai ter que continuar usando preservativo, porque tem outras DSTs. Então, pode acontecer? Bem provável que aconteça. Quando nós tivermos uma vacina com boa eficácia, as pessoas vão parar de usar preservativo e as DSTs vão perder o controle. Concordo com isso.
Rets - Qual tem sido o maior empecilho na busca para a vacina?
Ronaldo de Lima - Alguns. Eu diria que a variabilidade do HIV. Há algum tempo se falava que rapidamente teríamos uma vacina contra a aids, pois já tínhamos experiência em vacinas para vírus. Só que a estrutura do HIV é muito complicada e tem essa variabilidade através da mutação. O que adianta fazer um vacina para um tipo específico, se ele pode mudar? Teríamos que ter uma vacina que variasse do mesmo jeito. Essa é uma dificuldade técnico-científica muito grande. Eu diria que é o motivo pelo qual a gente não tem uma vacina hoje.
Na questão de investimento também há problemas. De 1994 a 2002, o investimento aumentou de US$ 125 milhões para cerca de US$ 550 milhões, mas no geral ainda é muito mais baixo que o investimento feito em medicamentos, por exemplo.
Rets - O senhor considera que algumas entidades, tanto governamentais como não-governamentais, não contribuem com tudo que poderiam para manter a demanda por investimentos?
Ronaldo de Lima - Não. A maioria delas está fazendo o máximo para a pesquisa. Falta incentivo político nos países, de forma geral, para incentivar a pesquisa de vacina. Não estamos falando de uma organização específica, mas sim de um país, como um todo. É importante, além da área de pesquisa, um trabalho de ativismo na área política para mostrar a importância de investir em pesquisa, de ser voluntário. Não é o caso do Brasil, que é um parceiro natural, superaberto. Mas há outros países em que a questão política é mais complicada.
Rets - E por que o senhor acha que alguns países ainda fazem essa barreira?
Ronaldo de Lima - Alguns ainda têm a visão de que vamos usar o povo deles como cobaia. Isso tem mudado bastante, mas ainda tem um pouco dessa resistência. “Por que vão testar conosco?”, muitos podem pensar. Mas isso não é verdade, porque estamos testando no mundo inteiro. Se a vacina vai ser aplicada no mundo inteiro, quanto mais países envolvidos, com diferentes tipos e subtipos de HIV envolvidos, melhor ainda. A gente vai poder ver o quão abrangente é uma vacina, três vacinas, ou quantas forem.
Rets - Como o senhor vê a integração entre as pesquisas de vacina?
Ronaldo de Lima - É pouca. Definitivamente precisa de mais integração. As poucas iniciativas que existem, como a Global HIV/Aids Vaccine Enterprise, criada pela Fundação Bill Gates, têm como objetivo tentar pôr as entidades envolvidas mais perto umas das outras, para ver o que uma está fazendo, como contribuir para as diferentes pesquisas para um resultado mais comum. A Malaria Vaccine Initiative lançará em breve um portal chamado Africa Clinical Trials Portal - Portal de Ensaios Clínicos na África - para facilitar as organizações que estão fazendo pesquisa clinica na África, no qual será divulgado onde e quando ensaios clínicos estão sendo feitos, quais recursos e infra-estrutura estão sendo utilizados e contatos locais de importantes entidades governamentais e não-governamentais.
Se você faz tudo separado, vai demorar muito mais tempo para chegar a alguma conclusão do que se trabalharmos de forma integrada. A Iavi, por exemplo, tem uma parceria em um dos países da África em que compartilha acesso à internet (conexão de satélite) com outras organizações, para reduzir custos. Mas cada uma tem sua segurança e confidencialidade garantidas, ou seja, nenhuma organização acessa os dados das outras. É só compartilhamento do acesso à internet.
Rets - O senhor considera que essa falta de integração seja algum indício de um certo “individualismo institucional”, em que há uma disputa pela busca da vacina?
Ronaldo de Lima - Seríamos muito ingênuos em achar que não existe. Claro, sempre vai existir. Quem não quer ser o descobridor da vacina contra a aids no mundo? Quem não quer o Prêmio Nobel? Tem essas coisas que acredito que estejam por trás disso tudo, mas não acredito que isso seja o principal.
Como trabalho na Iavi há muito tempo, e vejo como é feito o trabalho, os funcionários aqui não estão correndo atrás do Nobel, mas sim da vacina. O Iavi está começando a fazer parcerias com outras instituições, inclusive com laboratórios, em que trocamos informações sobre vacina, ou mesmo sobre infra-estrutura, ou conhecimento sobre o local em que a pesquisa será feita. No final das contas, estamos interessados em ter essa vacina o mais rápido possível.
É claro que vão existir instituições que pensarão que são donas do dinheiro e por isso não vão compartilhar o conhecimento, com medo de não terem mais financiamento. Acho que esse assunto deve ser pensado de forma mais global: que é uma epidemia que mata muita gente por dia, e quanto mais tempo a gente demorar, mais gente vai morrer.
Será que, quando começarem a se expandir iniciativas que divulguem dados relacionados à pesquisa, como esses portais, e você começar a convidar instituições que fazem teste clínico na área, essas entidades vão se negar a disponibilizar a informação? Tem que botar. É bom para eles, pois um dia podem ir para outro lugar e precisar de informação.
Além disso, não há recurso para todo mundo, individualmente. É ilusão achar que vai ter grana para cada um fazer suas pesquisas sozinho. Alguma hora a coisa vai ter de convergir, e isso já está começando a acontecer. Este portal pode dar uma visão global para os financiadores.
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