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Problemas domésticos

Autor original: Marcelo Medeiros

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets





Problemas domésticos
Luis Felipe Florez/Rits

Desde a época colonial, quando o serviço nas casas era feito por escravas, até os dias de hoje, em que a profissão é reconhecida oficialmente, trabalhadoras domésticas viram seus direitos aumentarem. A situação, contudo, ainda não é satisfatória – principalmente se comparada com a das demais profissões. Além disso, muitas crianças ainda são empregadas nessa função, na qual a formalidade está longe de ser regra. No Congresso Nacional, tramitam alguns projetos de lei que visam alterar esse quadro, garantindo mais direitos, mas sua aprovação ainda parece distante.

De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio de 2003 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há seis milhões de “trabalhadores domésticos” no país. O número equivale a 7,7% da população ocupada. A categoria inclui não só as “empregadas” como também outras profissões, como motoristas particulares, zeladores etc. O Ministério do Trabalho e do Emprego designa o trabalho doméstico como “serviços de natureza contínua (freqüente, cons­tante) e de finalidade não-lucrativa [prestados] à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas”. De acordo com o órgão federal, “o traço diferenciador do emprego doméstico é o caráter não-econômico da atividade exercida no âmbito residencial do(a) empregador(a)”.

O número de pessoas nesse setor tem crescido nos últimos anos. Em 1999, por exemplo, a Pnad apontava a existência de 5,4 milhões de pessoas nessa forma de trabalho. Ou seja, em quatro anos, foram criados 600 mil postos, um crescimento de 11%.

Apesar de envolver profissões tradicionalmente masculinas, como motoristas e zeladores, 93% das pessoas que se encaixam nessa categoria são mulheres. A profissão é importante para elas. Do total de mulheres que estavam trabalhando quando entrevistadas pelo IBGE em 2001, 17,3% estavam prestando serviços domésticos. O número faz o emprego na casa de terceiros ser o maior empregador de mulheres do Brasil. O setor de educação, saúde e serviço social, segundo colocado nesse ranking, fica pouco atrás, com 16,7%. “É uma contradição curiosa”, ironiza Creuza Maria Oliveira, presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas. “Ninguém quer ser doméstica, mas é o setor que mais emprega no país”.

Ser grande empregador, no entanto, não significa ser bom pagador. Pouco menos da metade das domésticas recebe, no máximo, um salário mínimo. E, entre os seis milhões de domésticas, 40 mil não recebem dinheiro por seu trabalho. A “elite” é bem pequena: nove mil recebem entre cinco e dez salários mínimos.

Os salários, já pequenos, muitas vezes sofrem uma série de descontos, referentes a gastos do empregador com habitação, alimentação, vestuário e transporte, o que é proibido por lei. Por morarem longe do local de trabalho, algumas empregadas preferem dormir na casa dos patrões – ou estes exigem a presença da contratada durante todo o dia e noite, mas não oferecem condições adequadas para isso. Quartos pequenos e insalubres não são difíceis de serem encontrados. Há ainda os empregadores que vêem o fornecimento de uniforme como um gasto que deve ser feito pela trabalhadora.

Direitos

Além de descontos salariais indevidos, as empregadas domésticas enfrentam outros problemas relacionados ao cumprimento de seus direitos. A informalidade é um deles. De acordo com o IBGE, 72 % das pessoas que trabalham no serviço doméstico não têm carteira assinada. A média das outras profissões é de 32% dos empregados sem esse documento. Ainda assim, vale ressaltar, a tendência é de queda – ainda que lenta – na quantidade de trabalho informal nos serviços domésticos. Em 1993, 83% não tinham carteira de trabalho assinada em seus empregos.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não inclui os trabalhadores domésticos, apesar de a profissão ser reconhecida desde 1972. "A Constituição de 1988 consagrou a igualdade entre trabalhadores urbanos e rurais, mas fez ressalvas a direitos dos trabalhadores domésticos", reconheceu o ministro do Tribunal Superior do Trabalho Lélio Corrêa durante seminário realizado na Câmara no dia 26 para tratar das condições do trabalho doméstico no Brasil.

Um exemplo de ressalva é a falta de regulamentação do número de horas trabalhadas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). "A não-regulamentação das horas de trabalho, por exemplo, é um resquício da escravidão", protesta Creuza Maria de Oliveira. A lei garante o recebimento de salário mínimo, a irredutibilidade do vencimento, férias, décimo-terceiro, aposentadoria e aviso prévio. Por outro lado, não prevê direitos importantes, como seguro contra acidentes de trabalho, a proibição de trabalho a menores de 16 anos e o pagamento de Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).

A lei 10.208/01 torna facultativo o depósito de FGTS, uma vitória parcial do movimento de mulheres. A luta é pela obrigatoriedade. Inscritas no FGTS, as empregadas domésticas podem receber seguro-desemprego no caso de serem demitidas sem justa causa.

Em novembro do ano passado, um grupo de trabalhadores domésticos entregou ao então vice-presidente da Câmara, deputado Inocêncio Oliveira (PFL-PE), um abaixo assinado com duas mil assinaturas que pedia urgência na votação da Proposta de Emenda Parlamentar (PEC) 385/01, de autoria da deputada Luci Choinacki (PT-SC), que estende todos os direitos da CLT às empregadas domésticas e donas-de-casa. Até agora, a medida não foi votada.

Outros projetos

Outros 31 projetos com o objetivo de ampliar os direitos das domésticas tramitam no Congresso. Em caráter conclusivo na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público da Câmara, o Projeto de Lei 4653/94, do ex-deputado Paulo Paim, visa estabelecer uma jornada de trabalho de 40 horas semanais para todos os empregados, independentemente da função. Caso seja, aprovado, vai para votação na Câmara e de lá segue para o Senado.

A solução pretendida pela Fenatrad, porém, é mais complexa. A entidade defende a eliminação do artigo 7º da Constituição Federal, que regulamenta os diretos dos trabalhadores domésticos. A medida é apoiada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), que não vê motivos para essa situação ser mantida. “É uma questão complexa”, afirma Solange Sánchez, coordenadora da OIT.

Sanchez aponta a baixa remuneração das trabalhadoras e a falta de uma estrutura social eficiente como fatores fundamentais para o tamanho do “setor doméstico” no país, mas afirma que isso não justifica a atual situação. “Nada disso serve de desculpa para tratar o serviço doméstico como algo de segunda categoria. Até hoje não aprendemos a valorizar as atividades feitas dentro de casa, sejam elas remuneradas ou não”, lembra.

Segundo a coordenadora, o custo de pagamento de FGTS e outros direitos trabalhistas é ínfimo em relação à renda de uma família de classe média. “Em relação ao salário mínimo, o valor não ultrapassa R$ 60 por mês. Isso, muitas vezes, é o que uma patroa gasta no cabeleireiro em um só dia”, calcula.

Entre outros projetos que estendem benefícios está o 1615/03 , que estende às empregadas domésticas o direito ao salário-família. O benefício, de R$ 13,48 por filho de até 14 anos, é pago a assalariados que ganhem no máximo R$ 560,81. Se aprovado, beneficiaria a maioria das domésticas, portanto.

Há também o que lhes garante o seguro-desemprego. O PL 2619/03, da deputada Almerinda de Carvalho (PSB-RJ), já foi aprovado pela Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público. O órgão responsável pelo pagamento do salário-desemprego é o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Atualmente, o projeto está na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.

Já o PL 3866/00, de autoria do deputado Darcísio Perondi (PMDB-RS), garante folga às trabalhadoras também nos feriados. A legislação atual só prevê uma folga semanal, de preferência aos domingos.

Campanhas

Trabalhadores e trabalhadoras domésticos, no entanto, não vão esperar a aprovação desses projetos, pois suas reivindicações vão além de medidas trabalhistas. A presidente da Fenatrad, Creuza Oliveira, lamenta a baixa sindicalização da categoria e afirma que as trabalhadoras só buscam o seu órgão de representação quando desconfiam que seus direitos estão sendo descumpridos ou quando sofrem algum tipo de violência. De acordo com ela, casos de agressão física e moral são comuns, principalmente no nordeste e no norte. Não há dados sobre isso e, diz Oliveira, mesmo que existissem não seriam confiáveis, devido ao baixo índice de denúncias. “É algo muito difícil de verificar, por acontecer em espaços privados e familiares”, lamenta. Pelo mesmo motivo, afirma, são raros os casos que resultam em condenação do agressor.

Por isso, na última quarta-feira, o governo federal, por meio do Ministério do Trabalho e do Emprego, a OIT e a Fenatrad começaram as conversas para lançar uma ação conjunta de valorização do trabalho doméstico. Ainda sem nome, a iniciativa agirá em três vertentes: capacitação social, sindical e profissional. Haverá ainda uma chamada para a formação de uma articulação em torno de políticas públicas que estejam relacionadas de alguma forma às trabalhadoras domésticas. Pretende-se que outras pastas sejam incluídas, entre elas as Secretarias Especiais de Direitos das Mulheres e de Promoção de Igualdade Racial.

Outro problema que motivou uma campanha é o trabalho infantil. Segundo dados do Ministério do Trabalho, com base na Pnad 2002, há no Brasil 219 mil crianças entre 5 e 15 anos fazendo serviços domésticos remunerados no país. A elas devem ser somadas cerca de 300 mil para chegar aos 500 mil jovens com menos de 18 anos estimados em pesquisa feita pela OIT e pelo IBGE em 2001.

Desde 2002, a Campanha Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente no Trabalho Doméstico busca tirar jovens dessas atividades. A história dessas crianças e adolescentes é quase sempre parecida. Pobres, vão trabalhar em casas de família, algumas vezes até de graça, em troca de comida e hospedagem. A grande maioria (64%) não chega a receber um salário-mínimo e 72% nem conhecem seus direitos. A freqüência escolar é diminuída ou até mesmo zerada. A Convenção 138 da OIT, da qual o Brasil é signatário, proíbe o emprego de menores de 16 anos, a não ser na função de aprendizes. Apesar da norma, a prática ainda é comum, como se percebe pelos números.

Marcelo Medeiros

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